Para Cicinha
Francisco
Espínola morreu, diz Eduardo Galeano, quando voaram em pedaços os restos do
Uruguai democrático. Era agosto de 1973 . Quarenta anos antes tinha
publicado seu romance Sombras sobre la
tierra, hoje, um clássico da Literatura Uruguaia: sombria pintura de
pedaços de vida de um bordel interiorano e de momentos vividos em humildes
tascas nas aforas de uma pequena cidade.
Sombras sobre la tierra não possui
trama romanesca. O relato gira em torno de Juan Carlos, jovem órfão e rico. É
ele que determina a profundidade do relato quando tenta refletir sobre o mundo
que o rodeia. E este é um mundo de inocências, embora habitado por prostitutas
e bêbados, onde, ainda que em meio a pobreza, prevaleça a cordialidade: seja
entre as donas de bordel e suas pupilas, entre as próprias pupilas e seus
clientes, ou o médico ou o padre que aparecem para o controle sanitário, ou para
uma extrema-unção; seja entre os demais personagens, embora possam ser apenas
uns pobres coitados. Ou, onde prevalece um afeto. Aquele que une Juan Carlos a
sua empregada, a seus amigos, às pupilas do bordel, a seus protegidos. Que une
as prostitutas à cadelinha Milonguita ou Manuel Benítez a seu cachorro
Tupambay.

Manuel Benitez
é um índio velho com quatro pelos duros,
caídos, de bigode. E um olhar dulcíssimo, nos olhos eternamente injetados de
sangue. O cachorro é um cusco feio que o dono chama Coco ou Tupambay,
conforme o seu humor: quando está irritado, diz Tupambay e quando fica
ensimesmado e triste, fala Coco.
E
Coco/Tupambay anda atrás de Milonguita. Mas as damas do bordel protegem, na
cachorrinha, uma virtude que não mais possuem e ameaçam o pretendente com
vassouradas, pedras e água quente, argumentando que é um cão feio e mendigo.
Mas, recusam, igualmente, outros candidatos e mantém Milonguita prisioneira. No
meio da calçada, diante da porta, com intenso
olhar, Tupambay passa o dia. O dono o chama e ele não atende e só volta
para casa no colo de Manuel Benítez, já impaciente, mas compreensivo quando
promete: - Coco! Não fique triste
Coquito! Algumas temos que ganhar! Se Deus quiser vamos roubar a cachorra!
E
soam as três horas da manhã quando, obedecendo ao encontro marcado, sai
Margarita de casa e, no pátio, tira Milonguita da casinha, onde estava fechada,
e a entrega para ser levada a Manuel Benítez que já a esperava no seu rancho.
A história
desse pequeno e humilde amor, em Sombras
sobre la tierra, é contada aos poucos
e se entrelaça com aquela dos
humanos. Deles, no entanto, os sentimentos se desencontram: Juan Carlos
confessa, muitas vezes, seu amor por Nena. Também o seu desejo de tirá-la do
bordel. Mas, tampouco pode se impedir de, alguma vez, exclamar: Nena! Nena! Por que você é o que é? E tudo – brigas e reconciliações – continua como
antes.
Sombras sobre la tierra termina sem
dizer do destino de cada um. Parece que, entre todos, só Tupambay e Milonguita
foram felizes.
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