domingo, 27 de dezembro de 1998

O índio Paulino.

          Começara a trabalhar, curvado sobre o arado, quando parou o caminhão e o mandaram subir sem maiores explicações. Como ele, apertados uns aos outros, com muito medo nos olhos, estavam muitos. Na primeira parada do caminhão, onde lhes proibiram descer, Paulino perguntou a um homem que passava para onde estavam sendo levados. A resposta o aliviou e aos demais: a uma manifestação na capital, porque a revolução havia fracassado. Aquela que tinha acenado com terra e escola e ferramentas e para a qual Paulino contribuía mesmo quando não dispunha de dinheiro e se via obrigado a vender uma ovelha.
Um dia, perguntou pelo título da terra que lhe haviam prometido. Era preciso ir buscá-lo em La Paz foi a resposta. Paulino vendeu quatro ovelhas, na capital, dormiu ao relento e no Ministério lhe disseram que o homem de posse dos papéis assinados pelo presidente iria logo levá-los.
Os anos passaram e Paulino continuava a dar dinheiro para a reforma agrária, para a revolução, para o sindicato, para a cooperativa, para as estradas, mas os títulos das terras não recebeu.

Agora, junto com outros índios, estava na cidade para a manifestação. Ouviu palavras, em espanhol, que não entendeu e ninguém discursou em aimará. Caminhou, junto com os outros, pelas ruas da cidade, carregando uma faixa cujos dizeres ignorava e quando tudo terminou não achou o caminhão que o levaria de volta.
           Chegou em casa no dia seguinte, depois de andar a noite inteira se enregelando no frio das montanhas e com o estômago a doer de fome e de sede. Na porta do rancho, a mulher e o filho, envolto em trapos, o esperavam. Ela perguntou se lhe haviam dado o título das terras. Antes de cair no sono, respondeu: Ainda não.
 O conto finaliza com essa pequena frase, absurdamente cruel que, no entanto, guarda uma ilusão. Paulino sofrera, obedecendo às ordens, nada entendera do que estava acontecendo na cidade e, abandonado a sua sorte, é obrigado a caminhar distâncias para retornar. Mas, a palavra ainda que pronuncia, ao declarar que não recebeu o título que lhe é devido, diz de uma esperança que o relato, ao mostrar como é enganado pelo que se diz seu dirigente, claramente mostra ser vã.

  “El indio Paulino”, publicado em Narradores bolivianos, da Monte Ávila de Caracas (1969), é um conto de Ricardo Ocampo, nascido em Potosi, em 1928. Testemunha com ironia e compaixão, o abismo que separa a massa indígena boliviana daqueles que falam em seu nome na capital do país. Paulino cultiva a terra que acredita, um dia, será sua. E entre revolução e contra-revolução continua na miséria, enganado sempre por palavras que mal entende: revolução, reforma agrária. Abstrações com certeza. Porque, quase sempre, no Continente, elas são usadas, apenas, em proveito de alguns.

domingo, 20 de dezembro de 1998

Profecia.


         Está de uniforme, mas descalço, dentro de uma jaula. O uniforme está quase irreconhecível pela sua cor indefinida e seus  anrajos. Quando o dia escurece e se acendem as lâmpadas, então chega mais gente para olhar para ele. Durante o dia também vêm, mas são mais escassas, do interior e nervosas, é evidente que têm medo. Na ampla luz do verão, na sonolenta luz do inverno, parece de vez em quando o quê, num tempo fantástico, tão longo e tão curto, foi: um milico tão gago no seu falar como no seu olhar, que depois, em cerimônias públicas se escondia e refugiava dentro de uns óculos como um cego sifilítico ou um animal doente e aterrorizado.
 

           Assim começa Matar a los viejos, romance inédito de Carlos Droguett, cujas primeiras páginas foram publicadas no sexto número, sem data, de Bitzoc, revista de Literatura que aparece em Palma de Mallorca.

            No momento de sua publicação, essas páginas traduziram uma independência e um destemor singularmente raros, pois essas páginas de Carlos Droguett foram julgadas impublicáveis pelos editores. Um deles, chegou a compor o livro, comunicou  isto ao autor e como, também  que bastava uma palavra sua para imprimi-lo. Tal palavra era permitir que fosse retirada do romance a dedicatória.

             Carlos Droguett respondeu que ou o livro saía inteiro, assim como ele o tinha concebido – e a dedicatória dele fazia parte – ou não saía. E o romance permaneceu inédito, com exceção das páginas que apareceram em Bitzoc, antecedidas das palavras tão temidas pelos editores: A Salvador Allende, assassinado na terça-feira 11 de setembro de 1973 por Augusto Pinochet Ugarte, José Toribio Merino Castro, Gustavo Leigh Guzmán y César Mendoza Durán.

              Como inéditas estão, ainda, centenas de páginas porque na Suissa, a salvo de eventuais e possíveis represálias, Carlos Droguett escreveu sem parar, preso ao compromisso que assumiu ao deixar o Chile e ir para o exílio: dar voz aos silenciados pela dor, pela tortura, pelo desaparecimento, pela morte.

              Nas poucas páginas publicadas de Matar a los viejos, o narrar dos crimes da ditadura chilena – depois de tantas semanas, meses, anos de fuzilar gente, de atormentar gente, de afogá-las no mar ou na eletricidade, de ordenar que a levassem à sala de jantar, logo ao banheiro a menina para ser violada na sua presença [...] – são breves e se insinuam em meio à descrição da figura do ditador já, então, preso a uma jaula, no zoológico, exposto à visitação pública. Mesclam-se ao registro dos fatos verdadeiros, dos nomes verdadeiros e do lugar e data verdadeiros – o assassinato de Salvador Allende, do general Bachelet, do general Pratts, o dia 11 de setembro, Santiago do Chile – uma hiperbólica fantasia ao zoomorfizar o ditador e dar-lhe como destino viver entre as grades, como um curioso animal, à espera da porção de carne crua que lhe atiram a cada dois dias.

                Mas, preso e velho, sozinho e acabado, ele ainda infunde medo embora pouco reste do que foi ou do poder que teve. Ignorando a maneira como se deixou caçar como um rato entre o quarto de dormir e a cozinha, com um revólver mais atemorizado do que ele a cair-lhe das mãos e um sorriso servil a se desprender dos lábios, as pessoas ao vê-lo entre as grades se mostram diminuídas e sombrias como se, de repente, tivessem envelhecido ou adoecido. Porque ainda perduram as conseqüências de seus atos nos lutos que ele percebe, nos soluços, nos lamentos, quando já não mais possui a noção do tempo que passa.

                 Então, o romancista lhe completa o retrato, mostrando-o ansioso, os olhos a brilhar, o olfato a reconhecer a bebida familiar que ele engole prazeroso e agradecido, satisfeito, lavado e consagrado. E dele, é vislumbrado na luz de um relâmpago, o copo, os lábios e a barba pelos que ainda deslizavam e fugiam retardadas gotas de sangue. E, agora sim, lhe diz o nome para que não haja dúvidas, para que ninguém  ignore que está falando do ditador chileno do século XX, o das três mil vítimas.

domingo, 13 de dezembro de 1998

A carta.

