domingo, 22 de novembro de 1998

Os aprendizados.

            -Pode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem gente – dizia um velho alto e magro para o meu tio Juca, que me levara para o colégio de Itabaiana. Para quem vinha da vida solta do engenho era o início da prisão e do sentir-se muito só.

 Carlos de Melo, que logo será apelidado de Doidinho, era impaciente, fazia tudo às carreiras, chorava mas, no colégio irá comer, como os outros, a ração sem gosto, levará os bolos que lhe incharão as mãos, como os outros e, como todos (ou quase), fará progressos nos estudos. E, terá um amigo e um namoro feito de olhares e sorrisos.

            Os duros aprendizados se sucedem, a solidão daquele que nunca recebe visitas, os castigos sem sentido. A busca de socorro na carta escrita às escondidas. E a longa, lenta, contagem do tempo para as férias. A ansiosa espera do momento em que alguém venha buscá-lo para ir embora quando todos os alunos foram saindo com os pais.  E, na  incerteza, a mágoa se instalando, profunda, nesse vazio de mais um dia de espera.

Quando, finalmente, aparece José Ludovina, o enviado do avô para levá-lo, a alegria o faz esquecer as queixas. Já sentado no trem, pensa na fuga que planejara diante do abandono em que se vira e tudo o que vê se dilui na única imagem que prevalece: o engenho Santa Rosa para onde o trem corria às carreiras. Depois, a estação, os caminhos cobertos de lama, o açude, os canários cantando, o bom silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alguma pedra escondida no roçado. E o coração batendo de chegar em casa. E os reencontros. Os moleques, ignorando quanto ele tinha aprendido, rondavam para contar as novidades; a recuperação da meninice com os pés descalços a correr pela horta, pela beira do rio vendo, outra vez, os trabalhadores com as calças arregaçadas, com lama até os joelhos, os pastoreadores com as roupas em tiras e sujas: limpavam as bicheiras do gado, separavam os bezerros das vacas de leite, botavam ração nos cochosmiseráveis sem nome, conhecidos, como os bois, por alcunhas. E era o agrado de todos e eram as  pamonhas comidas com a ganância de pobre em  mesa  de rico, e eram os lençóis cheirando a limpo, e o leite tirado na hora e o banho na água fria do rio. Era o querer imitar o trabalho dos moleques, levando a boiada para o pasto. A briga com o primo. A carta recebida, dando-lhe importância. A tristeza da morte do pai, empanando a alegria da festa de São Pedro com sua fogueira queimando no meio do pátio.

A trégua, porém,  termina no tempo que advém da volta para o colégio. Carlos de Melo chega na estação para pegar o trem, com a agonia de quem se despede do mundo, depois dos poucos dias de liberdade. E quando chega ao colégio, agora, já sabe o que o espera: tornar a ser o adolescente encarcerado.

Doidinho foi publicado em 1933, um ano depois de Menino de engenho e um ano antes  de Bangüê, a  trilogia com que José Lins do Rego inicia sua carreira de romancista. Como nos outros dois romances, a voz ficcional é um eu memorialista que registra essa tristeza de ser sozinho na idade que pouco entende de si mesmo e dos outros. Um despontar de sentimentos e emoções do qual não está alheio o mundo dividido em classes onde vive, mas que ele só percebe para ter pena dos pobres depois de ter lido Coração.

As férias, essa trégua feliz entre uma e outra prisão no colégio, então, serviu, também, para que ele se desse conta que no engenho Santa Rosa, o seu paraíso, havia gente mais pobre e mais infeliz do que aquela que povoava suas leituras na escola.

                               

                                  

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