domingo, 1 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: a paisagem

           Em 1915, publicava Afonso Henriques de Lima Barreto  o seu segundo romance: Triste fim de Policarpo Quaresma. De acordo com Eugênio Gomes, ele se nutre dos mesmos sentimentos norteadores de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá  que, embora  publicado em 1919, já havia sido escrito entre 1906 e 1907. Sentimentos expressados nos temas que estão sempre presentes  na ficção de Lima Barreto: “o horror ao esnobismo”, “a xenofobia”, “a identificação com o fundo autóctone da raça”, “a revolta contra a doçura de índole que amolece o povo brasileiro”, “o desabafo contra o mundo burocrático”.

            Talvez pelo que nele está implícito – o amor pela terra brasileira –, devesse se acrescentar, também, as referências à paisagem. Na verdade, sempre alguns breves textos  se intercalando no relato.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, além do belo esboço das ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, aparecem aqueles que fixam a natureza. Ambos, na segunda parte da obra, quando o personagem se retira para o “Sossego”, pequeno sítio a duas horas, por estrada de ferro, da capital.

            O capítulo “Espinhos e flores” se inicia com a descrição dos subúrbios. Lima Barreto os classifica, de acordo com a maneira como foram edificados, de  curiosos, responsabilizando para que assim sejam, a topografia montanhosa e, principalmente, os azares das construções: As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, de acordo com elas, se fazem as ruas que se iniciam largas – como boulevares, ele diz – e acabam em estreitas vielas após terem dado voltas inúteis, parecendo fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Ele observa a disposição das casas ora amontoadas, ora extremamente separadas umas das outras, a sua aparência ora humilde, de porta e janela ora imponente a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados, ora uma choupana de pau-a-pique, coberta de zinco ou de palha, ora uma velha  casa da roça. Também observa o desinteresse pelos jardins, em geral pobres, feios e desleixados e o descuido dos responsáveis municipais por ruas e pontilhões.

            Mas, vistos do alto, diz Lima Barreto, há alguma graça na visão desses subúrbios: As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de oca, engastadas nas copas verde negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, [...].

            Mas, sobretudo, é no relato dos afazeres de Policarpo Quaresma, no sítio, que aparecem os textos mais detidqamente relacionados com a paisagem. É uma profusão de luzes, são os ares doces, o farfalhar do mato, o piar das aves, um todo a esvoaçar: os tiês vermelhos, os coleiras, os anuns. Ciciar de cigarras, gemer de rolas, suspiros de bambus. Na cachoeira, a água estremecia na queda e vivia sob uma abóbada de árvores por onde penetrava o sol em pequenas manchas.  Os periquitos, de um verde mais claro, pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão fantástico.

            Dois textos sobressaem. Aquele que descreve a pujança e alegria da natureza face aos cuidados de Policarpo Quaresma: os botões a surgirem, tudo a reverdecer no renascimento das árvores que faz o contentamento do passaredo solto, as rolas em bando, os sanhaços, os papa-capins. De tarde como que todos eles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma; o outro, que fala dessa alegre exuberância que vai além do espontâneo de viver. Na compreensão do narrador, essa alegria é um entoar louvores àquele que nutriu e que protegeu essa vida até há pouco fadada ao descaso. Uma espécie de proselitismo – do qual o romance é pródigo –, fruto de uma certeza, cuja síntese poderia estar na expressão antiga: uma terra que em se plantando tudo dá. E, é o ideal visionário de Policarpo Quaresma que o faz ver, antes mesmo de conhecer as terras que comprara,  as laranjeiras, em flor, olentes, muito brancas, a se  enfileirar pelas encostas das colinas, como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre  tudo aquilo surgia uma linda mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa – era Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...

 

 

 

 

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