Pedro de Malas Artes,
engenhoso personagem que, em primeira pessoa conta suas incursões no mundo dos
ricos e poderosos, interrompe, por vezes, a narrativa de suas aventuras para se
deter em considerações sobre essa estrutura social em que vive, cujas mazelas
são reforçadas pelos conselhos de sua mãe a voz do miserável submisso - e pelas
concepções de mundo dos que tirando proveito dessa submissão não tem porque
mudá-la.
Ou, para, justamente,
monologar sonhos de transformações que parecem jamais acontecer e para se
desejar o demolidor daquilo que, por muito velho emperrava o alvorecer das
alvoradas e querer que os que foram sufocados na lama voltem a respirar
livres.
Um trágico mundo se ergue de
suas palavras. Não apenas porque se refere à fome e ao trabalho, quase sem
ganho, dos que tem de se submeter à lei do que é dono das terras, do gado e do
trabalho que pode oferecer. Mas, porque essa fome e esse trabalho enriquecem o
outro. São eles que aumentam suas posses, tornando-se mais poderoso do que o
representante da lei, da fé e da justiça, isto é, com o beneplácito e o apoio
das Instituições.
Como, no entanto, o narrador é uma das vítimas desse mundo planejadamente em desequilíbrio, suas palavras se nutrem dos seus próprios sofrimentos - que ele sabe ser também dos outros seus iguais - e não escondem a emoção.
E, então, em meio à ironia e troças e corrosivas constatações, em meio a uma comicidade baseada no mais chão, surge um delicado lirismo que desabrocha, sobretudo, quando Pedro de Malas Artes é invadido pela lembrança de Margarida.
Lembrança que chega como um consolo, como um alimento. Margarida é o “descanso” é o “lugar onde chegar”. E o seu dizer para falar nela é como um poema.
Singelas as expressões: e
sol, e lua, e mar e vento. Tempo menino sem antes nem depois, tempo único que
se prolonga pela vida inteira.Desprovidas de adorno, as frases que procuram em síntese perfeita dar conta desse amor paixão: Fechei os olhos e me confiei à doçura da pele de Margarida. No aconchego de Margarida, os limites se diluem. Eu com Margarida dissolve-se a diferença de eu e ela para alçar vôo ao que é maior do que eu e ela, feito de eu e ela, sem anular eu e Margarida, como um abraço em que se vive aumentado, aumentando quem se abraça, eu com Margarida ilimitadamente, os limites abolidos, eu perdoado, eu alevantado, eu nadando nas ondas do corpo de Margarida, marulho de mar e margem garrida.
E, nascido da ingenuidade popular, Pedro de Malas Artes que Donaldo Schüller tornou a criar, sagaz e emocionado, se enriqueceu. Pedro de Malas Artes (Editora Movimento, Porto Alegre, 1992) é sua trágica e lírica saga.
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