Carlos de Melo, que logo será apelidado de
Doidinho, era impaciente, fazia tudo às carreiras, chorava mas, no colégio irá
comer, como os outros, a ração sem gosto, levará os bolos que lhe incharão as
mãos, como os outros e, como todos (ou quase), fará progressos nos estudos. E,
terá um amigo e um namoro feito de olhares e sorrisos.
Os
duros aprendizados se sucedem, a solidão daquele que nunca recebe visitas, os
castigos sem sentido. A busca de socorro na carta escrita às escondidas. E a
longa, lenta, contagem do tempo para as férias. A ansiosa espera do momento em
que alguém venha buscá-lo para ir embora quando todos os alunos foram saindo com
os pais. E, na incerteza, a mágoa se instalando, profunda,
nesse vazio de mais um dia de espera.
Quando, finalmente, aparece José Ludovina, o
enviado do avô para levá-lo, a alegria o faz esquecer as queixas. Já sentado no
trem, pensa na fuga que planejara diante do abandono em que se vira e tudo o
que vê se dilui na única imagem que prevalece: o engenho Santa Rosa para onde o
trem corria às carreiras. Depois, a estação, os caminhos cobertos de lama, o
açude, os canários cantando, o bom
silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em
alguma pedra escondida no roçado. E o coração batendo de chegar em casa. E
os reencontros. Os moleques, ignorando quanto ele tinha aprendido, rondavam
para contar as novidades; a recuperação da meninice com os pés descalços a
correr pela horta, pela beira do rio vendo, outra vez, os trabalhadores com as calças arregaçadas, com lama até os
joelhos, os pastoreadores com as roupas em tiras e sujas: limpavam as bicheiras do gado, separavam os
bezerros das vacas de leite, botavam
ração nos cochos – miseráveis sem
nome, conhecidos, como os bois, por alcunhas. E era o agrado de
todos e eram as pamonhas comidas com a ganância de pobre em mesa de rico, e eram os lençóis cheirando a
limpo, e o leite tirado na hora e o banho na água fria do rio. Era o querer
imitar o trabalho dos moleques, levando a boiada para o pasto. A briga com o
primo. A carta recebida, dando-lhe importância. A tristeza da morte do pai,
empanando a alegria da festa de São Pedro com sua fogueira queimando no meio do
pátio.
A trégua,
porém, termina no tempo que advém da
volta para o colégio. Carlos de Melo chega na estação para pegar o trem, com a
agonia de quem se despede do mundo, depois dos poucos dias de liberdade. E
quando chega ao colégio, agora, já sabe o que o espera: tornar a ser o
adolescente encarcerado.
Doidinho foi publicado em 1933, um ano
depois de Menino de engenho e um ano
antes de Bangüê, a trilogia com que
José Lins do Rego inicia sua carreira de romancista. Como nos outros dois
romances, a voz ficcional é um eu memorialista que registra essa tristeza de
ser sozinho na idade que pouco entende de si mesmo e dos outros. Um despontar
de sentimentos e emoções do qual não está alheio o mundo dividido em classes
onde vive, mas que ele só percebe para ter pena dos pobres depois de ter lido Coração.
As férias,
essa trégua feliz entre uma e outra prisão no colégio, então, serviu, também,
para que ele se desse conta que no engenho Santa Rosa, o seu paraíso, havia
gente mais pobre e mais infeliz do que aquela que povoava suas leituras na
escola.

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