domingo, 20 de dezembro de 1992

Das razões

          Lope de Aguirre nasceu num vilarejo espanhol em 1508. De seu tio Julián ouvia contar do Novo Mundo que surgia e, logo, todos falavam dessa imensidão, de pronto, entreaberta pelas três naus espanholas.
 
          Havia passado dos vinte anos quando, numa balsa carregada de melões e marmelos desceu o Guadalquivir para chegar a Sevilha e daí se embarcar para o Novo Mundo.
 
          Filho mais novo, seria sempre na sua terra “o segundo”. E o Novo Mundo luzia nas palavras de seus próximos o induzindo a partir. 0 confessor da família, na crença de que o espanhol é um povo escolhido por Deus para preservar a sua verdade, recebendo dele a missão de cristianizar esses milhões de índios bárbaros; o tio, no sonho de aventuras e proezas, desse "elixir branco", provedor da eterna juventude, das virgens cor de canela correndo nuas pelas praias ao encontro dos conquistadores”; o padrinho, dono de moinhos, acreditando nesses espaços sem fim para semear e no trabalho dos índios destinados aos espanhóis, nesse ouro encontrado sem esforço; a mulher que o amava, prevendo para ele a imortalidade da fama.
 
          E parte Lope de Aguirre numa velha nau, no mês de maio de 1534. Eram duzentos a bordo, mais as ovelhas, os porcos, mais o azeite e o vinho.
 
          Poucos eram os que conheciam o mar. Muitas, foram as agruras que passaram porque o espaço de cada um, mal dava para dormir ou rezar; porque a água era escassa; sobretudo, porque o arrependimento de ter embarcado era grande.
 
          Mas, os sonhos de riquezas e de glórias eram maiores e puderam, os tripulantes e Lope de Aguirre, vencer a travessia.
 
          E, chegou o momento em que o céu ficou transparente. Bandos de pássaros apareceram e, longe, aproximando-se aos poucos, a silhueta das palmeiras e das rochas.
 
          Haviam chegado. A fantasia, a glória, a riqueza, a imposição da fé - razões dos outros - se diluíram, no entanto, diante do destino que aguardava Lope de Aguirre.
 
          Príncipe da liberdade o chamou Miguel Otero Silva, um dos mais importantes escritores da Venezuela, hoje. No seu belo romance Lope de Aguirre, príncipe de la libertad que a Seix Barral de Barcelona publicou em fevereiro de 1979 torna verdadeira a profecia de Juanita Garibay. Embora o amando, ela lhe havia dito: Vai para as Índias. Teu nome será mencionado muito tempo depois da vida de teus netos.

domingo, 13 de dezembro de 1992

Pedras, farpas e perdas

         Melancólico, triste, quase sempre como que desesperançado é o olhar de Celso Mauro Paciornik para o mundo. Mundo feito de tangíveis, próximos e, sabidamente, irreversíveis desacordos que só uns poucos sabem ver e, raros, os que podem transformar em matéria poética.
 
         Indagações do eterno, certezas inclementes sobre um futuro que, certamente, irá se refazer ao som de um gotejar de botas / e de esgotos. Permanência irrecusada na solidão.
 
         E, os poemas livres e indisciplinados, se fazem de agressões e ternuras: a palavra forte, o forte constatar da miserável mesmice que se perpetua, intocada, e se impõe no Continente.
 
         O dizer que se mascara em ironias, em sarcasmos mas não tenta esconder a dor de viver o que não impede o poeta de ser solidário ainda que fale de si mesmo.
         Algum Brasil se desenha, então em tênues mas reconhecíveis linhas: o Brasil dos brasileiros que do Oiapoque ao Chuí, cegos, suspiram diante da ilusão televisiva; o Brasil da tortura, da retórica sem sentido, das declarações mentirosas, dos impostos surrupiados.

         Angústias pessoais, porém, e sentir-se entre as desarmonias de que o mundo é cheio não desarvoram Celso Mauro Paciornik. Como síntese de um estar diante da vida, quatro verbos de ação - andar, pensar, fazer e perguntar - comandam “Inspiral”, o primeiro poema de seu livro Inversos tempos (São Paulo, Estação Liberdade, 1992). E, expressão de um querer preciso, a última estrofe do poema “Sagrada intolerância”: Quero ver pender / da estátua caolha e brega da Justiça / a chusma toda algoz de traficantes / de verbos, vidas, vontades e verdades / que reinventa o mundo à sua podre imagem / e semelhança / e das próprias fezes se envergonha / a ponto / de não sentir seu cheiro.
 
         Este querer que o levou à luta política e a pagar não pouco por ela nos tempos em que ver a realidade do país era condenável. E um crime sem perdão o desejar mudá-la.
 
         Agora, as palavras são permitidas. Em Celso Mauro Paciornik elas não estão livres de amargura que encontram algum alívio na troça e no lúdico. Mas propor-se a dizê-las e, buscando um interlocutor, publicá-las, mais do que “humana teimosia” é alimentar-se de uma esperança.

domingo, 6 de dezembro de 1992

O trágico e o lírico na voz de Pedro de Malas Artes

         Pedro de Malas Artes, engenhoso personagem que, em primeira pessoa conta suas incursões no mundo dos ricos e poderosos, interrompe, por vezes, a narrativa de suas aventuras para se deter em considerações sobre essa estrutura social em que vive, cujas mazelas são reforçadas pelos conselhos de sua mãe a voz do miserável submisso - e pelas concepções de mundo dos que tirando proveito dessa submissão não tem porque mudá-la.
 
         Ou, para, justamente, monologar sonhos de transformações que parecem jamais acontecer e para se desejar o demolidor daquilo que, por muito velho emperrava o alvorecer das alvoradas e querer que os que foram sufocados na lama voltem a respirar livres.

         Um trágico mundo se ergue de suas palavras. Não apenas porque se refere à fome e ao trabalho, quase sem ganho, dos que tem de se submeter à lei do que é dono das terras, do gado e do trabalho que pode oferecer. Mas, porque essa fome e esse trabalho enriquecem o outro. São eles que aumentam suas posses, tornando-se mais poderoso do que o representante da lei, da fé e da justiça, isto é, com o beneplácito e o apoio das Instituições.