          Diz José Luis Rouillon que os compilou: são o testemunho do jovem escritor para encontrar o seu estilo. Contos publicados em jornais e revistas de 1934 e 1935 que, juntamente com artigos sobre seus romances, foram reunidos num livro, Cuentos olvidados que a Ediciones de Lima publicou em 1973. Nessa data, José María Árguedas, autor de uma importante obra romanesca que o coloca entre os maiores autores da ficção hispano-americana já havia morrido há quatro anos. Esses primeiros contos, publicados alguns anos antes, contém, sem dúvida, o germe do que virá depois: Yawar fiesta ( 1941), Los ríos profundos (1958), El sexto (1961) e Todas las sangres (1964).
           Assim em “El vengativo”, publicado em La Prensa , Suplemento Dominical de Lima, no dia 9 de dezembro de 1934, já aparece a paixão de um “principal” que irrompe no meio  da serenidade dos índios que estará presente em Todas las sangres, aparecido trinta anos depois. É um narrador que cede a palavra a outro. Não identificado, o primeiro confessa ter estado preso a uma promessa de silêncio que o atormenta. Decide rompê-la por se sentir demasiado humano para poder guardar, mais tempo, o segredo alheio e o faz dando a conhecer a carta que lhe foi escrita por Silvestre.    Silvestre se dirige a ele, chamando-o de irmão e inicia imediatamente o relato: Foi pelas onze e meia da noite. Tinha chovido e fazia frio. No pequeno povoado, meio escondido pelo nevoeiro, ele escuta seu nome ser pronunciado e logo o diálogo em que descobre o relacionamento de Tomascha, um dos interlocutores, com a mulher da qual se julga dono. Sente a raiva invadir seu corpo mas quer saber, pela boca do índio, seu subordinado, o acontecido. Tomascha, sério e quase triste conta da primeira entrega e termina por dizer, convicto: Nem eu, nem a moça, Satanás tem a culpa! Silvestre concorda a meias, dizendo que ela é o Satanás. Nesse momento, mais parece feri-lo dividir a mulher com quem trabalha para ele, pois tal situação os iguala. Como iguais, apertando-se as mãos, se despedem.

          Porém  sozinho,Silvestre se vê diante de uma única realidade: a raiva. E, ao amanhecer, já tem como certo o destino que dará à mulher. Dela, não pronunciará o nome. Nem quando a espera de tocaia; tampouco, ao se aproximar com o punhal na mão e ouvir-lhe o último  grito. Depois, quando envia o índio para tirá-la do abismo onde seu corpo caiu, apunhalado. Com um pedaço de terra e dois novilhos, lhe compra o silêncio. Acredita-se a salvo e aprova, para si mesmo, os próprios atos e com indiferença, torna as costas para o passado, dizendo: Está bem. E pede a quem dirige a carta que jure se calar para sempre.

           A linha final do conto, graficamente igual àquela que antecede a carta, é expressão do narrador primeiro. Confessa aquiescência ao pedido, que o passar dos anos tornará um ônus pesado, e o deixará de cumprir no momento em que resolve faltar com a palavra dada e tornar publica a história de Silvestre. Seu drama – o sofrimento advindo da guarda do segredo – chega ao fim. Desconhecida, permanecerá a conseqüência provocada pelo seu ato: se irá ocorrer a justiça pedida pela vítima, ao ser ferida de morte, ou se ficará impune o crime de Silvestre.

           Uma elucidação que se apresenta sem importância diante das estruturas que regem das relações entre os índios e os “principais”. Tanto Tomascha como Camilo, o índio a quem Silvestre ordena de encontrar o corpo da mulher que assassinara, não titubeiam um só instante em lhe obedecer, ainda que em situações gravíssimas. Um, repetindo, sem discutir, as palavras do patrão, explicando a morte da mulher; o outro, se dispondo, sem uma réplica, a abandonar o povoado onde jamais deverá retornar.

             O próprio Silvestre afirma gritar em tom de mando e que os índios o obedecem como escravos. E cada um de seus atos reafirma a relação, rigidamente hierárquica, ordenando o mundo em que domina apenas uma verdade.
             Descrevendo, na ficção, o que sua experiência de vida – José María Árguedas viveu entre os índios quando pequeno, expressando-se, então, somente em quechua – lhe ensinou e sua condição de antropólogo ratifica, o romancista peruano tem plena consciência de que estaria se afastando da verdade se contasse uma história em que a justiça fosse vencedora. E, já nos seus primeiros contos, parece claro, assim como nos seus romances mais tardios, que não se propõem idealizar a dura e cruel realidade que ele conhece tão a fundo e à qual se mantém fiel no seu mundo ficcional. Ele a delineia como esta realidade se apresenta: muito distante daquilo que somente alguns, no Continente, entendem como o melhor e o mais justo.
                                                                                  tt

domingo, 6 de dezembro de 1998

Morte na rua.

          La muerte en la calle  foi publicado em 1967, um ano depois da morte de José Félix Fuenmayor. Dez anos antes havia saído à luz seu romance Cosme. De sua autoria, também, um livro de relato, Una triste aventura de catorce sabios  e outro de poemas, Musas del trópico.
         Certamente, não se trata de uma obra em livro muito vasta mas, o suficientemente instigante para influenciar os escritores da costa atlântica colombiana, o Grupo de Barranquilla, do qual também fazia parte Gabriel García Márquez.

          Jornalista de vasta atividade, dono de uma grande biblioteca onde abundavam, além dos títulos em espanhol, aqueles em inglês e francês, José Félix Fuenmayor era um dos veteranos do grupo e, com sua prosa simples, precisa e transparente, foi um dos modelos a ser seguido.

          Sete de seus inovadores relatos que fazem parte do livro La muerte en la calle foram  cedidos à Crónica, um semanário esportivo e literário, criado pelo Grupo de Barranquilla em abril de 1950. Teve origem num momento de grande importância do futebol no país e pretendeu, como diz Dasso Saldívar na sua  biografia de Gabriel García Márquez, El viaje a la semilla  (Madrid, Alfaguara, 1997), utilizar o esporte como anzol comercial para fazer e difundir o que realmente lhes interessava: o jornalismo e a literatura. Mas, se o destino de Crónica acabou sendo o da maioria das revistas de sua época – decair e desaparecer – o quê, de fato, aconteceu quatorze meses após, ela deu ensejo a fazer conhecidas algumas obras que somente sairiam em livro muitos anos depois: os melhores contos de Ojos de perro azul  de Gabriel García Márquez  e de La muerte en la calle de José Félix Fenmayor, dentre outros.

           “La muerte en la calle”, que dá título ao volume, é um dos mais belos e sugestivos  da coleção. Num hábil manejo da técnica narrativa, José Félix Fuenmayor aprofunda, em poucas páginas, uma realidade plena de significados. O conto se inicia com uma pequena frase trivial: Hoje um cachorro latiu para mim. E o parágrafo completa a descrição dos movimentos do animal que, no segundo parágrafo, será esquecido porque o narrador passa a se ocupar de si mesmo, admirado de ter se sentado num pequeno muro da calçada, pois já estava a caminho de casa. Conclui que suas pernas não tem mais condições de levá-lo mais adiante.  Pela primeira vez pensa que sua casa é longe, que na verdade, não é uma casa mas uma toca nas aforas da cidade e revela sua condição de mendigo.

