domingo, 13 de dezembro de 1998

A carta.

          Diz José Luis Rouillon que os compilou: são o testemunho do jovem escritor para encontrar o seu estilo. Contos publicados em jornais e revistas de 1934 e 1935 que, juntamente com artigos sobre seus romances, foram reunidos num livro, Cuentos olvidados que a Ediciones de Lima publicou em 1973. Nessa data, José María Árguedas, autor de uma importante obra romanesca que o coloca entre os maiores autores da ficção hispano-americana já havia morrido há quatro anos. Esses primeiros contos, publicados alguns anos antes, contém, sem dúvida, o germe do que virá depois: Yawar fiesta ( 1941), Los ríos profundos (1958), El sexto (1961) e Todas las sangres (1964).
           Assim em “El vengativo”, publicado em La Prensa , Suplemento Dominical de Lima, no dia 9 de dezembro de 1934, já aparece a paixão de um “principal” que irrompe no meio  da serenidade dos índios que estará presente em Todas las sangres, aparecido trinta anos depois. É um narrador que cede a palavra a outro. Não identificado, o primeiro confessa ter estado preso a uma promessa de silêncio que o atormenta. Decide rompê-la por se sentir demasiado humano para poder guardar, mais tempo, o segredo alheio e o faz dando a conhecer a carta que lhe foi escrita por Silvestre.    Silvestre se dirige a ele, chamando-o de irmão e inicia imediatamente o relato: Foi pelas onze e meia da noite. Tinha chovido e fazia frio. No pequeno povoado, meio escondido pelo nevoeiro, ele escuta seu nome ser pronunciado e logo o diálogo em que descobre o relacionamento de Tomascha, um dos interlocutores, com a mulher da qual se julga dono. Sente a raiva invadir seu corpo mas quer saber, pela boca do índio, seu subordinado, o acontecido. Tomascha, sério e quase triste conta da primeira entrega e termina por dizer, convicto: Nem eu, nem a moça, Satanás tem a culpa! Silvestre concorda a meias, dizendo que ela é o Satanás. Nesse momento, mais parece feri-lo dividir a mulher com quem trabalha para ele, pois tal situação os iguala. Como iguais, apertando-se as mãos, se despedem.

          Porém  sozinho,Silvestre se vê diante de uma única realidade: a raiva. E, ao amanhecer, já tem como certo o destino que dará à mulher. Dela, não pronunciará o nome. Nem quando a espera de tocaia; tampouco, ao se aproximar com o punhal na mão e ouvir-lhe o último  grito. Depois, quando envia o índio para tirá-la do abismo onde seu corpo caiu, apunhalado. Com um pedaço de terra e dois novilhos, lhe compra o silêncio. Acredita-se a salvo e aprova, para si mesmo, os próprios atos e com indiferença, torna as costas para o passado, dizendo: Está bem. E pede a quem dirige a carta que jure se calar para sempre.

           A linha final do conto, graficamente igual àquela que antecede a carta, é expressão do narrador primeiro. Confessa aquiescência ao pedido, que o passar dos anos tornará um ônus pesado, e o deixará de cumprir no momento em que resolve faltar com a palavra dada e tornar publica a história de Silvestre. Seu drama – o sofrimento advindo da guarda do segredo – chega ao fim. Desconhecida, permanecerá a conseqüência provocada pelo seu ato: se irá ocorrer a justiça pedida pela vítima, ao ser ferida de morte, ou se ficará impune o crime de Silvestre.

           Uma elucidação que se apresenta sem importância diante das estruturas que regem das relações entre os índios e os “principais”. Tanto Tomascha como Camilo, o índio a quem Silvestre ordena de encontrar o corpo da mulher que assassinara, não titubeiam um só instante em lhe obedecer, ainda que em situações gravíssimas. Um, repetindo, sem discutir, as palavras do patrão, explicando a morte da mulher; o outro, se dispondo, sem uma réplica, a abandonar o povoado onde jamais deverá retornar.

             O próprio Silvestre afirma gritar em tom de mando e que os índios o obedecem como escravos. E cada um de seus atos reafirma a relação, rigidamente hierárquica, ordenando o mundo em que domina apenas uma verdade.
             Descrevendo, na ficção, o que sua experiência de vida – José María Árguedas viveu entre os índios quando pequeno, expressando-se, então, somente em quechua – lhe ensinou e sua condição de antropólogo ratifica, o romancista peruano tem plena consciência de que estaria se afastando da verdade se contasse uma história em que a justiça fosse vencedora. E, já nos seus primeiros contos, parece claro, assim como nos seus romances mais tardios, que não se propõem idealizar a dura e cruel realidade que ele conhece tão a fundo e à qual se mantém fiel no seu mundo ficcional. Ele a delineia como esta realidade se apresenta: muito distante daquilo que somente alguns, no Continente, entendem como o melhor e o mais justo.
                                                                                  tt

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