         Como, no entanto, o narrador é uma das vítimas desse mundo planejadamente em desequilíbrio, suas palavras se nutrem dos seus próprios sofrimentos - que ele sabe ser também dos outros seus iguais - e não escondem a emoção.

         E, então, em meio à ironia e troças e corrosivas constatações, em meio a uma comicidade baseada no mais chão, surge um delicado lirismo que desabrocha, sobretudo, quando Pedro de Malas Artes é invadido pela lembrança de Margarida.
 

         Lembrança que chega como um consolo, como um alimento. Margarida é o “descanso” é o “lugar onde chegar”. E o seu dizer para falar nela é como um poema.
 
         Singelas as expressões: e sol, e lua, e mar e vento. Tempo menino sem antes nem depois, tempo único que se prolonga pela vida inteira.

         Desprovidas de adorno, as frases que procuram em síntese perfeita dar conta desse amor paixão: Fechei os olhos e me confiei à doçura da pele de Margarida. No aconchego de Margarida, os limites se diluem. Eu com Margarida dissolve-se a diferença de eu e ela para alçar vôo ao que é maior do que eu e ela, feito de eu e ela, sem anular eu e Margarida, como um abraço em que se vive aumentado, aumentando quem se abraça, eu com Margarida ilimitadamente, os limites abolidos, eu perdoado, eu alevantado, eu nadando nas ondas do corpo de Margarida, marulho de mar e margem garrida.

         E, nascido da ingenuidade popular, Pedro de Malas Artes que Donaldo Schüller tornou a criar, sagaz e emocionado, se enriqueceu.
Pedro de Malas Artes (Editora Movimento, Porto Alegre, 1992) é sua trágica e lírica saga.

domingo, 29 de novembro de 1992

Sobre a Literatura Uruguaia


O último volume da Revista Iberoamericana, composto dos números 160-161, é dedicado à Literatura do Uruguay.

Está dividido em quatro rubricas - Circunstâncias, Autores e Obras, Entrevistas e Resenhas - que são antecedidas por uma “Nota Preliminar”, assinada pela organizadora, Lisa Block de Behar.

Membro da Academia de Letras do Uruguai, suas palavras introdutórias se ocupam dos princípios que nortearam a seleção dos trabalhos e, principalmente, da “atmosfera” reinante nos meios literários uruguaios.

É provável que ela esteja cheia de razões quando, duramente, se refere à determinada crítica baseada em “intolerâncias pessoais”, em “convivências estratégicas”, ou a autores que se auto-promovem e são patrocinados por uma solidariedade que pouco tem a ver com reais preceitos críticos.

Mas, num país tão pequeno - e isso Lisa Block de Behar reconhece - cujo número de habitantes não ultrapassa os três milhões e com uma vida cultural centrada na capital, difícil seria a inexistência de nítidos sectarismos estéticos e ideológicos a separar os diversos grupos o que, sem dúvida, é comum a todos os meios artísticos de qualquer país.

Parece importante, porém, e então o artigo de Fernando Ainsa é sumamente ilustrativo,  o número de escritores que faz parte do mundo literário desse pequeno país e a qualidade de muitas de suas obras.

No artigo “Catarsis liberadora y tradición resumida: las nuevas fronteras de la realidad en la narrativa uruguaia contemporânea”, o crítico e escritor uruguaio, que há muitos anos, morando em Paris, não afasta os olhos de seu país, analisa a Literatura uruguaia contemporânea a partir de três eixos históricos literários: o que se situa a mediados dos anos sessenta, prolongando-se até o dia 27 de junho de 1973, data do golpe de Estado; o período compreendido entre essa data e 1º de abril de 1995 quando a liberdade foi restaurada no país; a produção atual.

Uma análise extremamente lúcida em que Fernando Ainsa estabelece relações entre o processo histórico uruguaio e a criação ficcional surgida nessa época.

Para quem, no entanto, na América Latina, se dedica a estudos de Literatura, o artigo também possui o grande mérito de apresentar um panorama da Literatura uruguaia contemporânea que é, sem dúvida, de riquíssima informação haja visto a tradicional impossibilidade de conhecer a produção literária do Continente.

E, também, leva a refletir, uma vez mais, sobre quão lamentável é esse desconhecimento de uma literatura que, seja pelos seus temas, seja pelas suas conquistas formais e pelo compromisso que manteve sempre com a realidade circundante, se constitui uma das mais valiosas do Continente.

domingo, 22 de novembro de 1992

Contos exemplares


 Pela Emecê de Buenos Aires, a publicação de Las maquinarias de la noche, de Abelardo Castillo, seu quarto livro de contos.

Na entrevista que ele concedeu a Daniel Freidemberg, em setembro passado e publicada no dia 24 pelo Clarin Cultura de Buenos Aires, foram comentados os três livros anteriores e as perguntas e respostas giraram, sobretudo, em torno da arquitetura destes últimos contos, realmente exemplares.

Uma qualidade que nada tem a ver com modismos porque a ruptura, termo que na Literatura latino-americana é relacionado com a forma e com os temas, com um desejo de romper com o estabelecido, em Abelardo Castillo está presente como algo existencial e não literário diz Daniel Freidemberg.

E assim se passa em “El hermano mayor”, que faz parte de Las maquinarias de la noche. 
No encontro dos dois irmãos ao morrer o pai, renasce o conflito de cada um diante da vida que lhe coube, revelado no sofrimento pela perda real que acabam de enfrentar e, mais insistentemente, pelas outras perdas que se foram acumulando.

Um irmão, o mais velho, ficou na cidade pequena; o outro, partiu. E, quando volta, para ver o pai morto, só deseja partir outra vez.

O conto é construído nesse diálogo entre os irmãos, alimentado pela figura do pai e pelas lembranças do passado que os unem. É no diálogo, tenso, muito breve, marcando o momento da chegada do irmão mais moço, o pouco tempo que ficou na cidade e a volta para a estação que se desenha a figura do irmão mais velho e seu drama de solidão.

O narrador aparece entre uma réplica e outra para notar gestos que acompanham ou substituem as palavras e algo desse reduzido espaço em que eles se movem: uma rua com laranjeiras plantadas nas calçadas, música de baile chegando de longe, flores brancas que a luz de uma casa ilumina, os cascos de um cavalo batendo nas pedras da rua.