             Um mendigo que possui método: tem os seus conhecidos, a quem considera amigos, e não pede esmola ao mesmo todos os dias para deixá-lo descansar. Pede só o que precisa e quando precisa. E só fala se alguém demonstra interesse pelo que tem a dizer: pequenas coisas que lhe dizem respeito porque, sobre outras, pouco sabe. O quê significa que passa o tempo todo calado como se fosse mudo.

               E é num singelo monologar para si mesmo que os pobres fatos de seu cotidiano vão emergindo: como achou onde morar, como resolveu o problema da chuva, como se defende da maldade dos meninos. Logo, sua história de filho da pobreza vai se traçando, entremeada com as ingênuas reflexões que as perdas e os abandonos e a solidão lhe permitem elaborar. Insinuando-se, pouco a pouco, a gradual perda de forças e a sua estranheza em perceber que a rua o vai abandonando, que o muro no qual está sentado se eleva como uma nuvem e o conduz, sozinho, como sempre vivera, e no silêncio, para o espaço dos reencontros daqueles que já deixaram a vida.

                Anônimo ele viveu e, assim, anônimo, na rua, ele morreu. Um homem qualquer que José Félix Fuenmayor surpreende no breve momento que antecede seu fim e cujo perfil, o de um miserável, sem lugar ao sol, ele constrói com a firmeza  de quem, não somente é mestre da palavra mas principalmente aspira a se comprometer com a realidade de sua gente.

segunda-feira, 30 de novembro de 1998

Perseguido

           Rafael Maluenda, desde muito jovem, se dedicou ao jornalismo. Durante  muitos anos foi redator de El Mercurio de Santiago do Chile e dele era diretor quando morreu em 1963. Também exerceu, austeramente, a crítica literária o que lhe valeu não poucos inimigos. E escreveu romances e contos. Dentre eles se distingue “Perseguido”, um conto que, no dizer de Juan Loveluck, se distingue pela sobriedade e plena claridade formal. Ele se constrói em duas partes que se intercalam. Uma, descreve a caminhada do perseguido na sua fuga e a outra, os movimentos do grupo de soldados que o perseguem.


         O relato se inicia com o perseguido internando-se num caminho sombrio e perigoso. O narrador lhe conhece os pensamentos e lhe descreve cada gesto, buscando a defesa em caso de necessidade. E nota o silêncio que o rodeia nesse caminhar noturno em que tudo que o envolve e ao cavalo se mostra em repouso: Protegidos pela sombra, ginete e cavalo seguiam com pausada marcha em caminho.

         Um breve espaço em branco irá separar este texto do seguinte em que será narrada a ação dos perseguidores: eram dez e tomaram a direção oposta. Vestiam longos ponchos e somente o quepe e os sabres lhe revelavam a profissão. Quase três horas os separavam daquele a quem buscavam.

          Novo espaço em branco e, outra vez, o caminho do perseguido. Agora, o narrador se alonga em descrever a paisagem, áspera, inacessível até para as cabras selvagens: aquelas paragens apareciam como visão de um mundo fantástico, um mundo de sombras onde tudo o sendeiro, os taipais, as árvores, as colinas, a massa informe do bosque, se destacavam negros sobre a indefinida negrura do espaço. E tudo era paz, antecedendo um amanhecer saturado de perfumes que de azul claro passou a róseo, representando essa claridade um perigo para o cavaleiro solitário.

            E houve logo o tilintar de metais, percebido pelo fugitivo e houve, logo o estrondo dos tiros e a perseguição louca através da nuvem de pó que se levantava na planície e a mais louca idéia de fuga: enfrentar a subida quase vertical, quase inverossímil.

            O ritmo do conto se acelera nessa ânsia de captura que domina os soldados. Nessa luta pela sobrevivência que leva o fugitivo cada vez mais para o alto na montanha inóspita.

             Os soldados o vêem no alto iluminado principalmente pelo primeiro raio de sol que emergia sobre os cimos, depois foi como se tivesse se dissolvido no ar. Quando  chegaram no cimo da montanha, nada encontraram além da terrível fenda que a separava em dois. E, incógnito para eles e para o leitor o destino do fugitivo. Como incógnita, a razão de sua fuga e da perseguição de que foi vítima.

              Como herói ele se mostra quando dribla as balas, quando ascende a montanha e se mostra iluminado, imune a pontarias. Quando desaparece sem deixar rastros. Vencidos, atônitos, os perseguidores. Como cenário, uma natureza vibrante, de águas sonoras, de pássaros, de perfumes, de luzes, estranha à paixão dos homens. Paixão que Rafael Maluenda apenas esboçou nesse Bem e nesse Mal que se enfrentam e cujas fronteiras se diluem no sugestivo emprego dos elementos dramáticos que acabam por se anular nesse misterioso final todo pleno de incertezas.

              E a beleza do relato em que se entremeiam, concisas, a rapidez da ação e o desenho da paisagem, fazem de “Perseguido” um dos mais perfeitos contos dessa Antologia do Conto Chileno que a Editorial Universitária de Buenos Aires publicou em 1964.

domingo, 22 de novembro de 1998

Os aprendizados.

            -Pode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem gente – dizia um velho alto e magro para o meu tio Juca, que me levara para o colégio de Itabaiana. Para quem vinha da vida solta do engenho era o início da prisão e do sentir-se muito só.

 Carlos de Melo, que logo será apelidado de Doidinho, era impaciente, fazia tudo às carreiras, chorava mas, no colégio irá comer, como os outros, a ração sem gosto, levará os bolos que lhe incharão as mãos, como os outros e, como todos (ou quase), fará progressos nos estudos. E, terá um amigo e um namoro feito de olhares e sorrisos.

            Os duros aprendizados se sucedem, a solidão daquele que nunca recebe visitas, os castigos sem sentido. A busca de socorro na carta escrita às escondidas. E a longa, lenta, contagem do tempo para as férias. A ansiosa espera do momento em que alguém venha buscá-lo para ir embora quando todos os alunos foram saindo com os pais.  E, na  incerteza, a mágoa se instalando, profunda, nesse vazio de mais um dia de espera.

Quando, finalmente, aparece José Ludovina, o enviado do avô para levá-lo, a alegria o faz esquecer as queixas. Já sentado no trem, pensa na fuga que planejara diante do abandono em que se vira e tudo o que vê se dilui na única imagem que prevalece: o engenho Santa Rosa para onde o trem corria às carreiras. Depois, a estação, os caminhos cobertos de lama, o açude, os canários cantando, o bom silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alguma pedra escondida no roçado. E o coração batendo de chegar em casa. E os reencontros. Os moleques, ignorando quanto ele tinha aprendido, rondavam para contar as novidades; a recuperação da meninice com os pés descalços a correr pela horta, pela beira do rio vendo, outra vez, os trabalhadores com as calças arregaçadas, com lama até os joelhos, os pastoreadores com as roupas em tiras e sujas: limpavam as bicheiras do gado, separavam os bezerros das vacas de leite, botavam ração nos cochosmiseráveis sem nome, conhecidos, como os bois, por alcunhas. E era o agrado de todos e eram as  pamonhas comidas com a ganância de pobre em  mesa  de rico, e eram os lençóis cheirando a limpo, e o leite tirado na hora e o banho na água fria do rio. Era o querer imitar o trabalho dos moleques, levando a boiada para o pasto. A briga com o primo. A carta recebida, dando-lhe importância. A tristeza da morte do pai, empanando a alegria da festa de São Pedro com sua fogueira queimando no meio do pátio.

