O
empenho em ridicularizar a sociedade que, de uma forma ou de outra, o
marginalizou fez com que Afonso Henriques de Lima Barreto pontilhasse Triste fim de Policarpo Quaresma,
publicado em 1915, de sátiras e ironias, cristalizadas em situações e em vários
tipos que povoam o romance.
Por
um lado, claramente expressa essa divisão de classes – as divisões que inventamos
-, bem esquematizada em bem vestidos e
mal vestidos, os elegantes e os
pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, percebidos
na entrada do manicômio onde estava internado Policarpo Quaresma e só nivelados
pelo mesmo “respeito”, pela mesma “concentração”, pela mesma “ponta de pavor
nos olhos”. Ou, surpreendidos nas ruas: damas
elegantes com sedas e brocados, evitando
a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido, operários em
tamancos, peralvilhos à última moda,
mulheres de chita. Por
outro lado, a constatação do ridículo, fixada em tipos que ora criticam uma
situação, ora uma classe. Assim, Filizardo. Embora portando tal nome, é um
pobre coitado que trabalha no roçado para Policarpo Quaresma. Inquirido pela
moça da cidade, responde que não planta para si mesmo porque não pode esperar o
crescimento do que plantou para comer, que a terra não é dele, que, além disso,
há as formigas e que tampouco tem ferramentas pois essas são dadas pelo governo
aos italianos e aos alemães. E, conclui: Governo
não gosta de nós. Sua mulher é Sinhá Chica, uma velha cafusa, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira
pairava por sobre todo o município. Não havia quem, como ela, soubesse rezar
dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas
medicinais: a língua de vaca, a silvina, o cipó-chumbo – toda aquela drogaria
que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos das árvores”. Parteira, em toda a redondeza, fossem
pobres ou remediados, era ela quem assistia os partos. Era ela quem eliminava
os vermes das plantações, quem afastava o espírito maligno que se fazia
presente para o malMas, o doutor
Campos, o médico, dela não tinha ciúmes e nunca apelou para as leis que vedavam
o exercício de sua transcendente medicina.
Porque, no interior do país, as duas medicinas coexistem sem raiva, diz Lima
Barreto pois ambas oferecem o que a população necessita. Assim, enquanto Sinhá
Chica trata os miseráveis e os pobretões, o doutor Campos atende os mais ricos
e cultos cuja evolução mental exigia a
medicina regular e oficial. Ele era alto
e gordo, pançudo, um pouco, tinha os
olhos castanhos quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz mal feito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e
já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse
crespo. Prosperara na sua clínica, embora não gastasse muita energia para
isso. Tinha uma meia dúzia de receitas e conseguira enquadrar as doenças locais
no seu reduzido formulário. E, presidente da Câmara Municipal, era uma das
pessoas mais respeitáveis da pequena cidade. Quando, jovialmente, cortesmente,
pedia um favor a alguém, não sendo atendido, aplicava as Leis Municipais fossem
elas severas ou não.
Igualmente
misturando o exercício da Medicina com ambiciosos interesses pessoais, o outro
médico do romance, doutor Armando Borges. Na convicção de que ser médico de um
hospital particular não dá fama a ninguém, ele queria
cargo oficial, médico, diretor ou mesmo
lente da faculdade. Graças às precauções que tomara desde estudante, tinha
ótimas relações com o pessoal dos jornais e, assim, de vez em quando, publicava
algum folheto – longas compilações cheias de citações em francês, inglês e
alemão -, introduzido por expressões
laudatórias. E comprava livros para
forrar sua biblioteca e à noite, as luzes acesas, as janelas abertas, todo de
branco, sentava-se a frente de um compêndio. Mas, livro de estudo ou romance,
qualquer um deles, o fazia dormir porque o seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral não
lhe permitiam grande compreensão de leituras.
Então,
Felizardo e Sinhá Chica têm, no romance uma função critica. Um, personifica a indolência e falta de iniciativa para o
trabalho, ainda que seja para o auto sustento o que lhe ocasiona a
marginalização por parte do governo que se dispõe a ajudar somente aos
emigrantes estrangeiros; outro, a crendice popular e a situação econômica dos
desfavorecidos, levando à procura de recursos médicos diferenciados.
Igualmente,
função crítica, tem os dois médicos. O do interior, dando-se por satisfeito com
seu receituário restrito e abusando do poder político que detém; o da cidade,
procurando uma situação social elevada a custa de falsos expedientes. E,
também, aqueles cuja função é criticar o
exército e os preconceitos e costumes. Todos eles estão perfeitamente inseridos
no romance e representam essa realidade nacional cheia de erros, discernida por
Lima Barreto nesses começos do século XX. Procurou retratá-la, buscando
respostas. Principalmente, fazendo indagações.

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