E, no meio desse jogo de querer ou não ficar, de querer ou não a partida do outro, a decisão é tomada.

Não importa quem a tomou e o que será da vida de cada um. Mas a figura desse irmão mais velho, com sua aparente coragem e arrogância, de quem salvo as decepções, tudo se ignora, não se desvanece.

Os traços que lhe dão vida e a seu espaço e a esse diálogo mantido com o irmão, pouco seriam para uma narrativa.

No entanto, Abelardo Castillo a construiu.  E exemplar.

domingo, 15 de novembro de 1992

O sentido do corpo



Septuagésimo volume da Coleção Poesiasul, O corpo sentido acaba de ser publicado pela Editora Movimento de Porto Alegre. É o terceiro livro de poemas de José Tulio Barbosa. Em 1989, ele publicou Rastro dos ventos e, no ano passado, Vinte respostas a Neruda, prêmio Concurso Pablo Neruda, patrocinado pela Embaixada do Chile, em Brasília.

Neste seu último livro, o título que se desenha graficamente de dois modos distintos - a expressão “o corpo” em letras grandes; em baixo, com letras  menores e cursivas, a palavra “sentido” - é espelho perfeito do eixo temático que direciona os poemas.

O corpo sentido é dividido em três partes. Na primeira, seus vinte e um poemas se alimentam todos da palavra “corpo”. E o corpo é apenas matéria ou matéria, que se refaz no tempo dos séculos, ou em instantes; é parte do infinito, é invólucro, é cativeiro, é humanidade contida que busca o outro.



A segunda parte é, feita de vinte poemas que também se alimentam da palavra “corpo”, agora no plural, e regidos por expressões - nos recebemos, nos realizamos,   nos conhecemos, nos fundimos, nos esgueiramos, denunciadoras de buscas e encontros de dois seres que se plasmam na eternidade finita que são suas noites sem tempo, seus instantes de uma estrela.

Outras expressões se acrescentam então - lábios, dedos, olhos, pele, mão, ventre, seio, braços, pés, pernas - estabelecendo fronteiras para um outro sentir, o que procura se completar no outro.

Se, na primeira parte o poeta mostra a partir do próprio corpo seu espanto de existir e, na segunda, o êxtase de seu corpo diante do corpo feminino que o completa, na terceira parte (dezenove poemas o compõem) emerge o sentir diante dos deserdados.

Também eles são corpos - e, está lá, sempre, a palavra. - Mas, corpos que não se indagam, que não se exaltam no prazer e que são vítimas apenas, dos outros.

Como os demais poemas que fazem parte de O corpo sentido, estes tampouco possuem título e se diferenciam dos anteriores por trazerem no final entre parênteses, uma dedicatória. Quatro delas se dirigem a pessoas nominadas; as restantes, a um coletivo marginal: para os que não puderam mais resistir;  para um pivete qualquer;  para os que conspiraram; para todos os que deram a vida pela liberdade; para os que foram humilhados até a essência; para todas as mulheres o que, certamente, também, possui o significado de um coletivo.

E, a longa epígrafe, tirada de um texto de Roberto A. R. de Aguiar (O que é a justiça?) que antecede esses poemas, reafirmam neles o desejo de luta que o poeta expressa pela emoção. A relação de compra e venda do corpo, estabelecida por Roberto A. R. de Aguiar (a grande maioria dos corpos que, vendendo sua força de trabalho, sustentam corpos que não trabalham), será traduzida, poeticamente por José Tulio Barbosa que da palavra “corpo” aproxima expressões, como andrajos, jornadas, jugo, sangue vertido, fome claramente comprometidas com a denúncia que a epígrafe anuncia. E que se reafirmam em outras: fardo, fado, lágrimas, humilhação, dor, opressão, vida negada.


Expressões habitantes de versos breves, incisivos que esboçam esse não viver dos explorados com a maestria dos que dominam a arte de poetar: como que dizendo tudo num mundo de silêncios.

Para vencê-lo, José Túlio Barbosa se busca; compartilha seu corpo com o da mulher amada. Mas, não se petrifica nesse mundo fechado e oferece a sua voz aos que dela não sabem fazer uso.

E não se permite só o lamento. No último poema do livro surgem, luminosas, as palavras que remetem àquele futuro em que os homens já não serão máquinas / e meras matrizes / a modelar e a ser modelados / nas linhas de extinção.

O eu do poeta que prevalecera nos poemas se assume como homem do Continente. E um nós utópico domina a última estrofe do livro: Sim seremos corpos / e poderemos nos tocar / para descobrir / os mares e as alturas / os céus e os abismos / todas as larguras / todas as profundezas / insuspeitas / que há no vôo / do corpo sentido.

domingo, 8 de novembro de 1992

O novo Malazarte

 
Pedro de Malas Artes está diante de seu carrasco e sabe que logo será morto. Mas, pede para falar: Me ouvindo, poderá conhecer doutamente a ti mesmo e os ninguéns que entulham teu caminho.

Toda a sua história, desde o início até chegar ao fim, condenado a morrer - uma depois da outra, as histórias de Pedro Malazarte - se constrói sobre o confronto clássico: o poderoso e os deserdados.

E, assim como ele, Malazarte, Pedro de Malas Artes, cabe na palavra “ninguéns”, também na expressão “ti mesmo” cabe o seu interlocutor e os poderosos seus semelhantes.

Esperto, falador, cheio de invenções e, sobretudo sem medo de usar métodos escatológicos na vingança contra Couralindo, o brutal patrão de seu irmão, ele está consciente dos riscos que irá correr e tenta escapar sempre das conseqüências de seus atos com as armas de que dispõe: o engano e a mentira.

Seus feitos, verdadeiras artes de tinhoso, motivados pela revolta do pobre e encravados numa sociedade de castas, não apenas emporcalham a vítima (Couralindo, sua mulher e os respeitáveis convidados da festa que oferecem) como descobrem os vícios de uma estrutura social regida por preceitos medievais, em pleno fim do século vinte.