A trégua, porém,  termina no tempo que advém da volta para o colégio. Carlos de Melo chega na estação para pegar o trem, com a agonia de quem se despede do mundo, depois dos poucos dias de liberdade. E quando chega ao colégio, agora, já sabe o que o espera: tornar a ser o adolescente encarcerado.

Doidinho foi publicado em 1933, um ano depois de Menino de engenho e um ano antes  de Bangüê, a  trilogia com que José Lins do Rego inicia sua carreira de romancista. Como nos outros dois romances, a voz ficcional é um eu memorialista que registra essa tristeza de ser sozinho na idade que pouco entende de si mesmo e dos outros. Um despontar de sentimentos e emoções do qual não está alheio o mundo dividido em classes onde vive, mas que ele só percebe para ter pena dos pobres depois de ter lido Coração.

As férias, essa trégua feliz entre uma e outra prisão no colégio, então, serviu, também, para que ele se desse conta que no engenho Santa Rosa, o seu paraíso, havia gente mais pobre e mais infeliz do que aquela que povoava suas leituras na escola.

                               

                                  

domingo, 15 de novembro de 1998

Te Deum

          Foi publicado, primeiro, em Papeles de Son Armadans, revista de Palma de Mallorca, dirigida por Camilo José Cela. Um ano depois, em 1977, aparece na Revista Casa de  las Américas de Cuba: “Sobre la ausencia”, um texto de Carlos Droguett, escrito entre o 31 de agosto de 1975 e o 31 de julho de 1976. Um grandioso texto em que a realidade e a ficção se misturam para um registro que, certamente, jamais constará da História Oficial.

          Em princípio, é a descrição do Te Deum que a Junta Militar chilena mandou rezar pelo acontecido no dia 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile.

          Carlos Droguett inicia dizendo que na realidade, a cerimônia não chegou a seu término e que as páginas que seguem testemunham as circunstâncias em que o incidente aconteceu. Um incidente que, na escrita de Carlos Droguett é de um exacerbado fantástico que, no entanto se  ameniza se não for esquecido o quê acabara de ocorrer no Chile  e continuava a ocorrer. Antes de narrá-lo, porém, Carlos Droguett retorna no tempo para relatar a entrevista dos membros da Junta de Governo com o Arcebispo de Santiago para pedir-lhe a realização da cerimônia.Estavam numa enorme sala e as palavras eram como gotas no silêncio. Na rua, soavam disparos, ruídos de tropas, de carros de guerra e, na indiferença do recinto, penetrava um pouco da fumaça que os tanques alinhados, lá embaixo, queimavam ao longo da rua.

             O presidente da Junta se expressa, no dizer do narrador, balbuciando.  Sentia-se incomodado e, assim, sorria, para pedir o que lhe era tão urgente e imprescindível: um espaço para o ritual religioso que iria significar o acordo público da  Igreja para o crime que haviam perpetrado.  A resposta lhe chega com distante indiferença, pronunciada por alguém que fala sem alegria, com cansaço, com persistente aborrecimento. O arcebispo contou as botas presentes, negando permitir a cerimônia na Escola Militar – a Igreja não é um regimento, general – e começou a embrabecer para logo se enfurecer, guardando, porém, uma impassibilidade necessária para estender a mão em despedida e conduzi-los à saída. Disse, então, que a igreja da Gratidão Nacional era um belo templo, muito unido à História do Chile, a seu exército, erigida em ação de graças logo depois do fim da guerra do Pacífico, quando o general Baquedano regressou vitorioso de Lima [..]. Que lhes parece para cumprir a promessa que desejam ?

               Porque, no início da entrevista já havia sido muito claro: A Catedral permanecerá fechada, não a abriremos, não temos nada que celebrar, suponho que o senhor, general, saiba o que significa um Te Deum, de minha parte não vejo motivos para elevar ação de graças pelos trágicos acontecimentos do dia 11.

domingo, 8 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: Os tipos


           O empenho em ridicularizar a sociedade que, de uma forma ou de outra, o marginalizou fez com que Afonso Henriques de Lima Barreto pontilhasse Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, de sátiras e ironias, cristalizadas em situações e em vários tipos que povoam o romance.

            Por um lado, claramente expressa essa divisão de classes – as divisões que inventamos -, bem esquematizada em bem vestidos e mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, percebidos na entrada do manicômio onde estava internado Policarpo Quaresma e só nivelados pelo mesmo “respeito”, pela mesma “concentração”, pela mesma “ponta de pavor nos olhos”. Ou, surpreendidos nas ruas: damas elegantes com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido, operários em tamancos, peralvilhos à última moda, mulheres de chita.  Por outro lado, a constatação do ridículo, fixada em tipos que ora criticam uma situação, ora uma classe. Assim, Filizardo. Embora portando tal nome, é um pobre coitado que trabalha no roçado para Policarpo Quaresma. Inquirido pela moça da cidade, responde que não planta para si mesmo porque não pode esperar o crescimento do que plantou para comer, que a terra não é dele, que, além disso, há as formigas e que tampouco tem ferramentas pois essas são dadas pelo governo aos italianos e aos alemães. E, conclui: Governo não gosta de nós. Sua mulher é Sinhá Chica, uma velha cafusa, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o município. Não havia quem, como ela, soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas medicinais: a língua de vaca, a silvina, o cipó-chumbo – toda aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos das árvores”.       Parteira, em toda a redondeza, fossem pobres ou remediados, era ela quem assistia os partos. Era ela quem eliminava os vermes das plantações, quem afastava o espírito maligno que se fazia presente para o malMas, o doutor Campos, o médico, dela não tinha ciúmes e nunca apelou para as leis que vedavam o exercício de sua transcendente medicina. Porque, no interior do país, as duas medicinas coexistem sem raiva, diz Lima Barreto pois ambas oferecem o que a população necessita. Assim, enquanto Sinhá Chica trata os miseráveis e os pobretões, o doutor Campos atende os mais ricos e cultos cuja evolução mental exigia a medicina regular e oficial. Ele era alto e  gordo, pançudo, um pouco, tinha os olhos castanhos quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz mal feito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Prosperara na sua clínica, embora não gastasse muita energia para isso. Tinha uma meia dúzia de receitas e conseguira enquadrar as doenças locais no seu reduzido formulário. E, presidente da Câmara Municipal, era uma das pessoas mais respeitáveis da pequena cidade. Quando, jovialmente, cortesmente, pedia um favor a alguém, não sendo atendido, aplicava as Leis Municipais fossem elas severas ou não.

