domingo, 19 de setembro de 1999

Náiade.

          É um canto de amor a Matilde Urrutia. Começa a escrevê-los em 1957: sonetos que da forma poética tradicional guardam, apenas, os quatorze versos, pequenas casas de quatorze tábuas para que nelas vivam os olhos que ele adora e canta, explica na dedicatória à mulher amada.  Logo em 1959, numa edição privada, é publicado o livro em Santiago e no mesmo ano, pela Losada de Buenos Aires: Cien sonetos de amor.  

           Numerados em algarismos romanos, se apresentam  os sonetos sob quatro rubricas, designando os momentos do dia, “Mañana”, “Mediodia”, “Tarde”, “Noche”, talvez o próprio ciclo da vida. Uma seqüência  feita de uma ou outra rápida incursão em discerníveis episódios reais, mas, sobretudo, de símbolos, na verdade transparentes, porque em cada verso ou em quase todos, está presente Matilde Urrutia: manzana carnal, luna caliente,  espeso aroma de algas, lodo y luz machacados”, diadema, radiante magnolia desatada em espuma. Matilde, a de cabellera palpitante, a de  ojos color de luna, a de diminutas orejas, a de nariz soberana. Uma presença que se faz mais próxima nos versos em que o poeta a ela se dirige, interlocutora silenciosa, delineando contornos com surpreendentes combinações estilísticas: eres de pan, de pan amado por el fuego, eres compacta como el pan o la madera, éres el momento amarillo en que el otoño sube por las enredaderas, eres el pan que la luna fragante elabora paseando su harina por el cielo.

          Assim, no  soneto XXXIV de  “Mediodia”, o poeta a ela se dirige para dizer que é filha do mar e prima do orégano. Um poético e um prosaico enredando-se e se completando nos versos seguintes quando aos dois epítetos – nadadora e cozinheira -, verdadeiras expressões comezinhas, se acrescentam  em definições  laudatórias ( teu corpo é de água pura, teu sangue é terra viva) que serão seguidas, no segundo quarteto, pela apresentação dos poderes que, no entender do poeta, possui a mulher amada: um olhar que, posto nas águas, levanta as ondas, umas mãos que postas na terra fazem rebentar as sementes.        No primeiro terceto retoma o   que  foi dito no início do poema para mostrá-la, outra vez, nadadora,  agora enaltecida pela palavra náiade , ninfa em movimento no azul perfeito e,  outra vez, na cozinha, ressurgindo em flores.

            A exaltação do corpo feminino, expresso metaforicamente ou pela comparação com a figura mitológica ou pela aproximação a um elemento vegetal, através do verbo florescer, continua a apresentá-la, um ser mágico,  ligada aos elementos  água e terra. Porém, neste soneto XXXIV, o poeta se detém, sobretudo nas qualidades que lhe atribui: a  de ter hábitos  floridos e terrestres, a de assumir tudo quanto existe. Apenas no ultimo terceto é que expressará o sentimento que o une à mulher que descreve, ao dizer que no fim de um dia  vivido entre  a água e  a terra ela dorme nos seus braços  protetores que  afastam para que descanse,  o que  acredita ser a matéria dos seus sonhos, algo tão simples como os legumes, as algas, as ervas.

             Entre tantos outros sonetos  que  a desenham como mulher e como companheira – ela foi o seu refúgio, a água para seu corpo sedento, uma fonte de vida, o seu guia nos caminhos da vida, a guarda de seu sono -  e aqueles em que irá cantar o amor em mil nuanças que lhe dedica - o encontro mágico, o fundir dos corpos e das almas, o insaciado e sempre renascido desejo, o eterno do sentir que os une, a ternura que ressurge em cada dia - neste  soneto  XXXIV, quase uma exceção, é o poeta que a protege adormecida. Porque embora seja possuidora de poderes mágicos, ela,  no final do dia, se fragiliza.  Seu repouso é, então, cuidado pelo poeta que, por sua vez, se mostra capaz de efetuar prodígios: conhecer-lhe os sonhos e ter o poder de neutralizá-lo. E o poema se adensa nessa confissão. As expressões correntes – rodeada por mis braços, para que tú descanses - , ladeadas por aquelas feitas de símbolos – sombra sombría, la espuma de tus sueños – desnudam sentimentos que os versos anteriores não deixam prever. E um inesperado e profundo lirismo se instala.

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