Oriundo de invencível pobreza e, pela primeira vez, no meio de uma festa de ricos, percebe significados no comportamento dos presentes que seriam extremamente ridículos não fossem já consagrados por um uso que institui a rígida separação de classes. Pode, então estabelecer comparações entre os dois mundos: o seu, o da fome e o apressado comer malazarte que quando termina a bóia ninguém sabe a hora da seguinte refeição e ainda se lambem dedos e pratos para não perder migalha” e o do outro que exibia para os convidados montes e vales de comida, suficientes para as fomes de um exército.

E, no meio dos belos trajes e de gestos estudados, comprovar, também, as relações que permitem a estabilidade desse mundo fechado em que o exercício do cargo público e da justiça são sustentados pelo poder econômico e, portanto, a ele submissos.

Pedro de Malas Artes misto de cobra e urubu para investir contra Couralindo, o dono de propriedades sem começo nem fim, dono de milhares e milhares de cabeça de gado e de capangas e das incríveis judiarias.

E, enganando, mentindo, inventando, de Couralindo ele destrói o milharal, o animal de estimação, o casamento e, então, a honra. E, enganando, mentindo, inventando, intrigando, de Fortunato, homem poderoso e endinheirado, ele rouba a filha”.

Tudo isso entre muitas andanças e manhas, entre muitas reflexões sobre o mundo e suas verdades.

Nutrido de suas vivências que são apenas um contínuo não ter, e dos conhecimentos que absorve na, para ele, proveitosa leitura do Almanaque Capivarol, suas palavras se abrem para definitivos e sábios preceitos e para um profundo e, por vezes, amargo lirismo.

Pedro de Malas Artes não tem salvação e, somente, lhe é concedido a escolha do modo de morrer.

Coerente com toda essa vida que ele para si mesmo arquitetou, foi sua escolha: inesperada, jocosa, irreverente, irrepreensível na sua malandragem. Verdadeiramente digna desse Pedro de Malas Artes que arrancado das histórias do povo, recebeu de Donaldo Schüler um precioso estatuto de personagem literário.

Um personagem realizador de façanhas perfeitamente capazes de provocar inveja em muitos brasileiros que, embora acreditando em ações mais severas e definitivas para assegurar a assepsia do país, não desprezariam ver chafurdar em elementos menos dignos, muitos dos grandes senhores que pela nação imperam.

Daí ser Pedro de Malas Artes, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou este ano, uma leitura catártica.

E, isto é o menos, embora sejam duros os tempos que correm.

Porque, a riqueza do tema popular renovado, a perfeição de um construir narrativo que jamais perde o seu vigor, uma linguagem inventiva e, muitas vezes, poética e, principalmente, esse olhar solidário que se pousa sobre os oprimidos faz desse romance do escritor gaúcho, um importante momento da Literatura brasileira.

domingo, 1 de novembro de 1992

Crônica da esperança

                                   ...eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa... 



          Em pouco mais de cem páginas, a História do Brasil dos últimos anos a partir da história de Ana. Uma história de dúvidas e inseguranças oferecida pelas três últimas décadas aos jovens brasileiros que desejaram e, por vezes tentaram, modificar o país: Ana Quaresma, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou neste ano, trata de um caminho percorrido entre dois sorvetes. O sorvete contido no título que encabeça a primeira parte da narrativa, “Tomando sorvete”, um convívio simples que será origem do ato de contar: Desde que tomamos sorvete na rua da Azenha que estou com essa coisa despropositada em minha cabeça: escrever. Estou possuída pela necessidade de te responder, como se te devesse algo. E, no entanto, não te devo mais do que o sorvete que tomamos na Azenha.. E o que está contido nas últimas linhas do romance: Leila, é o seguinte: vamos até a rua da Azenha tomar um sorvete? Eu pago.

          Como que um descompromisso, como que um sem importância pueril emoldurando o conflito dessa geração que talvez tenha pensado em lutas, talvez tenha querido lutas - e alguns lutaram - e que as circunstâncias, a falta de preparo ou de um ideal mais forte conduziram à passividade corroída pelo sentimento de fracasso: Será bom não estar sozinha nessas horas, quando lembro os amigos que foram presos, os que morreram, os que delataram os que fugiram ou apenas desapareceram  diz Ana. Porém não é a deles a história que ela conta - e quantos foram? - mas a dos que foram alijados ou se alijaram do processo brasileiro. Primeiramente, pela sanha dos patrioteiros ignorantes ou oportunistas e depois pela alienação que o Sistema para preservar-se, instaurou através dos mais diversos meios.

          Numa narrativa estruturada em cinco partes desiguais (uma breve introdução, três capítulos (talvez) e um também breve post-scriptum, sucedem-se momentos dos últimos trinta anos brasileiros que se mostram a partir de nostalgias, indecisões, amores que desabrocham e se diluem, decepções, nos quais, por vezes, uma fugaz felicidade se insere.

          Muitos personagens. Muitos fatos e situações que se atropelam e que, sem mencionar datas, deixam claro que as coisas se passam aqui e sob a égide do obscurantismo: e a censura, e o tolhimento das vontades, e o desemprego planejado e o massacre cultural.

          Para Ana e os que a rodeavam, a realidade estava cheia de tropeços, desencantos, privações. E muito medo.

          E, embora houvesse tentativas - o encontro com os alunos na sala de aula, uma tese de mestrado, a montagem de uma peça de teatro, o trabalho como sociólogo de uma Fundação, o esforço resultou inglório.

          Anos mais tarde, querendo explicar o que foram esses dias e explicar-se, Ana Quaresma dá provas de uma lucidez necessária: Eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa [...]. Eu fui a maioria, eu fui a média dos descontentes, eu me amordacei para continuar. E é disso que estou te falando: de como tentamos levar a vida, sem abrir mão do sonho mas convivendo com o pesadelo, perdendo um combatente de tempos em tempos, sentindo nos ossos a vontade de prender fogo em tudo e de mandar tudo à merda. As vezes sentindo vergonha de estar vivo.

          Lucidez que lhe permite poder acreditar outra vez. No povo unido, nas canções e nos versos.

          O que torna o romance de Suzana Kilpp uma bela crônica da esperança. E não é de esperança que vive o país?

domingo, 25 de outubro de 1992

Na Conquista. Imutáveis trajetórias.


... ladrões, todos nós o somos[...], todos somos famintos, ao Novo Mundo viemos para comer, para matar, a despedaçá-lo e nos repartir seus pedaços... 

Juan Nuñez de Prado, fundador da cidade de Barco, temeroso de que a usurpem os espanhóis de Pedro de Valdivia que a partir do Chile procuravam expandir o território da conquista, muda a cidade de lugar, três vezes.

Personagem da História da América, sua existência seria conhecida apenas dos leitores das Crônicas da Conquista. É, no entanto, tirado desse quase anonimato ao se tornar personagem de um livro de ficção. Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades, conta essa estranha e portentosa aventura em que o capitão foi conduzido por seus medos nessa desvairada viagem pelas terras do Continente, carregando uma cidade que ele desejava erguer.

O romance é construído em quatro capítulos. Nos três primeiros, as mudanças ordenadas por Juan Nuñez de Prado. No último, o seu encontro com Francisco de Aguirre, enviado pela Coroa espanhola para prendê-lo e evitar uma nova mudança da cidade.

Chega Francisco de Aguirre perguntando por que o capitão da empresa havia mandado matar aqueles infelizes desarmados que só tremiam de medo desta solidão e queriam nada mais que um cavalinho para cavalgar para fora dela?. E jura que a cidade não mais será mudada.

Diante dele, preso e amarrado, Juan Nuñez de Prado indaga de seu destino - serei morto? - e lhe confessa a paixão que o une à cidade que mais uma vez encerrara nas carretas, prestes a levar para mais longe.

O capitão Francisco de Aguirre o escuta primeiramente com desconfiança rancorosa; depois irremediável e profundamente o compreende. De costas para o fundador da cidade, vê, pela janela, em cujo marco se apóia, as carretas carregadas. Ao sentenciar Juan Nuñez de Prado - partirás para o Chile para ser julgado - e descer as escadas da casa para penetrar na noite, já sabe que está tomado da mesma paixão e que assumirá o destino do homem que viera prender.

Na madrugada o capitão Nuñez de Prado, atado e entre escolta, deixa a cidade de Barco contida nas carretas que o capitão recém-chegado, contrariando as ordens reais, decide, por sua vez, transportar.

Irá cumprir o que lhe dissera Nuñez de Prado ao se dar conta que lhe havia transmitido a paixão pela cidade e, então, com a certeza de que será obedecido: Procura um bom acento para a cidade.
Francisco de Aguirre aprisionara, cumprindo ordens, aquele que era acusado, mas, contaminado de seu desejo, fazer a cidade enorme e perfeita se dá conta que estaria pronto a matar espanhóis para conseguir levá-la para mais longe e vê-la crescer, enriquecer e prosperar.
 
E sonha, como Juan Nuñez de Prado sonhava, com a cidade futura que  também vislumbra cheia de luxos e carruagens pelas ruas, habitada por teatros, escolas, bibliotecas e cinqüenta mil almas.

O capítulo inteiro narra a sua arrogante chegada na cidade encarcerada nas carretas e o diálogo em que se confronta com Juan Nuñez de Prado.Sabes que encontro certa misteriosa aparência e ressonância e correspondência e cumplicidade nos teus atos e nos meus, sendo como são tão diferentes? diz-lhe, então, em certo momento.
 
E, quando o capitão parte da cidade, ele que viera para julgá-lo, assume o seu destino. Manda reforçar as sentinelas ao redor das carretas carregadas, sabe que poderá matar os soldados que não obedeçam e espiem para ver o que as carretas contém e determina a mudança.
 
E o ciclo da conquista continua. Mudara, apenas, o nome do conquistador.

domingo, 18 de outubro de 1992

Na Conquista.As coisas

          Vão se espalhando pelo chão enquanto as carretas carregadas levam a cidade desmontada para ser erguida, novamente, noutro lugar.
 
          Juan Nuñez de Prado, vindo do Peru, fundara Barco em 1540 na região argentina de Tucumán e, ameaçado pelos conquistadores espanhóis que haviam começado a conquista pelo Chile, muda, três vezes, a cidade de lugar.
 
          A igreja, as casas feitas pedaços, com suas portas e janelas, amontoadas nos carros de boi e no dorso dos índios, seguem o caminho que os conquistadores do Continente vão traçando e deixam nele patéticos restos de um cotidiano que aspira repetir os hábitos e os costumes do Velho Mundo.
 
          As carretas avançam, muitas vezes penosamente, contornando encostas, suportando o cair da chuva no peso da carga, a cada mudança que o capitão determina querendo salvar a cidade; os homens sofrem privações.
 
          E, repetitivas, se inserem sempre renovadas na narrativa, as enumerações desses objetos que, trazidos da metrópole, vão se perdendo nas terras da América.
 
          Ou abandonadas no meio de uma casa a meio derrubar, onde as cadeiras empilhadas e as roupas espalhadas no chão ou penduradas num prego, os papéis soltos, um livro desfeito, mapas, cartas de baralho, um pequeno martelo de prata, pousado sobre um pano qualquer, mostram não só a ansiedade em realizar a mudança, como a violência que a orientou ao obrigar a partir também aqueles que, na cidade, já se haviam enraizado.
 
          Ou perdidas nessa viagem cheia de medos e percalços em que os bois, querendo fugir do terror ao margear os precipícios, neles se lançam, levando montanha abaixo a carga inteira: dos cestos, caindo a roupa branca; tilintando as colheres, as facas, uma panela; cadeiras, pedaços de portas, de janelas, de camas, pedaços de um altar se espatifando.
 
          Bêbado de palavras é Carlos Droguett, diz o professor da Universidade de Poitiers, Alain Sicard. É realmente, um bêbado de palavras, o autor de El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973)
 
          Na escrita repetitiva e sinuosa, as palavras aparecem e aparecem outra vez e tornam a aparecer num perfeito e inusitado jogo estilístico em que o substantivo, na enumeração das coisas recria um universo cotidiano e simples, inserido na epopéia da conquista e a reduz à dimensão dos homens.
 
          Sejam esses homens, o conquistador valente e cruel guerreiro, ou o soldado ingênuo e ignorante, engajado na ilusória e perigosa empresa de submeter o Novo Mundo, eles, sem dúvida, são iguais na sua fragilidade.
 
          E, perdendo, nesse adentrar-se pelo Continente, as coisas que eram parte do mundo que haviam deixado - e lençóis, e móveis e armas e utensílios - capitães e soldados, igualmente, vão sendo despojados do passado e das raízes que procuravam conservar.
 