          Igualmente misturando o exercício da Medicina com ambiciosos interesses pessoais, o outro médico do romance, doutor Armando Borges. Na convicção de que ser médico de um hospital particular  não dá fama a ninguém, ele queria cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente da faculdade. Graças às precauções que tomara desde estudante, tinha ótimas relações com o pessoal dos jornais e, assim, de vez em quando, publicava algum folheto – longas compilações cheias de citações em francês, inglês e alemão -, introduzido  por expressões laudatórias.  E comprava livros para forrar sua biblioteca e à noite, as luzes acesas, as janelas abertas, todo de branco, sentava-se a frente de um compêndio. Mas, livro de estudo ou romance, qualquer um deles, o fazia dormir porque o seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral não lhe permitiam grande compreensão de leituras.

            Então, Felizardo e Sinhá Chica têm, no romance uma função critica. Um, personifica  a indolência e falta de iniciativa para o trabalho, ainda que seja para o auto sustento o que lhe ocasiona a marginalização por parte do governo que se dispõe a ajudar somente aos emigrantes estrangeiros; outro, a crendice popular e a situação econômica dos desfavorecidos, levando à procura de recursos médicos diferenciados.

              Igualmente, função crítica, tem os dois médicos. O do interior, dando-se por satisfeito com seu receituário restrito e abusando do poder político que detém; o da cidade, procurando uma situação social elevada a custa de falsos expedientes. E, também, aqueles cuja função  é criticar o exército e os preconceitos e costumes. Todos eles estão perfeitamente inseridos no romance e representam essa realidade nacional cheia de erros, discernida por Lima Barreto nesses começos do século XX. Procurou retratá-la, buscando respostas. Principalmente, fazendo indagações.

domingo, 1 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: a paisagem

           Em 1915, publicava Afonso Henriques de Lima Barreto  o seu segundo romance: Triste fim de Policarpo Quaresma. De acordo com Eugênio Gomes, ele se nutre dos mesmos sentimentos norteadores de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá  que, embora  publicado em 1919, já havia sido escrito entre 1906 e 1907. Sentimentos expressados nos temas que estão sempre presentes  na ficção de Lima Barreto: “o horror ao esnobismo”, “a xenofobia”, “a identificação com o fundo autóctone da raça”, “a revolta contra a doçura de índole que amolece o povo brasileiro”, “o desabafo contra o mundo burocrático”.

            Talvez pelo que nele está implícito – o amor pela terra brasileira –, devesse se acrescentar, também, as referências à paisagem. Na verdade, sempre alguns breves textos  se intercalando no relato.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, além do belo esboço das ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, aparecem aqueles que fixam a natureza. Ambos, na segunda parte da obra, quando o personagem se retira para o “Sossego”, pequeno sítio a duas horas, por estrada de ferro, da capital.

            O capítulo “Espinhos e flores” se inicia com a descrição dos subúrbios. Lima Barreto os classifica, de acordo com a maneira como foram edificados, de  curiosos, responsabilizando para que assim sejam, a topografia montanhosa e, principalmente, os azares das construções: As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, de acordo com elas, se fazem as ruas que se iniciam largas – como boulevares, ele diz – e acabam em estreitas vielas após terem dado voltas inúteis, parecendo fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Ele observa a disposição das casas ora amontoadas, ora extremamente separadas umas das outras, a sua aparência ora humilde, de porta e janela ora imponente a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados, ora uma choupana de pau-a-pique, coberta de zinco ou de palha, ora uma velha  casa da roça. Também observa o desinteresse pelos jardins, em geral pobres, feios e desleixados e o descuido dos responsáveis municipais por ruas e pontilhões.

            Mas, vistos do alto, diz Lima Barreto, há alguma graça na visão desses subúrbios: As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de oca, engastadas nas copas verde negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, [...].

            Mas, sobretudo, é no relato dos afazeres de Policarpo Quaresma, no sítio, que aparecem os textos mais detidqamente relacionados com a paisagem. É uma profusão de luzes, são os ares doces, o farfalhar do mato, o piar das aves, um todo a esvoaçar: os tiês vermelhos, os coleiras, os anuns. Ciciar de cigarras, gemer de rolas, suspiros de bambus. Na cachoeira, a água estremecia na queda e vivia sob uma abóbada de árvores por onde penetrava o sol em pequenas manchas.  Os periquitos, de um verde mais claro, pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão fantástico.

            Dois textos sobressaem. Aquele que descreve a pujança e alegria da natureza face aos cuidados de Policarpo Quaresma: os botões a surgirem, tudo a reverdecer no renascimento das árvores que faz o contentamento do passaredo solto, as rolas em bando, os sanhaços, os papa-capins. De tarde como que todos eles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma; o outro, que fala dessa alegre exuberância que vai além do espontâneo de viver. Na compreensão do narrador, essa alegria é um entoar louvores àquele que nutriu e que protegeu essa vida até há pouco fadada ao descaso. Uma espécie de proselitismo – do qual o romance é pródigo –, fruto de uma certeza, cuja síntese poderia estar na expressão antiga: uma terra que em se plantando tudo dá. E, é o ideal visionário de Policarpo Quaresma que o faz ver, antes mesmo de conhecer as terras que comprara,  as laranjeiras, em flor, olentes, muito brancas, a se  enfileirar pelas encostas das colinas, como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre  tudo aquilo surgia uma linda mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa – era Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...

 

 

 

 

domingo, 25 de outubro de 1998

Carlos Droguett:História e ficção 4

           Francisco de Aguirre foi designado por Pedro de Valdivia, governador de La Serena e de Barco.  No documento, datado de 8 de outubro de 1551, era revogado o poder e o cargo de Juan Núñez de Prado, fundador e governador de Barco.
           Quando, à frente de uns sessenta ou setenta homens, Francisco de Aguirre chega à cidade  de Barco, Juan Núñez de Prado estava ausente. Ainda assim, a primeira providência do recém chegado foi determinar a sua detenção e a de seus capitães e mandar soldados a sua procura. Assim consta em Historia de la Argentina, de Vicente Sierra (Buenos Aires, Unión de Editores Latinos,I).

           Em El hombre que trasladaba las ciudades, romance de Carlos Droguett, publicado pela Noguer de Barcelona em 1973, o relato da chegada de Juan Núñez de Prado na cidade -  ao voltar de sua excursão exploratória pelos arredores  - e sua prisão são narrados no quarto capítulo. Aparece, diz o narrador, envolto no vento. Um verbo na terceira pessoa do plural, viam, introduz a sua imagem: um advérbio, nitidamente, completa o sentido do verbo. Então, viam nitidamente, à tênue luz das estrelas, primeiro, os cascos do cavalo. Logo, ele, o capitão, enrolado duas vezes na capa, trazendo ramos, árvores, arbustos, flores, folhas novas, folhas verdes recém nascidas, recém crescidas, certamente belas e tranquilizadoras. Outra vez, referência ao cavalo, agora, a sua cabeça imóvel. E a surpresa de Francisco de Aguirre ao reconhecê-lo nesse cavaleiro que chegava.


Juan Núñez de Prado vem sonolento e assim, sonolento e entediado responde e pergunta coisas, risonho. Sem transição, separada apenas por uma vírgula, se acrescenta a seqüência que diz do destino dado aos padres da cidade: a prisão. E, no parágrafo seguinte, a voz de Juan Núñez de Prado, já então, preso e amarrado no seu quarto. Dirige-se à Aguirre e quer saber porque foi recebido por ele com beijos e abraços e agora está atado de pés e mãos. O diálogo se estabelece. Um, desejando conhecer o seu destino –-Vais me matar – e o outro se embaralhando em acusações que repousam nas mudanças da cidade  e nos crimes devidos a essas mudanças.


