domingo, 20 de setembro de 1998

Memórias em setembro


            “Allende” é o último texto de Confieso que he vivido, memórias publicadas em março de 1974. Pablo Neruda diz estar a escrever apenas três dias depois do assassinato do Presidente do Chile o quê torna admirável a tranqüilidade com que o faz. Salvador Allende era para ele “o grande companheiro” e sua morte, a maneira como transcorreu, devem ter-lhe sido imensamente dolorosa como extremamente doloroso deve ter sido assistir o desmoronamento das  ilusões, quanto ao futuro  de seu país, nas mãos daqueles que usurparam um poder legitimamente constituído.

           No entanto, é como se em Pablo Neruda prevalecesse, nesse momento, a razão. Ele se concede forças para sintetizar os motivos que permitiram o golpe, para lembrar outro presidente do Chile, Balmaceda, e fazer um paralelo entre ele e Salvador Allende, ambos conduzidos à morte por querer impedir a entrega das riquezas pátrias ao imperialismo. Muito claramente, afirma: Balmaceda foi levado ao suicídio por negar-se a entregar a riqueza do salitre às companhias estrangeiras. Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Conquista da soberania nacional que foi compreendida como um passo gigantesco no caminho da independência e, resultou, no exterior, em ardente simpatia pelo país.

          Em páginas anteriores, Pablo Neruda relata a emoção que percorreu a Europa quando a companhia norte-americana pretendeu o embargo do cobre chileno. Emoção que não se ateve aos jornais, às rádios, às televisões, mas se expressou em gestos que, no seu entender, ensinaram mais sobre História de nosso tempo do que as cátedras universitárias. Lembra que, no segundo dia do embargo, uma senhora francesa, modesta, de uma pequena cidade do interior, mandou para a Embaixada chilena em Paris, uma nota de cem francos, fruto de suas economias, que ela oferecia para ajudar a defender o cobre chileno. Junto, enviava uma carta de adesão calorosa, assinada pelos habitantes da cidade, pelo prefeito, pelo padre, pelos operários, pelos desportistas e pelos estudantes.

            Esse entusiasmo, diz Pablo Neruda, apaixonava a França e a Europa inteira, e fazia de Salvador Allende um homem universal. Ele havia transformado o Chile num país que passou a existir, que, pela primeira vez, passou a ter uma fisionomia própria, diferenciando-se dessa multidão de outros, mergulhados na tristeza do subdesenvolvimento.

          Essas obras, porém, e esses feitos enfureciam os inimigos da libertação do país. E tanques e aviões entraram em ação para lutar intrepidamente contra um só homem: o presidente da república do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem mais companhia do que seu grande coração, envolto em fumaça e chamas. Foi-lhe dado o fim exigido pela potência estrangeira e seu cadáver foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher que levava com ela toda a dor do mundo.

          Doze dias depois, morria Pablo Neruda. A romancista Isabel Allende, no seu primeiro romance La casa de los espíritus (1982), conta que ele agonizou na sua casa perto do mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram seu desejo de continuar vivendo. Seus amigos não puderam se aproximar porque estavam fora da lei, prófugos, exilados ou mortos e o cortejo fúnebre percorreu as ruas entre duas filas de soldados com metralhadoras. Mas, as vozes se levantaram e o ar ser encheu das consignas proibidas. Seu funeral se converteu no ato simbólico de enterrar a liberdade.

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