domingo, 11 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 2

           Sem se dar conta de que  um grupo de cristãos acampara em terras que estavam fora de sua jurisdição, Juan Núñez de Prado, num anoitecer de 1550 o ataca. A luta, diz Vicente Sierra na sua  História de la Argentina (Buenos Aires,  Unión de Escritores Latinos, l), durou pouco pois o atacante, percebendo a superioridade do inimigo, optou por se retirar.  Mas, foi perseguido até Barco, cidade que fundara. Ali chegou com seus homens o capitão Francisco de Villagra que ele havia atacado. Na cidade, ele se hospedou no rancho de Alonzo Díaz onde chegou Núñez de Prado para oferecer-lhe sua espada e assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Villagra a devolveu e o abraçou em sinal de concórdia.
          No romance de Carlos Droguett, El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973) que tem origem nesse episódio, a visita é narrada demoradamente. Entre o momento em que batem à porta de Juan Núñez de Prado, anunciando-lhe a chegada do inimigo até aquele em que o capitão Villagra deixa a cidade, a ação e os diálogos são breves e rápidos mas inseridos em cinqüenta páginas nas quais se entremeiam sonhos, pesadelos, descrições do que Juan Núñez de Prado percebe ao seu redor, enumeração de objetos, seqüências em que se sucedem as ações dos soldados, expressão da consciência de Juan Núñez de Prado. Há pequenas informações – apagou a luz, caminhou e apagou a luz do outro quarto e passeou de pés descalços, olhando o chão, sentou-se com desalento na cadeira, ou pegou a espada ou abriu a porta – que antecedem a sua chegada diante do capitão Francisco de Villagra, antes de lhe prestar vassalagem, ajoelhado com a espada diante dele: don Francisco se aproximou dele, ainda sem lhe dizer nada, para assustá-lo, para deixá-lo cheio de dúvidas e tristeza, inerte, desamparado, sozinho, cada vez mais ensimesmado e pesaroso, o pegou pelo braço e o conquistava pouco a pouco, apertando-se contra ele, na direção de seus desejos de conquista, na direção de suas ambições, sugando-o como o vento das planícies, como o mar no golfo, quando o incêndio tinha chegado até a praia e ele via os espanhóis afundados na água gritar com certa tranqüilidade, certa certeza de que a noite não podia durar e, do outro lado, estava o exército dos astecas, imensamente calado e compreendeu, então que tudo isso estava perdido para o índio e ganho para eles [...].

          Fiel ao texto histórico, no texto ficcional um personagem se submete  e o outro se mostra magnânimo. Porém, compete ao ficcionista libertá-los da rigidez a que o documento oficial os condena, humanizando-os: atribui ao capitão Francisco de Villagra intenções ainda não confessadas e com o generoso uso do adjetivo, faz de Juan Núñez de Prado, na sua fragilidade, um homem distante do que foi requerido pela Conquista, quando esteve presente na batalha em que os astecas foram submetidos. Episódio  que se apresenta  no relato nessas lembranças que de maneira fugaz  vez ou outra lhe perpassam pela mente.

           Carlos Droguett não se afasta da realidade do texto histórico. Sim, de sua objetividade e fala de sentimentos, de gestos, de lembranças que individualizam o seu personagem sem deixar de mostrá-lo como parte desse imenso processo histórico que foi a Conquista do Continente.

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