domingo, 17 de outubro de 1999

As vozes.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades.  Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma  das mais belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas  de la Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Nuñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 
           Os capitães clamam, aos gritos, para não se sentirem tão sozinhos. Os soldados amaldiçoam, na penumbra. Juram por Deus ou pela virgem da Macarena. Gritam, no meio da chuva, para se fazer ouvir. Discutem. Em longas conversas, no meio da noite, querem se proteger da solidão.  Embriagados, cantam. Alguém dá explicações, conta as vicissitudes de uma viagem. Com palavras roucas, secas e curtas, os índios, temerosos, falam entre si e  uma  vez, e então repetindo, para convencer, se dirigem aos espanhóis. Mas, sempre, sons distantes, murmúrios. Porque, em El hombre que trasladaba las ciudades, a palavra pertence aos que ordenam. Breves. Parcas. Reticentes. Quando os capitães  falam dos prisioneiros (o que irão dizer, porque não querem pronunciar palavras fatais, embora sejam elas fatais quer as pronunciem ou as calem, o que irão dizer de importante ou terrível ), Guevara diz:  As palavras são sempre terríveis.  Mas, o diz como se não tivesse importância, como se não fosse verdade o que dizia ou não acreditasse ou não lhe importasse ou falasse só por falar, para ganhar tempo. E, Juan Núñez de Prado, ao perguntar a Miguel Ardiles se acredita ser ele é capaz de atraiçoá-lo, o capitão responde: A traição, senhor, é doença de satisfeitos e invejosos ou seja, não lhes concerne pois, estão sempre, e estarão sempre, procurando um melhor lugar para assentar a cidade. E essa busca é a febre que os move, que não admite dúvidas, nem ações postergadas. Em meio ao desvario dos trabalhos e dos planos – faremos uma grande cidade, teremos um castelo medieval, faremos as casas dos principais, edificaremos o quartel, a prefeitura, a casa do bispo e dos corregedores, a casa dos quintos e dos dízimos reais e a mansão de estio do vice-rei – o capelão, padre Carvajal admoesta Juan Núñez de Prado ao percebê-lo sentado numa cadeira: senhor, senhor, governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor de céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei, pegaste uma cadeira ao invés de pegar um machado, dois machados  um para cada mão, um para cada árvore [..].
           No exagero  da submissão, ao conferir-lhe, como  senhor de céu e terra, todos os poderes, ao mesmo tempo, o nivela aos soldados que abatem as árvores, incitando-o a pegar no machado E, assim, entre adulações e  reprimendas,  pleiteia o que deseja: duas torres para a sua igreja, dois raios de luminosidade e força e bendições para lançar sobre este punhado de espanhóis sujos e desamparados e espalhados pelas selvas e montanhas. Porém, na hesitação que, na verdade, conduz, sempre, o desejo dos homens de Juan Núñez de Prado, o capelão irá, logo,  se contentar, apenas, com os sinos para guiar o seu rebanho, um tropel de ovelhas  ou carneiros infernais. Mais precisamente subjugá-lo, congregando índios e soldados para insultá-los, dar-lhes medo, amaldiçoá-los. Pois, para o Continente,  diz, não podiam  ter trazido um deus europeu, um cortesão azul ou cor de rosa, fedendo a incenso e a água de rosas  e lágrimas doces e arrependidas[...]Argumento que, pertinente ou falso,  se alia ao menosprezo dos principais ibéricos  pelos seus soldados e pelos índios que, aleatoriamente, acorrentam  às suas ações e que, sem dúvida, esboça uma realidade que não foi percebida pelos conquistadores: a discrepância entre os valores que trouxeram do Velho Mundo (que pretendem impor) e os que encontraram no Continente ( que tentam persistir.)

          Ameaçado, firmemente pelo capelão (armaremos uma revolta e uma traição muito fina e bem organizada e te enforcaremos na melhor castanheira ou figueira ou algarrobo deste bosque silencioso) caso insista em nova mudança, Juan Núñez de Prado responde  triste e sério:  Traição e revolução são frutas de cidades velhas e européias, esquecendo que nas terras das quais está se apossando, sem pejo, ele repete as velhas fórmulas - violências, imposição da vontade em nome de verdades, certamente discutíveis,  desprezo pelos comandados, impunidade para os detentores do poder- caducas mas não por isso menos em desuso.
 
           Assim, nessa recriação do itinerário dos conquistadores, as vozes que se elevam são unicamente  as daqueles que – valha o repetido lugar comum – sempre tiveram voz. E jamais para dizer a verdade. E  sempre para impor razões. Em nome do Rei, em nome de Deus, em nome de seus próprios desejos.
 

 

           

 

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