Em
outubro de 1959, Pablo Neruda, num breve texto amoroso, consciente paródia do
estilo do século XVI, diz o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, oferecia
a Matilde Urrutia, os sonetos que a Editora Losada de
Buenos Aires irá publicar nesse mesmo
ano:Cien sonetos de amor. Uma “centúria”, diz o poeta, dos que rotula mal chamados sonetos, numerados com algarismos romanos e reunidos
sob quatro momentos do dia: Mañana,
Mediodia, Tarde e Noche. Eles dizem da
mulher amada e do amor. Eventualmente, de um mundo nem sempre receptivo, alguma vez, de utopias.
O
primeiro soneto se inicia com o nome
Matilde que irá aparecer, também, nos sonetos XXIII, XL, L, LI, LXII.
Nominada ou não ela será presença constante (salvo, talvez, duas ou
três exceções), mais precisamente, a razão de cada um deles.
Na
primeira parte, “Mañana”(Manhã), formada por trinta e dois poemas, Pablo Neruda
define o amor que o habita (te amo como a
planta que não floresce e leva/dentro de si, escondida, a luz daquelas flores) e que, em alguns sonetos, aparecerá como um sentir que amalgama os
amantes, fazendo deles um ser único, indivisível (e hoje diante do mundo somos uma
só vida). E que busca o eterno ao não ter começo ( no soneto XII diz desse encontro que é
anterior ao momento em que pousou os
olhos em Matilde Urrutia pela primeira vez) e que ele dispõe não terá fim
porque – os amantes mortos – irá continuar a resplandecer sobre a terra. Como
deseja eterna a figura da mulher amada (e
navegue tua estátua pelo cristal eterno) desenhada na beleza das pedras,
dos frutos, dos astros, dos cereais, do gosto e dos aromas.
No
poema XXVII, esses elementos se acrescentam – lua, maçã, trigo, estrelas, ouro
– para louvar a nudez da amada que ele percebe simples e compara com uma de
suas mãos e a quem se dirige, logo no primeiro verso. No segundo , acumula
adjetivos sem valor poético (lisa, terrestre, mínima, redonda), para,
no verso seguinte, usar metáforas inesperadas (linhas de lua, caminhos de
maçã) e no último do primeiro quarteto, compará-la à esbeltez do trigo
maduro.
No
segundo quarteto, expressões afirmativas a definem: es azul,
es enorme e amarela num inusual uso das cores que se ameniza ao ter como segundo
elemento da comparação a noite em Cuba,
o verão numa igreja de ouro.
O
primeiro terceto se inicia, como as estrofes anteriores, com a palavra Desnuda, (Nua) a qual se destinam, outra
vez, adjetivos prosaicos (curva, sutil, rosada), como a comparação que os antecede (pequena como uma de tuas unhas) .
Antepõem-se à metáfora que na estrofe anterior lhe concede, juntamente
com ser azul ou ser amarela, um perfil feérico:
tens trepadeiras e estrelas no cabelo.
Mas, já no segundo verso, deste primeiro terceto, acontece a quebra desse feérico na intercalação de uma nota
cotidiana, até que nasça o dia.
Então, a amada penetra no mundo, um outro mundo, diferente daquele em que estivera e que é,
certamente, escuro porque ali estão as palavras subterrâneo, longo túnel,
trabalhos e roupas; ali estão os
verbos apagar, vestir, desfolhar, registrando a transformação dessa
claridade que a envolve e que volta a ser algo de tão simples e despojado como
ser a mão nua.
Na
verdade, o soneto XXVII se encerra nessa simplicidade:o primeiro verso,
comparando a nudez da amada com uma de suas mãos e o último, pensando na
claridade dessa nudez que, metaforicamente, torna a ser a mão despojada.
Esquecendo as normas de versificação própria do soneto, economizando recursos
estilísticos, Pablo Neruda não despreza palavras que o linguajar poético
tenderia a ignorar. Aproxima-se, assim, desse
soneto de madeira, como
explica na dedicatória a Matilde Urrutia, que deseja distante daqueles em que
os poetas dispuseram rimas que soaram com o som da prata, do cristal ou do
ribombar do trovão.
E,
assim sem a rima e sem o ritmo, sem o brilho das altissonantes palavras
poéticas o seu poder de mago da expressão lírica se mostra nesse delinear, com o quase nada das
comparações e das metáforas, do corpo da
mulher amada.
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