domingo, 24 de outubro de 1999

Os silêncios.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais belas obras de Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da Cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas incertezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.                                 

           É um mundo povoado de sons. Murmúrios, risos distantes. Alguma canção cantarolada. Sussurros,  golpes de machado e de martelo. Cacarejos, latidos no meio do bosque. Gritos, tosses, badalar de sinos, chuva caindo, ruídos de armas e de ferros. Disparos. Zunir do vento, relinchos, zumbidos. Em raros momentos, o silêncio. Assustador, para os espanhóis, quando os índios se calam; ou quando, na solidão da noite, ele se instala e Juan Núñez de Prado, olhando para o céu e para a terra o percebe e sente desejo de rompê-lo, chamar os soldados e índios. Ou, necessário: ele se dá conta que está calado e sabe que se silencia os que o rodeiam também o farão. Como a seguir-lhe o exemplo – toma do machado e o crava na árvore – os capitães o olham em silêncio e por sua vez se unem para abater o tronco  já ferido. E também o olham em silêncio, sem mover os lábios, sem um gesto, ao escutá-lo contar a morte de Bazán, espanhol que fora enviado com as cartas de explicações para o Vice-rei. Pergunta se alguém o conheceu, se alguém foi seu amigo. Não obtém resposta, pois eles se calam, duvidam. E, Juan Núñez de Prado também se cala e não diz o que lhe passa na mente: que eles devem pensar que foi ele quem o matou quando, na verdade, não está certo se, realmente,  deu com ele na cidade abandonada que fora visitar ou se está imaginando esse encontro. Então, ouve que a nova mudança já fora decidida na sua ausência – o padre Carvajal achara um lugar maravilhoso, imenso e plano, sem serras nem precipícios,  somente vales suaves, colinas recém insinuados – e os capitães se afastam, sem dizer nada, sem explicar nada, sem olhar para ele e sente que  o estavam expulsando do mundo visível. Mas, se submete à decisão da qual não participara pois lhe faltam certezas. Ao assentar a cidade, pela terceira vez, já hesitara. E o capelão havia perguntado se iriam ficar e respondeu que era um belo bosque ali onde estavam. A pergunta, tornando a ser feita, o fez confessar, com dificuldade, a sua dúvida. E, olhando a seu redor, onde a cidade estava a meio concluir, a meio desfazer, lhe vem o desejo de pegar no braço do padre e lhe explicar ou que ele lhe explicasse.  E entre as casas derruídas e os móveis e as madeiras espalhadas e os soldados  se exaurindo em árduas tarefas, ele não fala e o silêncio instala na narrativa, as lacunas que lhe conferem uma ambigüidade jamais esclarecida. E, assim, essas zonas de sombra que a pontilham – porque os que o rodeiam imitiam o seu silêncio, porque ele deseja rompê-lo, porque os seus capitães calam diante dele e porque ele não cede ao impulso de falar – emergem como um recurso narrativo que irá humanizar o herói da Conquista ao mostrá-lo frágil e sem defesa, imerso na sua solidão.

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