          De seu, teriam somente a luta, os sofrimentos, as perdas. Porque o espaço conquistado, as riquezas dele advindas e seu usufruto e as glórias pertenciam aos donos do Poder distante.

 

domingo, 11 de outubro de 1992

Na Conquista. A forca

          Acossado pelos espanhóis vindos do Chile, Juan Nuñez de Prado, fundador da cidade de Barco, quer defendê-la e determina mudar o local de seu assentamento.

         Entre os que o acompanhavam nessa aventura de adentrar-se no Continente, havia os que desejavam criar raízes nas novas terras e essa fora a motivação que os fizera partir da Espanha para o mundo desconhecido que apenas se oferecia.

         A cidade traçada, a igreja e as casas construídas, eles acreditam ter, enfim, sua parcela de terra. E não querem abandoná-la.

         Juan Nuñez de Prado, em nome de Deus e do Rei é quem dita as leis. E para os que não obedecem, a condenação à morte.

         E, na cidade de Barco, na praça, não longe da igreja, são erguidas as forcas. Nelas, ficam os corpos dos que se rebelaram enquanto, nas carretas a cidade desmantelada é levada para outras paragens.

         São atos oficiais cometidos ou ordenados por Juan Nuñez de Prado e seus capitães, registrados nas Crônicas da Conquista.

         Considerados indiscutíveis razões de Estado, esses mesmos atos, aos se transformarem em matéria ficcional, passam também, a significar crueldades, injustiças, abusos.

         A maestria do narrador reside, então, em se manter fiel ao que foi registrado pela Crônica da Conquista eludindo o maniqueísmo que norteia, comumente, a História Oficial num romance cuja estrutura inusitada é enriquecida por uma linguagem extremamente emotiva.

         A narrativa, polifônica, privilegia, por vezes, a voz de Juan Nuñez de Prado. Ao leitor é oferecida, apenas, a interpretação dada aos fatos por aquele que os ordena.

         Ao condenar dois de seus soldados, Anton de Luna e Alonzo del Arco, à forca é interpelado pelo Padre capelão: Vais matá-los?  [...]que fizeram de malvado, de bestial, de imperdoável, que fizeram? Responde que não gosta de murmúrios e que os dois soldados estavam murmurando; que não gosta de gestos misteriosos e que eles andavam contando as armas, os barris de pólvora e os cadáveres.

         Tais “agravos” são suficientes para que os dois soldados sejam presos, condenados ao silêncio e, sem defesa, morram na forca.


         Esta morte, é um episódio do romance, entre outros, que é contada em breves seqüências intercaladas ao longo de um capítulo de 133 páginas, o primeiro de El hombre que transladaba las ciudades. (Barcelona, Noguer, 1973)

         Por vezes, apenas surge a menção das forcas cravadas nas quatro esquinas da cidade; ou a menção do ritual necessário (os espectadores, os tambores, o pregoeiro); ou a ordem para preparar a forca; a piedade expressa por Juan Nuñez de Prado (coitados, coitados, andavam conspirando); a sua decisão de matá-los; a resposta que deve dar ao Padre que torna a perguntar do porquê da acusação, do julgamento, da sentença: seja suficiente saber que foram julgados e condenados; a sua própria necessidade de auto-explicação: eles dizem que sou eu quem  enforca, eu que sou a Espanha, rei, vice-rei e real audiência e santo ofício e inquisidor.

         A própria execução é, igualmente, narrada em seqüências de poucas linhas, que se inserem nas últimas cinco páginas do capítulo: os soldados trazendo as escadas para a forca, o padre perto dos dois prisioneiros que estão atados juntos, a descrição de um deles, o soar do tambor, as orações do padre, a corda solta ao vento, os soluços do condenado. E, numas trinta linhas mais adiante, as palavras de Juan Nuñez de Prado: Já está feito.

         Este proceder narrativo de Carlos Droguett, que evita a descrição do ato de violência anunciado, cuja execução é constatada depois, não elimina a profunda crueldade que, embora explicitamente ausente, é expressa.

         Porque, certamente, mais terrível do que o minucioso e realista descrever da morte na forca, para o escritor, é a própria existência de Instituições, permitindo que tais mortes aconteçam sob a égide do Estado.

 

E diz Juan Nuñez de Prado: “não estamos na Espanha, Padre, estamos nesta terra nova e terrível.”

E diz o Padre: “esta terra, a estás fazendo velha com tanto sangue”.

 

domingo, 4 de outubro de 1992

Na Conquista. A cidade.


a cidade que não existia, que não podia existir então, que era tão somente pressentimento total e inadiável.

 
Juan Nuñez de Prado havia chegado com seus homens. Vinha do Peru para fundar uma cidade e a fundou: Barco. Três vezes a desfez e refez para salvá-la da ambição dos seguidores de Pedro de Valdivia que vinham do Chile. A Crônica da Conquista registra essa história e, seguindo-a, fielmente, o ficcionista Carlos Droguett a retoma em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973).

No texto que ele chama “Estes materiais” e que antecede o primeiro capítulo, diz como desejou se aproximar dessa cidade que os primeiros espanhóis aqui chegados quiseram criar: mostrá-la como esses conquistadores a viam com seus “longos olhos”, como foi sendo, minuciosamente, forjada.

Nas terras do Continente, a cidade da Crônica Oficial se ergue em 1540. Carlos Droguett a torna a erguer com suas palavras. Contidas nas suas “ingênuas moradias, nos seus pobres telhados carcomidos ou inexistente, nas suas impressionantes portas fracas e horríveis” a vida e a morte, ele diz.

Ela vive povoada de odores de comidas e de árvores e folhas, de sons, de murmúrios, de vozes, de contos. Inteiramente viva entre a névoa e a chuva, sob a luz do sol e da lua. E morta parece estar nas ruas desertas e geladas, petrificada no meio da noite.

Jamais verdadeiramente erguida nas suas repetidas mudanças mas, presença reafirmada num jogo estilístico em que parte dela - portas, janelas, madeiras, sacadas, telhados, erguidos ou espalhados ou amontoados nas suas mal acabadas ruas se constituem elementos suficientemente sugestivos para desenhá-la como um todo.