São monólogos de Juan Núñez de Prado que se sucedem, tendo, entre eles,  alguma pergunta de Aguirre que, finalmente, lhe responde o que perguntara: não irá morrer e sim, partir, prisioneiro para o Chile. E diante de uma nova pergunta de Juan Nuñez de Prado – se trazia Deus consigo – Francisco de Aguirre monologa, por sua vez, dizendo de suas relações com a divindade e com a Igreja e, como para se desculpar, afirma: pensa que sou um simples instrumento de umas mão altas e distantes, inalcançáveis para ti e para mim, de umas garras, se queres, que vem tomar posse de ti através do mar, desde Madrid ou através do inferno [...], vim mandado como vós, como Cortés em Nueva Espanha e Pizarro no Peru e é possível que venham outros atrás de mim para me prender.


Muitas outras coisas ele diz, ainda, para o seu prisioneiro e a Conquista vai se delineando nas suas palavras,  mostrando-se não mais como um fato encerrado mas como algo que se prolonga na História do Continente. Nesse seu nunca acabar de ser colonizado. 

domingo, 18 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 3

           Em 1550, Barco foi fundada. A data é uma suposição porque dessa fundação não ficou ata alguma, só testemunhos esclarecem o porquê de seu nome: uma homenagem ao local de nascimento de La Gasca que foi quem autorizou Juan Núñez de Prado a conquistar o território e fundar uma cidade. De acordo com Vicente Sierra na sua História de la Argentina (Buenos Aires, Unión de Editores Latinos,l), pouco se sabe dos primeiros dias dessa  fundação, exceto do esforço de reduzir os índios que habitavam a região. E da visita que lhe fez o capitão Francisco de Villagra quando, não somente cometeu violências contra os índios e soldados como roubou, ao partir, animais e víveres e coaptou soldados para segui-lo.

No romance El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer,1973), de Carlos Droguett, o primeiro capítulo, “Primer traslado”, dá conta dos excessos cometidos pelo capitão Francisco de Villagra e dos esforços de Juan Núñez de Prado para efetuar a mudança da cidade no desejo de afastá-la da jurisdição chilena que pretendia o território onde ela fora fundada.            São seqüências que repetidas vezes emergem do relato, entremeadas a outras nas palavras de um ou outro personagem.
  
             Em relação com as violências de Francisco de Villagra, Vásquez, um dos capitães, diz como ele se apropria dos cavalos, do gado e dos índios, como convence os soldados da cidade a  fazer parte de sua expedição. Guevara, outro dos capitães de Juan Núñez de Prado, conta como os homens  de Villagra entravam pela janela das casas, maltratavam e apunhalavam e degolavam. E Vásquezesclarece: A todos que não querem ir para o Chile eles matam [..], somente deixarão os mortos e feridos, um pobre soldado pesteado, alguns cachorros doentes, alguns cavalos rengos e cegos. E, afirma o padre Carvajal, o capelão: sei que ameaçou a muitos e que assassinou e fez assassinar a alguns, aos tímidos e timoratos que não estão com vós nem com ele, só com o seu medo.

 Igualmente, emergindo do relato, repetidas vezes, as seqüências que dizem da mudança da cidade. São construídas a partir da voz de Juan Núñez de Prado que declara suas intenções de salvar a cidade antes que a levem os outros; que a planeja, indagando do número de carretas para o seu transporte; que a imagina no lugar em que a irá edificar outra vez, mais perto das montanhas, mais perto da neve.

 E no dia 23 de maio de 155l, diz a História Oficial, tudo está pronto para a mudança.. Juan Núñez de Prado a efetivou por escrito, narrando os desmandos de Francisco de Villagra e as razões que o fizeram mudar a cidade de lugar. E diz o texto ficcional: Faremos a mudança e depois escreveremos um memorial, faremos com que as pessoas da cidade assinem e com que o prefeito e os ofendidos por Don Francisco jurem. Nós fazemos uma caridade ao mudá-la de assento, escreveremos ao Rei, contando, minuciosamente, todas essas aventuras e desventuras e lhe pediremos sua bênção.
           Juan Núñez de Prado estava convicto do que fazia e as últimas linhas do capítulo, descrevendo sua partida para o novo lugar da cidade, o mostram numa relação cúmplice com uma natureza ainda não conspurcada e com os pedaços da cidade que viajam nas carretas: Iam mergulhadas já em plena obscuridade, sentia o vento carregado de perfumes de flores e de ervas, odores livres, sem fumaça, sem disparos, sem gritos, sem queixas e aproximou o cavalo da carreta e trotou devagar a seu lado, metendo sua mão entre os móveis, tocando a beira de uma mesa, as botas, a silhueta de um borzeguim, as folhinhas secas de um vaso, o bordado velho de uma cama que pendia solto e distante e se sentiu seguro e respirava agarrado na madeira.

domingo, 11 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 2

           Sem se dar conta de que  um grupo de cristãos acampara em terras que estavam fora de sua jurisdição, Juan Núñez de Prado, num anoitecer de 1550 o ataca. A luta, diz Vicente Sierra na sua  História de la Argentina (Buenos Aires,  Unión de Escritores Latinos, l), durou pouco pois o atacante, percebendo a superioridade do inimigo, optou por se retirar.  Mas, foi perseguido até Barco, cidade que fundara. Ali chegou com seus homens o capitão Francisco de Villagra que ele havia atacado. Na cidade, ele se hospedou no rancho de Alonzo Díaz onde chegou Núñez de Prado para oferecer-lhe sua espada e assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Villagra a devolveu e o abraçou em sinal de concórdia.
          No romance de Carlos Droguett, El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973) que tem origem nesse episódio, a visita é narrada demoradamente. Entre o momento em que batem à porta de Juan Núñez de Prado, anunciando-lhe a chegada do inimigo até aquele em que o capitão Villagra deixa a cidade, a ação e os diálogos são breves e rápidos mas inseridos em cinqüenta páginas nas quais se entremeiam sonhos, pesadelos, descrições do que Juan Núñez de Prado percebe ao seu redor, enumeração de objetos, seqüências em que se sucedem as ações dos soldados, expressão da consciência de Juan Núñez de Prado. Há pequenas informações – apagou a luz, caminhou e apagou a luz do outro quarto e passeou de pés descalços, olhando o chão, sentou-se com desalento na cadeira, ou pegou a espada ou abriu a porta – que antecedem a sua chegada diante do capitão Francisco de Villagra, antes de lhe prestar vassalagem, ajoelhado com a espada diante dele: don Francisco se aproximou dele, ainda sem lhe dizer nada, para assustá-lo, para deixá-lo cheio de dúvidas e tristeza, inerte, desamparado, sozinho, cada vez mais ensimesmado e pesaroso, o pegou pelo braço e o conquistava pouco a pouco, apertando-se contra ele, na direção de seus desejos de conquista, na direção de suas ambições, sugando-o como o vento das planícies, como o mar no golfo, quando o incêndio tinha chegado até a praia e ele via os espanhóis afundados na água gritar com certa tranqüilidade, certa certeza de que a noite não podia durar e, do outro lado, estava o exército dos astecas, imensamente calado e compreendeu, então que tudo isso estava perdido para o índio e ganho para eles [...].

