domingo, 3 de outubro de 1999

Os risos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre      que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando umas das mais belas obras da Literatura hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da America a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá o assento pela terceira  vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 

          “El tercer translado”  se inicia com o diálogo entre Núñez de Prado e Miguel Ardiles, um de seus capitães que lhe anuncia a vinda próxima de soldados do Chile para prendê-lo. Aferrado a suas convicções –  transferir a cidade para que não caia em mãos estranhas – Juan Núñez de Prado tenta convencer seus capitães. Ao  redor, os soldados e os índios povoam o cenário,  conferindo-lhe o movimento perfeito para que nele aconteça o grande drama individual do conquistador, dado a conhecer por um narrador que, de diferentes pontos de vista, lhe desvenda a alma . Porém, desses soldados, muito pouco se lhes ouve a voz e somente em esparsas e distantes conversas.  Embora instrumentos da conquista – então, armados e belicosos – no romance de Carlos Droguett eles se desenham sempre  feridos, doentes, debilitados ou executando tarefas, presumivelmente, próprias da instalação de uma cidade a partir do nada: traçando-lhe as ruas, cavando-lhe os fossos protetores, construindo-lhes as casas. Breves seqüências testemunham essa presença, muitas vezes, apenas lhe mencionando o riso.  Ou, mostrando o soldado da conquista no abandono de um gesto rotineiro – riam baixo, acendiam fogueiras e faziam comida junto dos móveis, riam, bebiam água fresca na concha das mãos - ou lhe deslindando sentimentos  quando ri feliz,  alegre, impiedoso, com o riso amigável e medido ou sinistro ou cruel, revolto e pegajoso, quando ri com escárnio ou  se expressa com o sorriso gelado dos enfermos.

            Também, revelador de sentimentos, - poucas vezes eles riem  espontaneamente – o riso dos capitães e de Juan Núñes de Prado. Assim, o riso de Guevara, tranquilo, lúcido e alvoroçado chega até os soldados ocupados nas suas lides, como um  riso feliz, aturdido e europeu ou embriagado que os acalma, os faz  sentir-se em segurança, ao abrigo de espionagens e traições.  Em outro momento, porém, ri com nojo, desavergonhadamente diante das dúvidas provocadas pela ida, sem regresso, de um mensageiro, enviado para explicar às autoridades da Colônia as razões das mudanças da cidade e as mortes e ela relacionadas. E com tristeza, sorri o capitão Santa Cruz; cruel e sem esperanças, o riso do médico ao se aproximar dos condenados à forca; para se resguardar, se refugia no riso, o capitão Ardiles .Sem enfado e extravagante ou por condescendência, desejando rir, Juan Núñez de Prado. Seu riso é feliz ou nervoso. Inexplicavelmente obscuro, quando ri ao ver a carreta, desconjuntada (estava repleta de móveis e roupas e índios) deslizar, vagarosamente, pelo abismo. E cheio de susto, claro ou alegre ou maravilhado, o riso dos índios. Submetidos, não levantam a voz  se movem como sombras, trabalhando na destruição e na reconstrução da cidade, como os soldados. Uns e outros a  viver em meio às humilhações, aos maus tratos e aos árduos trabalhos, alheios ao que acontece nesse  desbravar Continente adentro. Então, os risos dos ibéricos  oprimidos e dos índios  subjugados se iguala. Irrompe como um desejo de vida em meio a todas as perdas.

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