Está de uniforme, mas descalço, dentro de
uma jaula. O uniforme está quase irreconhecível pela sua cor indefinida e
seus anrajos. Quando o dia escurece e se
acendem as lâmpadas, então chega mais gente para olhar para ele. Durante o dia
também vêm, mas são mais escassas, do interior e nervosas, é evidente que têm
medo. Na ampla luz do verão, na sonolenta luz do inverno, parece de vez em quando
o quê, num tempo fantástico, tão longo e tão curto, foi: um milico tão gago no
seu falar como no seu olhar, que depois, em cerimônias públicas se escondia e
refugiava dentro de uns óculos como um cego sifilítico ou um animal doente e
aterrorizado.
Assim começa Matar a los viejos, romance inédito de
Carlos Droguett, cujas primeiras páginas foram publicadas no sexto número, sem
data, de Bitzoc, revista de
Literatura que aparece em Palma de Mallorca.
No
momento de sua publicação, essas páginas traduziram uma independência e um
destemor singularmente raros, pois essas páginas de Carlos Droguett foram
julgadas impublicáveis pelos editores. Um deles, chegou a compor o livro,
comunicou isto ao autor e como, também que bastava uma palavra sua para imprimi-lo. Tal
palavra era permitir que fosse retirada do romance a dedicatória.
Carlos
Droguett respondeu que ou o livro saía inteiro, assim como ele o tinha
concebido – e a dedicatória dele fazia parte – ou não saía. E o romance
permaneceu inédito, com exceção das páginas que apareceram em Bitzoc, antecedidas das palavras tão
temidas pelos editores: A Salvador
Allende, assassinado na terça-feira 11 de setembro de 1973 por Augusto Pinochet
Ugarte, José Toribio Merino Castro, Gustavo Leigh Guzmán y César Mendoza Durán.
Como
inéditas estão, ainda, centenas de páginas porque na Suissa, a salvo de
eventuais e possíveis represálias, Carlos Droguett escreveu sem parar, preso ao
compromisso que assumiu ao deixar o Chile e ir para o exílio: dar voz aos
silenciados pela dor, pela tortura, pelo desaparecimento, pela morte.
Nas
poucas páginas publicadas de Matar a los
viejos, o narrar dos crimes da ditadura chilena – depois de tantas semanas, meses, anos de fuzilar gente, de atormentar
gente, de afogá-las no mar ou na eletricidade, de ordenar que a levassem à sala
de jantar, logo ao banheiro a menina para ser violada na sua presença [...]
– são breves e se insinuam em meio à descrição da figura do ditador já, então,
preso a uma jaula, no zoológico, exposto à visitação pública. Mesclam-se ao
registro dos fatos verdadeiros, dos nomes verdadeiros e do lugar e data
verdadeiros – o assassinato de Salvador Allende, do general Bachelet, do
general Pratts, o dia 11 de setembro, Santiago do Chile – uma hiperbólica
fantasia ao zoomorfizar o ditador e dar-lhe como destino viver entre as grades,
como um curioso animal, à espera da porção de carne crua que lhe atiram a cada
dois dias.
Mas,
preso e velho, sozinho e acabado, ele ainda infunde medo embora pouco reste do
que foi ou do poder que teve. Ignorando a maneira como se deixou caçar como um rato entre o quarto de dormir e a cozinha, com um revólver mais
atemorizado do que ele a cair-lhe das mãos e um sorriso servil a se desprender dos lábios, as pessoas ao vê-lo
entre as grades se mostram diminuídas e sombrias como se, de repente, tivessem
envelhecido ou adoecido. Porque ainda perduram as conseqüências de seus atos
nos lutos que ele percebe, nos soluços, nos lamentos, quando já não mais possui
a noção do tempo que passa.
Então,
o romancista lhe completa o retrato, mostrando-o ansioso, os olhos a brilhar, o
olfato a reconhecer a bebida familiar que ele engole prazeroso e agradecido, satisfeito, lavado e consagrado. E dele, é vislumbrado na luz de um relâmpago, o copo, os lábios e a barba pelos que ainda deslizavam e fugiam retardadas
gotas de sangue. E, agora sim, lhe diz o nome para que não haja dúvidas,
para que ninguém ignore que está falando
do ditador chileno do século XX, o das três mil vítimas.

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