          Fiel ao texto histórico, no texto ficcional um personagem se submete  e o outro se mostra magnânimo. Porém, compete ao ficcionista libertá-los da rigidez a que o documento oficial os condena, humanizando-os: atribui ao capitão Francisco de Villagra intenções ainda não confessadas e com o generoso uso do adjetivo, faz de Juan Núñez de Prado, na sua fragilidade, um homem distante do que foi requerido pela Conquista, quando esteve presente na batalha em que os astecas foram submetidos. Episódio  que se apresenta  no relato nessas lembranças que de maneira fugaz  vez ou outra lhe perpassam pela mente.

           Carlos Droguett não se afasta da realidade do texto histórico. Sim, de sua objetividade e fala de sentimentos, de gestos, de lembranças que individualizam o seu personagem sem deixar de mostrá-lo como parte desse imenso processo histórico que foi a Conquista do Continente.

domingo, 4 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 1


          Na Historia de la Argentina, de Vicente Sierra, (Buenos Aires, Union de Editores Latinos, I), que se atém aos anos compreendidos entre 1492 e 1600, o terceiro capítulo trata do descobrimento da região que hoje se constitui a Argentina e dos conflitos de jurisdição entre os conquistadores. Entre eles, o ocorrido entre Juan Núñez de Prado e Francisco de Villagra.


         A autorização concedida por Pedro de la Gasca a Juan Núñez de Prado para fundar uma cidade em território pretendido pelo governo do Chile como seu, constituiu, para esse governo, uma ameaça, pois, na medida em que uma autoridade ali se instalasse, dominaria as vias de comunicação entre Cuzco e Santiago do Chile. E os conflitos não tardaram a  se produzir.
          Diz Vicente Sierra que, no dia 10 de novembro de 1550, Juan Núñez de Prado se encontrava a umas vinte léguas de Barco, a cidade que havia fundado, quando os índios lhe informaram que em Toamogasta, a cinco léguas dali, havia um grupo de cristãos que, embora tendo visto as cruzes nos tetos das choças, os haviam maltratado cruelmente. Sem se dar conta, Juan Núñez de Prado, que Toamogasta se encontrava a 25 léguas da cidade de Barco e, sobretudo, que ele não era  governador do território mas simples capitão geral de um povoado, ao anoitecer, atacou o acampamento cristão, comandado pelo capitão Francisco de Villagra, que ia, com suas tropas, para o Peru, em socorro de Valdivia.

            Com esse episódio, se inicia o romance El hombre que trasladaba las ciudades, de Carlos Droguett, publicado, em 1973, pela Noguer de Barcelona.

           As primeiras páginas de El hombre que trasladaba las ciudades tratam da fuga de Juan Núñez de Prado do acampamento de Francisco Villagra, atacado sem sucesso. Primeiro, a descrição de uma cena: Juan Núñez de Prado, não nominado, desmontando, como também o fizeram seus capitães Guevara, Vásquez e Santa Cruz. E seu pressentimento  de que o capitão Guevara queria lhe contar como fora essa aventura, que lhe custara muitos soldados, coaptados pelo inimigo. Então, o narrador como que o abandona para se ocupar dos soldados que o seguiam e dos quais, na luz do amanhecer, distinguia as barbas e os bigodes.  O narrador  se afasta  dele para se aproximar mais dos soldados, perceber que sorriam com cansaço, que um ou outro cantarolava como se estivesse bêbado, que algum pronunciava, num queixume, a palavra Madrid e, logo, Sevilha, Málaga. E esses nomes estavam cheios de sol.

           Eleva-se a voz de Guevara para falar das cruzes. Juan Núñez de Prado indaga quais cruzes mas, na verdade, desejando saber tudo sobre os cavalos e os soldados perdidos. Guevara responde que se refere às cruzes das quais falava o cacique ao lembrar a chegada dos soldados de Francisco de Villagra. Essa referência aos dizeres do historiador - os haviam maltratado cruelmente - se faz, então, nas palavras do romancista : uma cena que o simples exame das expressões mostra como dinâmica e cruel. Assim, os verbos (queixar, soluçar, lançar os cavalos sobre as choças), os adjetivos (cruzes miseráveis, toscas, índios feridos, humildes, no chão), os complementos nominais (cruzes miseráveis de carne de índio, cruzes de braços, de pernas, de pequenos corpos de criança). Assim, essa rápida frase que mostra o jovem índio sendo sacrificado na cruz, soluçando quase como um cristão, num ritual interrompido pelos soldados. Eles saltam sobre uma cruz que lhes interceptava o caminho, atirando por cima dela, demonstrando que não esqueciam que eram cristãos e o que viam era uma festa feia e pagã que não lhes correspondia.

           Magistralmente, Carlos Droguett confere ao texto um significado que ultrapassa o histórico e o ficcional ao sugerir o sacrifício do índio, ao dizer da indignação dos soldados diante do sacrifício. Conquistadores, não se dão conta, entretanto, que o ritual dos índios deseja ser igual àquele por eles transmitido como o sacrifício de Deus. Sacrificando um dos seus, os índios pretendem se salvar dessa ira e destruição que lhes vem dos ibéricos e que eles sofrem sem muito entender.

domingo, 27 de setembro de 1998

Mama Zoila


           Alfonso Barrera Valverde começou a publicar aos vinte anos quando era ainda aluno de Direito na Universidade Central do Ecuador. Eram livros de poemas e um poeta ele permanece no romance que a editora Magisterio Espanhol de Madrid publica em 1978: Heredarás um mar que no conoces y lenguas que no sabes. A figura central do romance é Mama Zoila e a ela se dedicam os dois primeiros capítulos que o compõem. Muito pobre, sozinha porque os filhos já se foram, de repente, se vê diante de um problema que não pode resolver: transladar os ossos do marido do lugar em que estão há trinta anos ou pagar os atrasados  para garantir sua permanência no local. Tenta falar com as patroas, com o padre, com o comissário municipal, com o filho doutor e cada vez se interpõem as barreiras que separam os homens dentre os que possuem e os que não possuem poder ou dinheiro. Uma patroa se recusa a interceder por ela junto ao Monsenhor que lhe frequenta a casa; outra, lhe dá conselhos óbvios que ela, sinceramente, agradece. Interpelado, o padre lhe diz que deve se preocupar menos por si mesma e pelos restos do marido – afinal, ambos irão se reencontrar no dia do Juízo Final – e mais pelos seus filhos.E o comissário municipal não tem muito tempo para ouvir – Não tenho muito tempo, assim, é melhor que me diga logo qual é o assunto – mas, ao saber-lhe o nome se declara disposto a colaborar desde que tenha orientação do doutor Ruperto. E´o seu filho mais velho, doutor Ruperto para todos e para ela também: advogado cheio de gravatas, homem exato pela quantidade de goma no cabelo, com um grande cravo vermelho na lapela, não permite que ela, Mama Zoila, dele se aproxime. Sua mulher, seu sogro, seus cunhados lhe aprovam os discursos políticos e a prosperidade e lhe perdoam ser filho de lavadeira com a condição de não precisar cumprimentá-la o que ele tampouco faz.

