domingo, 4 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 1


          Na Historia de la Argentina, de Vicente Sierra, (Buenos Aires, Union de Editores Latinos, I), que se atém aos anos compreendidos entre 1492 e 1600, o terceiro capítulo trata do descobrimento da região que hoje se constitui a Argentina e dos conflitos de jurisdição entre os conquistadores. Entre eles, o ocorrido entre Juan Núñez de Prado e Francisco de Villagra.


         A autorização concedida por Pedro de la Gasca a Juan Núñez de Prado para fundar uma cidade em território pretendido pelo governo do Chile como seu, constituiu, para esse governo, uma ameaça, pois, na medida em que uma autoridade ali se instalasse, dominaria as vias de comunicação entre Cuzco e Santiago do Chile. E os conflitos não tardaram a  se produzir.
          Diz Vicente Sierra que, no dia 10 de novembro de 1550, Juan Núñez de Prado se encontrava a umas vinte léguas de Barco, a cidade que havia fundado, quando os índios lhe informaram que em Toamogasta, a cinco léguas dali, havia um grupo de cristãos que, embora tendo visto as cruzes nos tetos das choças, os haviam maltratado cruelmente. Sem se dar conta, Juan Núñez de Prado, que Toamogasta se encontrava a 25 léguas da cidade de Barco e, sobretudo, que ele não era  governador do território mas simples capitão geral de um povoado, ao anoitecer, atacou o acampamento cristão, comandado pelo capitão Francisco de Villagra, que ia, com suas tropas, para o Peru, em socorro de Valdivia.

            Com esse episódio, se inicia o romance El hombre que trasladaba las ciudades, de Carlos Droguett, publicado, em 1973, pela Noguer de Barcelona.

           As primeiras páginas de El hombre que trasladaba las ciudades tratam da fuga de Juan Núñez de Prado do acampamento de Francisco Villagra, atacado sem sucesso. Primeiro, a descrição de uma cena: Juan Núñez de Prado, não nominado, desmontando, como também o fizeram seus capitães Guevara, Vásquez e Santa Cruz. E seu pressentimento  de que o capitão Guevara queria lhe contar como fora essa aventura, que lhe custara muitos soldados, coaptados pelo inimigo. Então, o narrador como que o abandona para se ocupar dos soldados que o seguiam e dos quais, na luz do amanhecer, distinguia as barbas e os bigodes.  O narrador  se afasta  dele para se aproximar mais dos soldados, perceber que sorriam com cansaço, que um ou outro cantarolava como se estivesse bêbado, que algum pronunciava, num queixume, a palavra Madrid e, logo, Sevilha, Málaga. E esses nomes estavam cheios de sol.

           Eleva-se a voz de Guevara para falar das cruzes. Juan Núñez de Prado indaga quais cruzes mas, na verdade, desejando saber tudo sobre os cavalos e os soldados perdidos. Guevara responde que se refere às cruzes das quais falava o cacique ao lembrar a chegada dos soldados de Francisco de Villagra. Essa referência aos dizeres do historiador - os haviam maltratado cruelmente - se faz, então, nas palavras do romancista : uma cena que o simples exame das expressões mostra como dinâmica e cruel. Assim, os verbos (queixar, soluçar, lançar os cavalos sobre as choças), os adjetivos (cruzes miseráveis, toscas, índios feridos, humildes, no chão), os complementos nominais (cruzes miseráveis de carne de índio, cruzes de braços, de pernas, de pequenos corpos de criança). Assim, essa rápida frase que mostra o jovem índio sendo sacrificado na cruz, soluçando quase como um cristão, num ritual interrompido pelos soldados. Eles saltam sobre uma cruz que lhes interceptava o caminho, atirando por cima dela, demonstrando que não esqueciam que eram cristãos e o que viam era uma festa feia e pagã que não lhes correspondia.

           Magistralmente, Carlos Droguett confere ao texto um significado que ultrapassa o histórico e o ficcional ao sugerir o sacrifício do índio, ao dizer da indignação dos soldados diante do sacrifício. Conquistadores, não se dão conta, entretanto, que o ritual dos índios deseja ser igual àquele por eles transmitido como o sacrifício de Deus. Sacrificando um dos seus, os índios pretendem se salvar dessa ira e destruição que lhes vem dos ibéricos e que eles sofrem sem muito entender.

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