É
um canto de amor a Matilde Urrutia. Começa a escrevê-los em 1957: sonetos que
da forma poética tradicional guardam, apenas, os quatorze versos, pequenas casas de quatorze tábuas para que nelas vivam os olhos que ele adora e
canta, explica na dedicatória à mulher amada.
Logo em 1959, numa edição privada, é publicado o livro em Santiago e no
mesmo ano, pela Losada de Buenos Aires: Cien
sonetos de amor.
Numerados em algarismos romanos, se
apresentam os sonetos sob quatro
rubricas, designando os momentos do dia, “Mañana”, “Mediodia”, “Tarde”,
“Noche”, talvez o próprio ciclo da vida. Uma seqüência feita de uma ou outra rápida incursão em
discerníveis episódios reais, mas, sobretudo, de símbolos, na verdade
transparentes, porque em cada verso ou em quase todos, está presente Matilde
Urrutia: manzana carnal, luna caliente, espeso
aroma de algas, lodo y luz machacados”,
diadema, radiante magnolia desatada em espuma. Matilde, a de cabellera
palpitante, a de ojos color de luna,
a de diminutas orejas, a de nariz soberana. Uma presença que se faz mais
próxima nos versos em que o poeta a ela se dirige, interlocutora silenciosa, delineando
contornos com surpreendentes combinações estilísticas: eres de pan, de pan
amado por el fuego, eres compacta como el pan o la madera, éres el momento
amarillo en que el otoño sube por las enredaderas, eres el pan que la luna
fragante elabora paseando su harina por el cielo.
Assim,
no soneto XXXIV de “Mediodia”, o poeta a ela se dirige para
dizer que é filha do mar e prima do orégano. Um poético e um prosaico
enredando-se e se completando nos versos seguintes quando aos dois epítetos – nadadora
e cozinheira -, verdadeiras expressões comezinhas, se acrescentam em definições
laudatórias ( teu corpo é de água pura, teu sangue é terra viva) que
serão seguidas, no segundo quarteto, pela apresentação dos poderes que, no
entender do poeta, possui a mulher amada: um olhar que, posto nas águas,
levanta as ondas, umas mãos que postas na terra fazem rebentar as sementes. No primeiro terceto retoma o que
foi dito no início do poema para mostrá-la, outra vez, nadadora, agora enaltecida pela palavra náiade , ninfa
em movimento no azul perfeito e, outra
vez, na cozinha, ressurgindo em flores.
A
exaltação do corpo feminino, expresso metaforicamente ou pela comparação com a
figura mitológica ou pela aproximação a um elemento vegetal, através do verbo
florescer, continua a apresentá-la, um ser mágico, ligada aos elementos água e terra. Porém, neste soneto XXXIV, o
poeta se detém, sobretudo nas qualidades que lhe atribui: a de ter hábitos floridos e terrestres, a de assumir tudo
quanto existe. Apenas no ultimo terceto é que expressará o sentimento que o
une à mulher que descreve, ao dizer que no fim de um dia vivido entre
a água e a terra ela dorme nos
seus braços protetores que afastam para que descanse, o que
acredita ser a matéria dos seus sonhos, algo tão simples como os
legumes, as algas, as ervas.
Entre
tantos outros sonetos que a desenham como mulher e como companheira –
ela foi o seu refúgio, a água para seu corpo sedento, uma fonte de vida, o seu
guia nos caminhos da vida, a guarda de seu sono - e aqueles em que irá cantar o amor em mil
nuanças que lhe dedica - o encontro mágico, o fundir dos corpos e das almas, o
insaciado e sempre renascido desejo, o eterno do sentir que os une, a ternura
que ressurge em cada dia - neste
soneto XXXIV, quase uma exceção,
é o poeta que a protege adormecida. Porque embora seja possuidora de poderes
mágicos, ela, no final do dia, se
fragiliza. Seu repouso é, então, cuidado
pelo poeta que, por sua vez, se mostra capaz de efetuar prodígios: conhecer-lhe
os sonhos e ter o poder de neutralizá-lo. E o poema se adensa nessa confissão.
As expressões correntes – rodeada por mis braços, para que tú descanses - ,
ladeadas por aquelas feitas de símbolos – sombra sombría, la espuma de tus sueños
– desnudam sentimentos que os versos anteriores não deixam prever. E um
inesperado e profundo lirismo se instala.
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