domingo, 20 de dezembro de 1998

Profecia.


         Está de uniforme, mas descalço, dentro de uma jaula. O uniforme está quase irreconhecível pela sua cor indefinida e seus  anrajos. Quando o dia escurece e se acendem as lâmpadas, então chega mais gente para olhar para ele. Durante o dia também vêm, mas são mais escassas, do interior e nervosas, é evidente que têm medo. Na ampla luz do verão, na sonolenta luz do inverno, parece de vez em quando o quê, num tempo fantástico, tão longo e tão curto, foi: um milico tão gago no seu falar como no seu olhar, que depois, em cerimônias públicas se escondia e refugiava dentro de uns óculos como um cego sifilítico ou um animal doente e aterrorizado.
 

           Assim começa Matar a los viejos, romance inédito de Carlos Droguett, cujas primeiras páginas foram publicadas no sexto número, sem data, de Bitzoc, revista de Literatura que aparece em Palma de Mallorca.

            No momento de sua publicação, essas páginas traduziram uma independência e um destemor singularmente raros, pois essas páginas de Carlos Droguett foram julgadas impublicáveis pelos editores. Um deles, chegou a compor o livro, comunicou  isto ao autor e como, também  que bastava uma palavra sua para imprimi-lo. Tal palavra era permitir que fosse retirada do romance a dedicatória.

             Carlos Droguett respondeu que ou o livro saía inteiro, assim como ele o tinha concebido – e a dedicatória dele fazia parte – ou não saía. E o romance permaneceu inédito, com exceção das páginas que apareceram em Bitzoc, antecedidas das palavras tão temidas pelos editores: A Salvador Allende, assassinado na terça-feira 11 de setembro de 1973 por Augusto Pinochet Ugarte, José Toribio Merino Castro, Gustavo Leigh Guzmán y César Mendoza Durán.

              Como inéditas estão, ainda, centenas de páginas porque na Suissa, a salvo de eventuais e possíveis represálias, Carlos Droguett escreveu sem parar, preso ao compromisso que assumiu ao deixar o Chile e ir para o exílio: dar voz aos silenciados pela dor, pela tortura, pelo desaparecimento, pela morte.

              Nas poucas páginas publicadas de Matar a los viejos, o narrar dos crimes da ditadura chilena – depois de tantas semanas, meses, anos de fuzilar gente, de atormentar gente, de afogá-las no mar ou na eletricidade, de ordenar que a levassem à sala de jantar, logo ao banheiro a menina para ser violada na sua presença [...] – são breves e se insinuam em meio à descrição da figura do ditador já, então, preso a uma jaula, no zoológico, exposto à visitação pública. Mesclam-se ao registro dos fatos verdadeiros, dos nomes verdadeiros e do lugar e data verdadeiros – o assassinato de Salvador Allende, do general Bachelet, do general Pratts, o dia 11 de setembro, Santiago do Chile – uma hiperbólica fantasia ao zoomorfizar o ditador e dar-lhe como destino viver entre as grades, como um curioso animal, à espera da porção de carne crua que lhe atiram a cada dois dias.

                Mas, preso e velho, sozinho e acabado, ele ainda infunde medo embora pouco reste do que foi ou do poder que teve. Ignorando a maneira como se deixou caçar como um rato entre o quarto de dormir e a cozinha, com um revólver mais atemorizado do que ele a cair-lhe das mãos e um sorriso servil a se desprender dos lábios, as pessoas ao vê-lo entre as grades se mostram diminuídas e sombrias como se, de repente, tivessem envelhecido ou adoecido. Porque ainda perduram as conseqüências de seus atos nos lutos que ele percebe, nos soluços, nos lamentos, quando já não mais possui a noção do tempo que passa.

                 Então, o romancista lhe completa o retrato, mostrando-o ansioso, os olhos a brilhar, o olfato a reconhecer a bebida familiar que ele engole prazeroso e agradecido, satisfeito, lavado e consagrado. E dele, é vislumbrado na luz de um relâmpago, o copo, os lábios e a barba pelos que ainda deslizavam e fugiam retardadas gotas de sangue. E, agora sim, lhe diz o nome para que não haja dúvidas, para que ninguém  ignore que está falando do ditador chileno do século XX, o das três mil vítimas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário