“Allende”
é o último texto de Confieso que he
vivido, memórias publicadas em março de 1974. Pablo Neruda diz estar a
escrever apenas três dias depois do assassinato do Presidente do Chile o quê
torna admirável a tranqüilidade com que o faz. Salvador Allende era para ele “o
grande companheiro” e sua morte, a maneira como transcorreu, devem ter-lhe sido
imensamente dolorosa como extremamente doloroso deve ter sido assistir o
desmoronamento das ilusões, quanto ao
futuro de seu país, nas mãos daqueles
que usurparam um poder legitimamente constituído.
No
entanto, é como se em Pablo Neruda prevalecesse, nesse momento, a razão. Ele se
concede forças para sintetizar os motivos que permitiram o golpe, para lembrar
outro presidente do Chile, Balmaceda, e fazer um paralelo entre ele e Salvador
Allende, ambos conduzidos à morte por querer impedir a entrega das riquezas
pátrias ao imperialismo. Muito claramente, afirma: Balmaceda foi levado ao suicídio por negar-se a entregar a riqueza do
salitre às companhias estrangeiras. Allende foi assassinado por ter
nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Conquista da
soberania nacional que foi compreendida como um passo gigantesco no caminho da independência e, resultou, no
exterior, em ardente simpatia pelo
país.
Em
páginas anteriores, Pablo Neruda relata a emoção que percorreu a Europa quando
a companhia norte-americana pretendeu o embargo do cobre chileno. Emoção que
não se ateve aos jornais, às rádios, às televisões, mas se expressou em gestos
que, no seu entender, ensinaram mais sobre História de nosso tempo do que as
cátedras universitárias. Lembra que, no segundo dia do embargo, uma senhora
francesa, modesta, de uma pequena cidade do interior, mandou para a Embaixada
chilena em Paris, uma nota de cem francos, fruto de suas economias, que ela
oferecia para ajudar a defender o cobre chileno. Junto, enviava uma carta de adesão calorosa, assinada pelos habitantes da cidade, pelo prefeito, pelo
padre, pelos operários, pelos desportistas e pelos estudantes.
Esse
entusiasmo, diz Pablo Neruda, apaixonava a França e a Europa inteira, e fazia
de Salvador Allende um homem universal.
Ele havia transformado o Chile num país que passou a existir, que, pela
primeira vez, passou a ter uma fisionomia própria, diferenciando-se dessa
multidão de outros, mergulhados na tristeza do subdesenvolvimento.
Essas
obras, porém, e esses feitos enfureciam os
inimigos da libertação do país. E tanques e aviões entraram em ação para lutar intrepidamente contra um só homem: o
presidente da república do Chile,
Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem mais companhia do que
seu grande coração, envolto em fumaça e chamas. Foi-lhe dado o fim exigido
pela potência estrangeira e seu cadáver foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher que levava com ela toda a dor do mundo.
Doze
dias depois, morria Pablo Neruda. A romancista Isabel Allende, no seu primeiro
romance La casa de los espíritus (1982),
conta que ele agonizou na sua casa perto
do mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram seu
desejo de continuar vivendo. Seus
amigos não puderam se aproximar porque estavam fora da lei, prófugos, exilados ou
mortos e o cortejo fúnebre percorreu as ruas entre duas filas de soldados
com metralhadoras. Mas, as vozes se levantaram e o ar ser encheu das consignas proibidas. Seu funeral se converteu no ato simbólico de enterrar a liberdade.

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