domingo, 19 de dezembro de 1999

O pai. 1

           Em Tratado da altura das estrelas  (Sinval Medina, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro e EDIPUCRS,1997), há um “Interlúdio”, página que se quer à parte da narrativa, como bem o demonstram os caracteres distintos daqueles  em que se apresenta o romance. Nele, dirigindo-se ao leitor, o auto-intitulado “relator”, “escriba”, usando uma terceira pessoa, explica a estrutura da sua narrativa, construída em dois eixos principais: as peripécias de um certo lansquenê que, em 1531, anda errante por terras da Península Itálica e a árdua viagem de João Carvalho, piloto que fez, com Fernão de Magalhães, a primeira viagem de circunavegação, partindo de San Lúcar em 1519. E promete descobrir a relação que existe entre tão diferentes histórias o quê, na verdade, é feito, deslindando-se no penúltimo capítulo, “Fresca madrugada”, o novelo que o escriba/relator chama de tortuosa narrativa: o encontro de João Carvalho com o lansquenê que se revela o filho que abandonara à própria sorte em Burneu, uma dezena de anos antes. Na reconciliação que se segue, fica esclarecida a razão da busca do filho,  guardada em segredo durante as suas andanças. Uma procura  que, talvez, seja a desse perseguidor, pressentido pelo pai que dele vai fugindo e se escondendo  No primeiro capítulo, “Trevosa noite”, diz o narrador que ele Já não pode ignorar a raposia do perro que o fareja. Não sabe que é o filho que lhe está ao encalço, esse filho que ficara do outro lado do mundo, entre os infiéis e a quem, já velho, desejaria legar o manuscrito, herdado de Abraão Usque, o rabi que lhe servira de pai, o “Tratado da altura das estrelas”: um registro de idéias perigosas sobre a Terra e o Sol, sobre a influência dos astros no destino dos homens e sobre as minúcias da arte de navegar, tomando como guia as estrelas do céu. A prova de paz entre eles, nesse encontro tardio, é dar o pai ao filho, a posse do manuscrito. O filho, comovido, promete enriquecê-lo com suas próprias notas e deixá-las para os seus descendentes. E nem por um momento, procura explicações para os atos do pai no passado, explicações que o pai não pode dar pois nenhuma  frase, uma só e única frase lhe  ocorreu para se desculpar do amor que nunca lhe tivera; do desejo de vê-lo perecer, ainda bem criança; dos maus tratos que lhe deu quando o soube no navio, embarcado às escondidas; do proposital abandono em terra estranha ao recusar a proposta feita pelo rei de Lucan quando soube que o seu filho havia sido feito prisioneiro e que, em terra, havia um menino, filho do almirante da esquadra: Se o almirante retém meu filho da forma como o faz, nada mais certo que de minha parte, prenda o filho dele para, assim, nos pormos em igualdade de condições. Afinal, temos em mãos a mesma moeda, tão somente do lado inverso.
          João Carvalho, que se refugiara, célere, no barco, ao ver a luta, que haviam empreendido com os naturais da terra ser perdida, ri muito. Já fizera um trato com o príncipe que aprisionara, já recebera o pagamento e, então responde: O menino nada vale, senhores, motivo pelo qual rogo-lhes o favor de liberá-lo sem maiores exigências; a bem da verdade, aquilo nem bom escravo dará, teimoso e pouco serviçal como costuma ser. E voltando-se para o príncipe continua: diz a teu pai que esperaremos até amanhã pela decisão. Ao fim de tal prazo, partiremos para o Maluco deixando para trás sem qualquer remorso o pequeno traste que se proclama meu filho.

 Ficar sabebendo possuir tão pouco preço, deu ao menino razões para escolher ficar entre os mouros.

No prazo azado, os navios, sob o comando de João Carvalho, levantaram âncoras e as velas, favorecidas pelo vento, rumaram em pós de Maluco onde todos os embarcados acreditavam estar as imensas riquezas pelas quais tanto ansiavam.

 

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