Em
Tratado da altura das estrelas (Sinval Medina, Porto Alegre, Instituto
Estadual do Livro e EDIPUCRS,1997), há um “Interlúdio”, página que se quer à
parte da narrativa, como bem o demonstram os caracteres distintos daqueles em que se apresenta o romance. Nele,
dirigindo-se ao leitor, o auto-intitulado “relator”, “escriba”, usando uma
terceira pessoa, explica a estrutura da sua narrativa, construída em dois eixos
principais: as peripécias de um certo lansquenê que, em 1531, anda
errante por terras da Península Itálica e a árdua viagem de João Carvalho,
piloto que fez, com Fernão de Magalhães, a primeira viagem de circunavegação,
partindo de San Lúcar em 1519. E promete descobrir a relação que existe entre
tão diferentes histórias o quê, na verdade, é feito, deslindando-se no
penúltimo capítulo, “Fresca madrugada”, o novelo que o escriba/relator chama de
tortuosa narrativa: o encontro de
João Carvalho com o lansquenê que se revela o filho que abandonara à própria
sorte em Burneu, uma dezena de anos antes. Na reconciliação que se segue, fica
esclarecida a razão da busca do filho,
guardada em segredo durante as suas andanças. Uma procura que, talvez, seja a desse perseguidor,
pressentido pelo pai que dele vai fugindo e se escondendo No primeiro capítulo, “Trevosa noite”, diz o
narrador que ele Já não pode ignorar a
raposia do perro que o fareja. Não sabe que é o filho que lhe está ao
encalço, esse filho que ficara do outro lado do mundo, entre os infiéis e a
quem, já velho, desejaria legar o manuscrito, herdado de Abraão Usque, o rabi
que lhe servira de pai, o “Tratado da altura das estrelas”: um registro de
idéias perigosas sobre a Terra e o Sol, sobre a influência dos astros no
destino dos homens e sobre as minúcias da arte de navegar, tomando como guia as
estrelas do céu. A prova de paz entre eles, nesse encontro tardio, é dar o pai
ao filho, a posse do manuscrito. O filho, comovido, promete enriquecê-lo com
suas próprias notas e deixá-las para os seus descendentes. E nem por um
momento, procura explicações para os atos do pai no passado, explicações que o
pai não pode dar pois nenhuma frase, uma só e única frase lhe ocorreu para se
desculpar do amor que nunca lhe tivera; do desejo de vê-lo perecer, ainda bem
criança; dos maus tratos que lhe deu quando o soube no navio, embarcado às
escondidas; do proposital abandono em terra estranha ao recusar a proposta
feita pelo rei de Lucan quando soube que o seu filho havia sido feito
prisioneiro e que, em terra, havia um menino, filho do almirante da esquadra: Se o almirante retém meu filho da forma como
o faz, nada mais certo que de minha parte, prenda o filho dele para, assim, nos
pormos em igualdade de condições. Afinal, temos em mãos a mesma moeda, tão
somente do lado inverso.
João
Carvalho, que se refugiara, célere, no barco, ao ver a luta, que haviam
empreendido com os naturais da terra ser perdida, ri muito. Já fizera um trato
com o príncipe que aprisionara, já recebera o pagamento e, então responde: O
menino nada vale, senhores, motivo pelo qual rogo-lhes o favor de liberá-lo sem
maiores exigências; a bem da verdade, aquilo nem bom escravo dará, teimoso e
pouco serviçal como costuma ser. E voltando-se para o príncipe continua: diz a teu pai que esperaremos até amanhã
pela decisão. Ao fim de tal prazo, partiremos para o Maluco deixando para trás
sem qualquer remorso o pequeno traste que se proclama meu filho.
Ficar sabebendo possuir tão pouco preço, deu
ao menino razões para escolher ficar entre os mouros.
No prazo
azado, os navios, sob o comando de João Carvalho, levantaram âncoras e as
velas, favorecidas pelo vento, rumaram em pós de Maluco onde todos os
embarcados acreditavam estar as imensas riquezas pelas quais tanto ansiavam.
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