            Mama Zoila, porém, conhece o seu lugar. E essa humilde consciência de si mesma se expressa com insólito lirismo. Ela é a mulher do povo que se compraz entre os seus e vive no pequeno espaço que lhe é atribuído, iluminada pelo amor que recebeu e pelo que, ainda, é capaz de dar, mesmo se esquecida e abandonada. Acalenta o passado nessas visitas ao cemitério quando parece negar a viuvez; ignora o futuro que não seja imediato. E o presente é a tina de lavar roupa onde os dedos com a água se tornam grossos, compreendendo que a vida, assim com reumatismos e mãos molhadas, dura menos.

domingo, 20 de setembro de 1998

Memórias em setembro


            “Allende” é o último texto de Confieso que he vivido, memórias publicadas em março de 1974. Pablo Neruda diz estar a escrever apenas três dias depois do assassinato do Presidente do Chile o quê torna admirável a tranqüilidade com que o faz. Salvador Allende era para ele “o grande companheiro” e sua morte, a maneira como transcorreu, devem ter-lhe sido imensamente dolorosa como extremamente doloroso deve ter sido assistir o desmoronamento das  ilusões, quanto ao futuro  de seu país, nas mãos daqueles que usurparam um poder legitimamente constituído.

           No entanto, é como se em Pablo Neruda prevalecesse, nesse momento, a razão. Ele se concede forças para sintetizar os motivos que permitiram o golpe, para lembrar outro presidente do Chile, Balmaceda, e fazer um paralelo entre ele e Salvador Allende, ambos conduzidos à morte por querer impedir a entrega das riquezas pátrias ao imperialismo. Muito claramente, afirma: Balmaceda foi levado ao suicídio por negar-se a entregar a riqueza do salitre às companhias estrangeiras. Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Conquista da soberania nacional que foi compreendida como um passo gigantesco no caminho da independência e, resultou, no exterior, em ardente simpatia pelo país.

          Em páginas anteriores, Pablo Neruda relata a emoção que percorreu a Europa quando a companhia norte-americana pretendeu o embargo do cobre chileno. Emoção que não se ateve aos jornais, às rádios, às televisões, mas se expressou em gestos que, no seu entender, ensinaram mais sobre História de nosso tempo do que as cátedras universitárias. Lembra que, no segundo dia do embargo, uma senhora francesa, modesta, de uma pequena cidade do interior, mandou para a Embaixada chilena em Paris, uma nota de cem francos, fruto de suas economias, que ela oferecia para ajudar a defender o cobre chileno. Junto, enviava uma carta de adesão calorosa, assinada pelos habitantes da cidade, pelo prefeito, pelo padre, pelos operários, pelos desportistas e pelos estudantes.

            Esse entusiasmo, diz Pablo Neruda, apaixonava a França e a Europa inteira, e fazia de Salvador Allende um homem universal. Ele havia transformado o Chile num país que passou a existir, que, pela primeira vez, passou a ter uma fisionomia própria, diferenciando-se dessa multidão de outros, mergulhados na tristeza do subdesenvolvimento.

          Essas obras, porém, e esses feitos enfureciam os inimigos da libertação do país. E tanques e aviões entraram em ação para lutar intrepidamente contra um só homem: o presidente da república do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem mais companhia do que seu grande coração, envolto em fumaça e chamas. Foi-lhe dado o fim exigido pela potência estrangeira e seu cadáver foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher que levava com ela toda a dor do mundo.

          Doze dias depois, morria Pablo Neruda. A romancista Isabel Allende, no seu primeiro romance La casa de los espíritus (1982), conta que ele agonizou na sua casa perto do mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram seu desejo de continuar vivendo. Seus amigos não puderam se aproximar porque estavam fora da lei, prófugos, exilados ou mortos e o cortejo fúnebre percorreu as ruas entre duas filas de soldados com metralhadoras. Mas, as vozes se levantaram e o ar ser encheu das consignas proibidas. Seu funeral se converteu no ato simbólico de enterrar a liberdade.

domingo, 13 de setembro de 1998

Os amores de Tupambay


                                                                                              Para Cicinha
 
          Francisco Espínola morreu, diz Eduardo Galeano, quando voaram em pedaços os restos do Uruguai democrático. Era agosto de 1973 . Quarenta anos antes tinha publicado seu romance Sombras sobre la tierra, hoje, um clássico da Literatura Uruguaia: sombria pintura de pedaços de vida de um bordel interiorano e de momentos vividos em humildes tascas nas aforas de uma pequena cidade.
           Sombras sobre la tierra não possui trama romanesca. O relato gira em torno de Juan Carlos, jovem órfão e rico. É ele que determina a profundidade do relato quando tenta refletir sobre o mundo que o rodeia. E este é um mundo de inocências, embora habitado por prostitutas e bêbados, onde, ainda que em meio a pobreza, prevaleça a cordialidade: seja entre as donas de bordel e suas pupilas, entre as próprias pupilas e seus clientes, ou o médico ou o padre que aparecem para o controle sanitário, ou para uma extrema-unção; seja entre os demais personagens, embora possam ser apenas uns pobres coitados. Ou, onde prevalece um afeto. Aquele que une Juan Carlos a sua empregada, a seus amigos, às pupilas do bordel, a seus protegidos. Que une as prostitutas à cadelinha Milonguita ou Manuel Benítez a seu cachorro Tupambay.
          


            Manuel Benitez é um índio velho com quatro pelos duros, caídos, de bigode. E um olhar dulcíssimo, nos olhos eternamente injetados de sangue. O cachorro é um cusco feio que o dono chama Coco ou Tupambay, conforme o seu humor: quando está irritado, diz Tupambay e quando fica ensimesmado e triste, fala Coco.

           E Coco/Tupambay anda atrás de Milonguita. Mas as damas do bordel protegem, na cachorrinha, uma virtude que não mais possuem e ameaçam o pretendente com vassouradas, pedras e água quente, argumentando que é um cão feio e mendigo. Mas, recusam, igualmente, outros candidatos e mantém Milonguita prisioneira. No meio da calçada, diante da porta, com intenso olhar, Tupambay passa o dia. O dono o chama e ele não atende e só volta para casa no colo de Manuel Benítez, já impaciente, mas compreensivo quando promete: - Coco! Não fique triste Coquito! Algumas temos que ganhar! Se Deus quiser vamos roubar a cachorra!

           E soam as três horas da manhã quando, obedecendo ao encontro marcado, sai Margarita de casa e, no pátio, tira Milonguita da casinha, onde estava fechada, e a entrega para ser levada a Manuel Benítez que já a esperava no seu rancho.
         
          A história desse pequeno e humilde amor, em Sombras sobre la tierra, é contada aos poucos e se entrelaça com aquela dos humanos. Deles, no entanto, os sentimentos se desencontram: Juan Carlos confessa, muitas vezes, seu amor por Nena. Também o seu desejo de tirá-la do bordel. Mas, tampouco pode se impedir de, alguma vez, exclamar: Nena! Nena! Por que você é o que é? E tudo – brigas e reconciliações – continua como antes.

            Sombras sobre la tierra termina sem dizer do destino de cada um. Parece que, entre todos, só Tupambay e Milonguita foram felizes.