Em 1915, publicava Afonso Henriques de Lima Barreto o seu segundo romance: Triste fim de Policarpo Quaresma. De acordo com Eugênio Gomes, ele
se nutre dos mesmos sentimentos norteadores de Vida e morte de M. J. Gonzaga
de Sá que, embora publicado em 1919, já havia sido escrito
entre 1906 e 1907. Sentimentos expressados nos temas que estão sempre
presentes na ficção de Lima Barreto: “o
horror ao esnobismo”, “a xenofobia”, “a identificação com o fundo autóctone da
raça”, “a revolta contra a doçura de índole que amolece o povo brasileiro”, “o
desabafo contra o mundo burocrático”.
Talvez pelo que nele está implícito
– o amor pela terra brasileira –, devesse se acrescentar, também, as
referências à paisagem. Na verdade, sempre alguns breves textos se intercalando no relato.
Em Triste fim de
Policarpo Quaresma, além do belo esboço das ruas do subúrbio do Rio de
Janeiro, aparecem aqueles que fixam a natureza. Ambos, na segunda parte da
obra, quando o personagem se retira para o “Sossego”, pequeno sítio a duas
horas, por estrada de ferro, da capital.
O capítulo
“Espinhos e flores” se inicia com a descrição dos subúrbios. Lima Barreto os
classifica, de acordo com a maneira como foram edificados, de curiosos,
responsabilizando para que assim sejam, a topografia montanhosa e, principalmente,
os azares das construções: As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, de acordo com elas, se fazem as
ruas que se iniciam largas – como boulevares, ele diz – e acabam em estreitas
vielas após terem dado voltas inúteis, parecendo fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Ele observa a disposição das casas ora
amontoadas, ora extremamente separadas umas das outras, a sua aparência ora
humilde, de porta e janela ora imponente a
se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados, ora uma choupana de
pau-a-pique, coberta de zinco ou de palha, ora uma velha casa da roça. Também observa o desinteresse
pelos jardins, em geral pobres, feios e
desleixados e o descuido dos responsáveis municipais por ruas e pontilhões.
Mas, vistos do
alto, diz Lima Barreto, há alguma graça na visão desses subúrbios: As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco,
de oca, engastadas nas copas verde negras das mangueiras, tendo de permeio,
aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, [...].
Mas, sobretudo,
é no relato dos afazeres de Policarpo Quaresma, no sítio, que aparecem os
textos mais detidqamente relacionados com a paisagem. É uma profusão de luzes,
são os ares doces, o farfalhar do mato, o piar das aves, um todo a esvoaçar: os
tiês vermelhos, os coleiras, os anuns. Ciciar de cigarras, gemer de rolas, suspiros
de bambus. Na cachoeira, a água estremecia na queda e vivia sob uma abóbada de árvores por onde penetrava o
sol em pequenas manchas. Os periquitos, de um verde mais claro,
pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão fantástico.
Dois textos
sobressaem. Aquele que descreve a pujança e alegria da natureza face aos
cuidados de Policarpo Quaresma: os botões a surgirem, tudo a reverdecer no
renascimento das árvores que faz o contentamento do passaredo solto, as rolas em bando, os sanhaços, os papa-capins. De
tarde como que todos eles se reuniam,
piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos
abacateiros, entoando louvores ao trabalho
tenaz e fecundo do velho Major Quaresma; o outro, que fala dessa alegre
exuberância que vai além do espontâneo de viver. Na compreensão do narrador,
essa alegria é um entoar louvores
àquele que nutriu e que protegeu essa vida até há pouco fadada ao descaso. Uma
espécie de proselitismo – do qual o romance é pródigo –, fruto de uma certeza,
cuja síntese poderia estar na expressão antiga: uma terra que em se plantando
tudo dá. E, é o ideal visionário de Policarpo Quaresma que o faz ver, antes
mesmo de conhecer as terras que comprara, as laranjeiras, em flor, olentes, muito
brancas, a se enfileirar pelas encostas
das colinas, como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a
sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar
dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a unção quente
do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pólen; as
melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as
jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquilo surgia uma linda mulher, com o
regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um
imaterial sorriso demorado de deusa – era Pomona, a deusa dos vergéis e dos
jardins!...
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