E, assim, embora apenas vislumbrada no seu traçado e nas suas casas que se levantam e, para serem reconstruídas mais além, são desfeitas, ela se recorta, fortemente, da paisagem do Continente sem, no entanto, adquirir um estatuto definido o que faz dela uma cidade que pode abrigar múltiplas outras.

Não é, pois, uma cidade determinada essa Barco inspiradora de Carlos Droguett, apesar das mesquinhas aparências, dos conhecidos adobes, das madeiras fragrantes dos bosques recém cortados, é qualquer cidade ou pode ter sido todas as cidades desta América informe, atônita, maravilhosa e incompleta.

Efêmera nesse seu renovar-se, esboçada apenas, abriga esses conquistadores que no começo do século chegaram à América saídos da Espanha. Alimentados de sonhos e ambições de riquezas. Ou, somente, desejosos de possuir a casa e o pão.

domingo, 27 de setembro de 1992

A voz telúrica de Glória

                                                                  Vejo passar os sonhos
dos homens
e enredar-se, às vezes
Em vôos caprichosos
Também passam as palavras
Deixadas em liberdade.

 

Cores fortes e alegres, um figurativismo simples. Folhas, flores, um cântaro derramando água. Assim, é a bela capa de Ídolos antiguos, o último livro de poemas que Gloria Moseley-Williams acaba de publicar.

Edição do P.E.N. Club da Colômbia, diagramado pela própria autora, resultou num cuidadoso exemplar gráfico, cuja diferentes partes se separam umas das outras por folhas de papel brilhante ornadas de frisos onde matizes e motivos acompanham o tema dos poemas que introduzem.

Eles se agrupam sob três rubricas: “Madre greda” (Mãe argila), “Tiempo de río” (Tempo de rio) e “Los sueños del árbol modificam el aire” (Os sonhos da árvore modificam o ar).

Na primeira rubrica, a poetisa se identifica com a terra: me ensinaram que era obra de barro e nos poemas as palavras “terra”,”barro”, “argila”, “areia,” “pó”, “lama” levam a essa presumida origem do ser moldado na matéria terráquea. Um ser que anseia encontrar raízes e formas e expressão. Abre-se para a vida - sou pó irritado, sou argila soante, sou argila enamorada - e busca a sua voz.
 

Um friso azul, enuncia a segunda parte, “Tiempo de río” e a identificação do poeta se faz agora com a água. Gosto de ser rio, diz um verso. Transparente, plácido, suave, navegando docemente, o rio faz um caminho entre ribeiras e dunas e planícies. Dá de beber aos pássaros, alberga barcos e folhas secas.

Voz vegetal se eleva na terceira parte, para cantar a seiva e o enraizar da árvore, as flores que o vento embala, as sementes espalhadas pelo ar. Folhas verdes ornam o friso que acompanha o título desta terceira parte do livro.

Uma busca para o alto, um enternecimento pelo mundo do outro é o eco presente e repetido nessas três vozes que se entrelaçam no último poema “arribo” (chegada).

Rio, árvore e argila habitam esse corpo que não recusa as suas dívidas com a terra, com as raízes, com a chuva e o sol.

Como um grande desejo de pertencer, profundamente, ao universo espontâneo, intocado, desses elementos primeiros é que se constroem os versos de Gloria Mosely-Wiliams.

Uruguaia, que vive atualmente na Colômbia, fundou em Medellin o primeiro jardim de infância do Ministério de Educação e a primeira Escola de Danças Clássicas.

Já então, seus poemas eram publicados em vários países do Continente. E, foram aparecendo seus livros: Semilla de árbol, Donde vive el silencio es una casa..., El espacio habitado, Voz sobreviviente.

Ídolos antiguos é o último deles. Um verdadeiro canto à vida. Um canto à palavra, nascendo desse mundo telúrico que é o mundo de Gloria Moseley-Wiliams.

O rio, a árvore, a terra numa voz de poeta.

domingo, 20 de setembro de 1992

Estampas do extremo sul


Julián Murguía é um engenheiro agrônomo, escritor de contos que já foram publicados no México, Espanha, Argentina e no Brasil onde morou como exilado político.
Traduzido por Sérgio Faraco, acaba de aparecer, em Porto Alegre, pela Mercado Aberto, Contos do país dos gaúchos, Prêmio Nacional de Literatura Infanto-Juvenil do Ministério de Educação e Cultura do Uruguai.
São quinze pequenos “contos e estampas”, lembranças da infância do autor uruguaio da cidade de Melo, perto da fronteira com o Brasil. Relatos e descrições ingênuas - e as ilustrações de Yamandú Tabárez estão em perfeito acorde com os textos - presos a um mundo que já desapareceu, vencido pelas transformações e que o autor deseja recuperar pela palavra.

E, pelos olhos desse menino que ele foi, Julián Murguía refaz paisagens e tipos humanos desse extremo sul do Continente, cujo encanto reside, sobretudo, na singeleza espontânea que deles emana.

A paisagem é o campo aberto, espraiado entre sangas e coxilhas, rodeado de azul-celeste, o campo era a cor, calor e canto. Viver feliz sem tempo, isso era o campo.

Os tipos, o homem simples que o povoa: o velho Santos, domador de rosto indiático, curtido por mil sóis, vivendo sozinho num rancho que era quase tapera onde os animais de estimação eram um lagarto e uma pequena mulita; Don Miguel, o basco que deste lado do mar se tornou carreteiro e cruzava os campos com as carretas carregadas de mercadorias e de lã e couros; Ugarte, o contrabandista, indo e vindo, levando e trazendo erva-mate, fumo, cachaça, açúcar, feijão. E o Pelado, negrinho de olhos redondos e brilhantes, companheiro de brincadeiras. Luminoso pequeno personagem que, embora só tendo um “peso” para gastar na festa do povoado, ainda consegue levar de presente para o amigo um pastel e o retrato que tirou e no qual nem pode dar a dedicatória que deseja - para o meu melhor amigo porque não sabe escrever. Ele faz parte desses deserdados do campo, desses esquecidos sem direitos porque - e assim o diz Julián Murguía - a lei sempre foi feita só para o dono das terras.

