domingo, 10 de outubro de 1999

Os gestos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem  se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais             belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado.  Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá  asssento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El  tercer traslado”.                        

          Os soldados acreditam ter chegado e Juan Núñez de Prado, o capitão, sabe do que é acusado e quão próximo se acha o momento em que deve enfrentar o inevitável. E a grande aventura da Conquista, prossegue. São duzentos espanhóis, são duzentos índios que  avançam Continente adentro. A narrativa que acompanha seus passos não lhes enuncia as razões mas, ao registrar seus gestos, permite vislumbrar significados: os da cordialidade (a mão que se levanta para cumprimentar ou mostrar algo, o braço a se apoiar no ombro do  companheiro, a cadeira afastada para ceder lugar,  a mão que oferece a jarra de vinho), os da espontaneidade (segurar a capa nos ombros, se espreguiçar, acender uma tocha e pendurá-la, chutar um sapato extraviado), os da rotina (o ir e vir das sentinelas, as armaduras  tiradas ou colocadas, segurar as rédeas do cavalo ou desmontá-lo,  o carregar o arcabuz).

                        São gestos que humanizam esses homens que a História transformou em sombras vagas, perdidas no tempo. Por vezes, aprofundando o significado das palavras e das intenções: quando o capitão Guevara  faz uma pergunta da qual já conhece a resposta, ele cruza as pernas para fazer mais definitivas suas palavras, para deixá-las aí, visíveis, imóveis e fatais. Ou, quando  anuncia que irão matar aqueles que são reticentes à mudança, se mexe um pouco na cadeira para comprovar sua própria vilania, para verificar que toda sua carne e seu sangue e seus músculos estavam aí, inteiramente, e que estavam despertos e comprovados e que possuíam toda a sua força bárbara.

                        Induzidos por um  desesperado querer, os gestos efetuados pelos soldados, visando a construção da cidade: eles cavam a terra, levantam pedras enormes, dão golpes de pá e de martelo, medem tábuas, as amontoam junto às árvores, carregam móveis, portas, janelas, juntam cadeiras e mesas que as carretas carregadas vão perdendo. São gestos daqueles que almejam se fixar, encontrar, no Novo Mundo, a terra onde deitar raízes. Soldados famélicos, desocupados, desorientados cuja presença se disfarça num pronome indefinido – alguém pregava umas tábuas, alguém ainda trabalhava na cidade – com o qual o romancista os situa como parte da massa anônima e desconsiderada que  permitiu, com seu esforço e submissão, a posse do Continente e que não teve consciência do real significado de seus gestos predatórios. Porque eles atiram, aleatoriamente, nos pássaros: os pássaros se incrustavam no alto, enormes e trêmulos, pareciam, como ele, mortos de frio e de desconfiança, sabia que olhavam para ele com estranheza, com uma estranha proximidade, como se esperassem algo dele, uma palavra de saudação ou conhecimento, umas frases de explicação ou de consolo, ele  apertava sem forças o arcabuz [...], movia os dedos, tratava de se tornar malvado, sanguinário, assassino fácil, mas estava cansado, tinha vontade de ir embora, de ficar adormecido até o outro ano, soavam os ferros em suas frontes e os pássaros abriam os olhos de um modo espantosamente frio e hostil e via a fumaça desmanchar-se com frouxidão, com certa desbotada doçura entre as plumas desfeitas. Porque levantam raízes, cortam árvores,  descarregando, com violência, o machado nos troncos: a árvore se bamboleava, graciosamente, ainda se queixava por dentro, viam os seus galhos se expandir no sol, se abrirem dolorosos e grotescos enquanto os machados balançavam o tronco, balançavam a terra.

                        E, nesse intuito de erguer a cidade, Juan Núñez de Prado ( agarrou o machado e o afundou na árvore até derrubá-la) e seus capitães (empurravam, depois, com todas  as mãos juntas o tronco da árvore que rangia levemente e se inclinava) e o capelão (o padre derruba outro tronco) e o médico (açoitando  a árvore de todos os lados) e os soldados (golpeavam os troncos das árvores e rompiam a terra) abatem bosques inteiros, despedaçando um mundo verde que, depois, abandonam, para recomeçar mais adiante.

                        É uma posse perseguida a qualquer custo. E os verbos açoitar, golpear, cravar, afundar, rebentar expressam a violência que impulsiona cada gesto, traduzindo a visão de mundo que norteou aqueles que chegavam ao Continente. Um abrir caminho através de bosques e montanhas e feridas de soldados e de árvores.

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