domingo, 8 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: Os tipos


           O empenho em ridicularizar a sociedade que, de uma forma ou de outra, o marginalizou fez com que Afonso Henriques de Lima Barreto pontilhasse Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, de sátiras e ironias, cristalizadas em situações e em vários tipos que povoam o romance.

            Por um lado, claramente expressa essa divisão de classes – as divisões que inventamos -, bem esquematizada em bem vestidos e mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, percebidos na entrada do manicômio onde estava internado Policarpo Quaresma e só nivelados pelo mesmo “respeito”, pela mesma “concentração”, pela mesma “ponta de pavor nos olhos”. Ou, surpreendidos nas ruas: damas elegantes com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido, operários em tamancos, peralvilhos à última moda, mulheres de chita.  Por outro lado, a constatação do ridículo, fixada em tipos que ora criticam uma situação, ora uma classe. Assim, Filizardo. Embora portando tal nome, é um pobre coitado que trabalha no roçado para Policarpo Quaresma. Inquirido pela moça da cidade, responde que não planta para si mesmo porque não pode esperar o crescimento do que plantou para comer, que a terra não é dele, que, além disso, há as formigas e que tampouco tem ferramentas pois essas são dadas pelo governo aos italianos e aos alemães. E, conclui: Governo não gosta de nós. Sua mulher é Sinhá Chica, uma velha cafusa, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o município. Não havia quem, como ela, soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas medicinais: a língua de vaca, a silvina, o cipó-chumbo – toda aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos das árvores”.       Parteira, em toda a redondeza, fossem pobres ou remediados, era ela quem assistia os partos. Era ela quem eliminava os vermes das plantações, quem afastava o espírito maligno que se fazia presente para o malMas, o doutor Campos, o médico, dela não tinha ciúmes e nunca apelou para as leis que vedavam o exercício de sua transcendente medicina. Porque, no interior do país, as duas medicinas coexistem sem raiva, diz Lima Barreto pois ambas oferecem o que a população necessita. Assim, enquanto Sinhá Chica trata os miseráveis e os pobretões, o doutor Campos atende os mais ricos e cultos cuja evolução mental exigia a medicina regular e oficial. Ele era alto e  gordo, pançudo, um pouco, tinha os olhos castanhos quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz mal feito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Prosperara na sua clínica, embora não gastasse muita energia para isso. Tinha uma meia dúzia de receitas e conseguira enquadrar as doenças locais no seu reduzido formulário. E, presidente da Câmara Municipal, era uma das pessoas mais respeitáveis da pequena cidade. Quando, jovialmente, cortesmente, pedia um favor a alguém, não sendo atendido, aplicava as Leis Municipais fossem elas severas ou não.

          Igualmente misturando o exercício da Medicina com ambiciosos interesses pessoais, o outro médico do romance, doutor Armando Borges. Na convicção de que ser médico de um hospital particular  não dá fama a ninguém, ele queria cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente da faculdade. Graças às precauções que tomara desde estudante, tinha ótimas relações com o pessoal dos jornais e, assim, de vez em quando, publicava algum folheto – longas compilações cheias de citações em francês, inglês e alemão -, introduzido  por expressões laudatórias.  E comprava livros para forrar sua biblioteca e à noite, as luzes acesas, as janelas abertas, todo de branco, sentava-se a frente de um compêndio. Mas, livro de estudo ou romance, qualquer um deles, o fazia dormir porque o seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral não lhe permitiam grande compreensão de leituras.

            Então, Felizardo e Sinhá Chica têm, no romance uma função critica. Um, personifica  a indolência e falta de iniciativa para o trabalho, ainda que seja para o auto sustento o que lhe ocasiona a marginalização por parte do governo que se dispõe a ajudar somente aos emigrantes estrangeiros; outro, a crendice popular e a situação econômica dos desfavorecidos, levando à procura de recursos médicos diferenciados.

              Igualmente, função crítica, tem os dois médicos. O do interior, dando-se por satisfeito com seu receituário restrito e abusando do poder político que detém; o da cidade, procurando uma situação social elevada a custa de falsos expedientes. E, também, aqueles cuja função  é criticar o exército e os preconceitos e costumes. Todos eles estão perfeitamente inseridos no romance e representam essa realidade nacional cheia de erros, discernida por Lima Barreto nesses começos do século XX. Procurou retratá-la, buscando respostas. Principalmente, fazendo indagações.

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