Em Contos do país dos gaúchos  os deserdados aparecem no relato “O rancherio”, mundo dos ranchos corcundas e mal feitos. Pequenos. Temporários. Envelhecendo ali como de passagem e que de enfeite somente tinham, pendurados sob os beirais, latas de óleo de cozinha plantados de jasmins e de gerânios. Deles gotejavam piás de cor terrosa, vestidos com roupas grandes demais ou demasiado pequenas. Filhos dos “quileiros” que atravessam a fronteira a pé para o contrabando de um quilo de açúcar ou de erva-mate ou de feijão, arriscando-se a uma cadeia ou a perder aquilo que levam que nada mais é do que um pouco de comida para a família.

Sombras melancólicas que se insinuam nesse mundo de luz e de verão que, embora esmaecidas pelo tempo e pelo desprevenido olhar infantil, são mais um dos testemunhos da pobreza do Continente.

 

domingo, 13 de setembro de 1992

O morto


 Talvez seja um delírio da imaginação, talvez uma catarse burlesca. Nada, no entanto, impediria que pudesse ser, exata e minuciosa, a verdadeira descrição do enterro de um Governante do Continente. 

O seu grande amigo morria envenenado e o Governante, admiravelmente fiel a esse que acreditara sincero, lhe assiste os últimos momentos. Morto, veste-o com as roupas que ele, Governante, costumava usar e o deixa nos aposentos oficiais para que assim o encontrem no dia seguinte. Com esse engodo, se despoja do Poder e reduzindo-se à escala dos mortais comuns, pode, então, presenciar o que acontece no Palácio: primeiramente, a demora em anunciar o fato à nação para dar tempo de se efetuarem os acordos secretos dos herdeiros do regime; depois, o velório, o morto no caixão, com todas as medalhas que se acreditara merecedor e o cortejo desfilando ao redor do cadáver. E, repentinamente, explodir o ódio popular.

Sem o imprescindível aparato do Poder, o Governante, misturado aos demais, passa despercebido e presencia o destino que o povo dá a seus “despojos” e ao Palácio. Vê os grupos de assalto se meterem pelas janelas diante da complacência calada da guarda, vê as cabeças ferozes que dispersavam a pauladas o cortejo[...] e os oito homens que retiraram o morto do caixão e o arrastaram escadas abaixo e pelas ruas onde se levantavam fogueiras alimentadas com seus retratos oficiais que desde o começo de seu governo, haviam sido espalhado por toda parte.

Mas, depois que se calou o júbilo dos sinos por sua pretensa morte, o Governante, ignorando a vontade de seu povo, não abandonou o Poder. Somente fará isso muito depois, quando morre, já senil e alheio aos clamores das multidões frenéticas que se lançavam nas ruas cantando os hinos de júbilo da notícia jubilosa de sua morte e alheio para sempre jamais às músicas de liberação e aos foguetes de alegria e às badaladas de gloria que anunciaram ao mundo a boa nova de que o tempo incontável da eternidade tinha, por fim, terminado.

Na América das ditaduras ou das pseudo-democracias, a história desse ditador (com as possíveis variantes, igual a de tantos outros) se nutre de injustiças, crueldades, desprezo absoluto pelos que o rodeiam.Mas, ele é tão simplório e reles e tão simplórios e reles são os seus atos que para aproximar-se deles parece que só cabe o riso. Embora amargo para os homens do Continente.

Em El otoño del patriarca (Barcelona, Plaza y Janes, 1975), Gabriel García Márquez não lhe poupou as zombarias e ninguém ignora o quanto elas podem ser pertinentes.

 

domingo, 6 de setembro de 1992

O bem-amado


tinha perdido a fala de tanto falar e colocara ventríloquos atrás das cortinas para fingir que falava.
 
          Ele dizia que o problema do país estava no tempo de sobra que as pessoas tinham e usavam para pensar. Para lhes dar o que fazer instituiu os jogos florais e os concursos das rainhas da beleza. Acreditava-se dono do Poder e como tal agia até que seu mais útil e fiel colaborador, às portas da morte, pode lhe dizer as verdades que ninguém, jamais, usaria pronunciar: que o senhor não é Presidente de ninguém, nem está no trono por seus méritos mas porque aí o sentaram os ingleses e o sustentaram os gringos [...] e eu o vi cochichando de medo de lá para cá e de cá para lá quando os gringos lhe gritaram que aí te deixamos com o teu bordel de negros para ver como te arranjas sem nós e a partir de então não se desmontou da cadeira não porque não queria mas porque não pode porque sabe que na hora em que for visto pela rua vestido de mortal vão lhe cair em cima como cães [...].
          Mas, o Presidente não era homem de escutar verdades e continuou nos seus mandos e desmandos como soe acontecer, quase sempre, nos países do Continente.Por decreto, ele canoniza sua mãe, restabelece a rinha de galos e muda o dia dos feriados.
         
        Num país do Caribe, refúgio de Presidentes e Ditadores que perderam o poder, mundo barroco de cores e perfumes e luzes, o Presidente acredita que a pátria é ele e que a sua presença é, verdadeiramente, insubstituível.
 
          El otoño del patriarca foi publicado em  1975.  
          Na galeria dos déspotas do Continente, esse filho de Bendición Alvarado, como criação de Gabriel García Márquez, é uma figura hiperbólica. O seu ridículo, a sua ignorância, a sua inconsciência e a sua maldade possuem as dimensões do Continente.
 
          Como as próprias ambigüidades que tornam possível coexistir a pompa de seu palácio cheio de luxos duvidosos de suposta inspiração européia com seu modo rústico de vida e a ignorância em que deixou mergulhado seu povo nesses anos todos em que impôs, usando de todos os subterfúgios e estratagemas, a sua presença.  
        

         
           E de tal modo se convencera de que era amado por aqueles que acreditava governar que não conseguira perceber a revolta que se fora armazenando.

 
          Numa tarde de dezembro, passando incógnito em carro fechado pela cidade, viu no céu os balões coloridos. Balões vermelhos e verdes e amarelos e azuis que se abriram para deixar voar sobre a cidade milhares de folhetos.

E o povo todo, mesmo os sentinelas do palácio, repetiam: todos sem diferença de classe contra o despotismo de séculos, a reconciliação patriótica contra a corrupção e a arrogância [...].