domingo, 6 de setembro de 1998

O riacho

          A primeira parte de Usina (Rio de Janeiro, José Olympio) completa a história de Ricardo, contada em Moleque Ricardo. É só na segunda parte que o assunto do romance irá, efetivamente, aparecer: a transformação do bangüé do Dr. Juca em usina de açúcar.

          O bangüé Santa Rosa, de certa forma uma herança de família, que ele – sua ambição era mandar, ser rico, mostrar-se – anula para erigir a usina Bom Jesus que imagina lhe dará riqueza e poder.

          No passado, fica a figura de seu pai, José Paulino, senhor de engenho nos moldes tradicionais: enérgico, possuidor da generosidade própria dos ricos que o deixava ter uma cozinha aberta para todos, conviver com a antiga senzala perto da casa-grande, permitir que os trabalhadores morassem nas suas terras, fornecer leite de suas vacas para as famílias que dele necessitassem, dar audiência aos trabalhadores dos seus campos, buscando soluções para os problemas que traziam, não se importar que os moleques chupassem da sua cana.

            Para o filho, tudo isso significava que ele era um homem doutros tempos. Porque em nome da produção da usina, os usos deveriam mudar. Assim, mandara por grade nas portas da cozinha, botar abaixo a antiga senzala, afastando de sua vista os velhos empregados, desalojar os trabalhadores de suas terras – a usina não podia perder um palmo de terra de várzea  - proibir que o leite continuasse a ser distribuído, mandar falar com o gerente do campo para a resolução dos problemas, considerar que chupar cana da usina era um crime.


             Sentado numa larga cadeira de espreguiçar, o Dr. Juca via do alpendre da casa-grande a atividade de sua fábrica. Pensava no esforço que fizera para cobrir as terras – as terras que nas mãos dos antigos se esperdiçavam - do verde da cana. E fazia planos: comprar um engenho que lhe permitisse passar os trilhos do trem; comprar um outro que lhe desse a água para alimentar a usina. Porque faria o riacho, que nele existia, correr por um leito construído por ele, com uns gastos a mais, estaria ali dentro da Bom Jesus  para serventia da usina. Era uma obra de engenharia o quê pretendia e o seu feito, logo de iniciado, saiu nos jornais. O Vertente, que se perdia à toa, cantando manso pelas matas escuras, dando de beber com sua água doce ao povo do Pilar, vinha agora, à força de instrumento para a serventia da Bom Jesus. A terra dura era cavada e o cal e o tijolo iam fazendo o novo leito para o Vertente e nunca mais faltaria água doce na usina.

            Mas, o povo inteirinho se alarmou com a notícia. O Vertente nunca roncara, jamais crescera fora de seu leito para fazer medo. Era bom para o povo. Pelas suas margens plantavam capim-de-planta, para os cavalos, faziam banheiros e o bamburral chorava ao vento. Agora, a usina o cercara de arame, o vigiava com homens armados de rifle. O riacho “generoso, manso, fora roubado. Não daria mais água para os moradores, para o povo da vila. Ninguém queria acreditar que não possuiriam mais um riacho que era patrimônio de todos, que iriam ter que fazer cacimbas para beber água. O Dr. Juca queria o riacho para suas máquinas. E o riacho deixara o seu leito de areia, macio, para correr num outro, duro, feito de tijolo e cimento. Passara a ter dono, era mandado como boi de carro.

           Mas a usina que espantara, expulsara, desprezara os trabalhadores, não dera conta do trabalho. O maquinário, vendido pelos norte-americanos, se avariava ao primeiro uso. Eram dias parados, dias de prejuízo. Eram prejuízos, levando à ruína. E todo o perverso poder da Bom Jesus foi ruindo; a autoridade já não era servida por capangas.

           Um dia, a água do riacho parou de correr para a usina. O aqueduto fora quebrado e as águas voltaram a seu velho e ressecado leito, saltitando como menino de colégio que deixasse o castigo para o recreio. Mas, os pedreiros da usina as fecharam, outra vez, entre as paredes de tijolos. Logo, o povo do engenho rebentou,outra vez, as paredes e o riacho recomeçou a correr como antes. E assim ficou porque já ninguém se importava com a obra de engenharia do Dr. Juca pois ele perdera o dinheiro e o poder. Já não mandava mais nas águas do riacho que “lá em cima da mata, corria livre, cantando manso e bom, livre da bica arrombada.

          Num ingênuo castigar dos maus, José Lins do Rego mostra quem desejara o riacho prisioneiro submisso e útil, o Dr. Juca,  partindo de suas terras, pobre e doente, deitado numa carreta de bois. E Usina termina nessa viagem quando tudo ia escurecendo com o fim do dia e com a chuva, caindo fininha.

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