Na Historia de la Argentina, de Vicente Sierra, (Buenos Aires, Union de Editores Latinos, I), que se atém aos anos compreendidos entre 1492 e 1600, o
terceiro capítulo trata do descobrimento da região que hoje se constitui a
Argentina e dos conflitos de jurisdição entre os conquistadores. Entre eles, o
ocorrido entre Juan Núñez de Prado e Francisco de Villagra.
A autorização
concedida por Pedro de la Gasca a Juan Núñez de Prado para fundar uma cidade em
território pretendido pelo governo do Chile como seu, constituiu, para
esse governo, uma ameaça, pois,
na medida em que uma autoridade ali se instalasse, dominaria as vias de comunicação entre Cuzco e Santiago do Chile. E os
conflitos não tardaram a se produzir.
Diz Vicente Sierra que, no dia 10 de novembro de 1550, Juan
Núñez de Prado se encontrava a umas vinte léguas de Barco, a cidade que
havia fundado, quando os índios lhe
informaram que em Toamogasta, a cinco léguas dali, havia um grupo de cristãos
que, embora tendo visto as cruzes nos tetos das choças, os haviam maltratado cruelmente. Sem se dar
conta, Juan Núñez de Prado, que
Toamogasta se encontrava a 25
léguas da cidade de Barco e, sobretudo, que ele não era governador do território mas simples capitão geral de um povoado, ao anoitecer, atacou o acampamento cristão, comandado pelo capitão Francisco de Villagra, que ia,
com suas tropas, para o Peru, em
socorro de Valdivia.
Com esse
episódio, se inicia o romance El hombre que trasladaba las ciudades,
de Carlos Droguett, publicado, em 1973,
pela Noguer de Barcelona.
As
primeiras páginas de El hombre que
trasladaba las ciudades tratam da fuga de Juan Núñez de Prado
do acampamento de Francisco Villagra, atacado sem sucesso. Primeiro, a descrição de uma cena: Juan Núñez de Prado, não nominado,
desmontando, como também o fizeram seus capitães Guevara, Vásquez e Santa Cruz.
E seu pressentimento de que o capitão Guevara queria lhe contar como
fora essa aventura, que lhe
custara muitos soldados,
coaptados pelo inimigo. Então, o
narrador como que o abandona para se ocupar dos soldados que o seguiam e dos
quais, na luz do amanhecer, distinguia as barbas e os bigodes. O narrador
se afasta dele para se aproximar
mais dos soldados, perceber que sorriam com cansaço, que um ou outro
cantarolava como se estivesse bêbado, que algum pronunciava, num queixume, a palavra Madrid e, logo, Sevilha, Málaga. E esses nomes estavam cheios de sol.
Eleva-se a
voz de Guevara para falar das cruzes. Juan Núñez de Prado indaga quais cruzes mas, na
verdade, desejando saber tudo sobre os
cavalos e os soldados perdidos. Guevara responde que se refere às cruzes das
quais falava o cacique ao lembrar a chegada dos soldados de Francisco de
Villagra. Essa referência aos dizeres do historiador - os
haviam maltratado cruelmente
- se faz, então, nas palavras do
romancista : uma cena que o simples exame das expressões mostra como dinâmica e
cruel. Assim, os verbos (queixar, soluçar, lançar os cavalos
sobre as choças), os adjetivos (cruzes miseráveis,
toscas, índios feridos, humildes, no
chão), os complementos nominais (cruzes miseráveis de carne de índio, cruzes de
braços, de pernas, de pequenos corpos de criança). Assim, essa rápida frase
que mostra o jovem índio sendo sacrificado na cruz, soluçando quase como um cristão, num ritual interrompido pelos soldados. Eles
saltam sobre uma cruz que lhes interceptava o caminho, atirando por cima dela,
demonstrando que não esqueciam que eram cristãos e o que viam era uma festa feia e pagã que não lhes
correspondia.
Magistralmente,
Carlos Droguett confere ao texto um significado que ultrapassa o histórico e o
ficcional ao sugerir o sacrifício do índio, ao dizer da indignação dos soldados
diante do sacrifício. Conquistadores, não se dão conta, entretanto, que
o ritual dos índios deseja ser igual àquele por eles transmitido como o
sacrifício de Deus. Sacrificando um dos seus, os índios pretendem se salvar
dessa ira e destruição que lhes vem dos ibéricos e que eles sofrem sem muito
entender.

Nenhum comentário:
Postar um comentário