domingo, 18 de outubro de 1992

Na Conquista.As coisas

          Vão se espalhando pelo chão enquanto as carretas carregadas levam a cidade desmontada para ser erguida, novamente, noutro lugar.
 
          Juan Nuñez de Prado, vindo do Peru, fundara Barco em 1540 na região argentina de Tucumán e, ameaçado pelos conquistadores espanhóis que haviam começado a conquista pelo Chile, muda, três vezes, a cidade de lugar.
 
          A igreja, as casas feitas pedaços, com suas portas e janelas, amontoadas nos carros de boi e no dorso dos índios, seguem o caminho que os conquistadores do Continente vão traçando e deixam nele patéticos restos de um cotidiano que aspira repetir os hábitos e os costumes do Velho Mundo.
 
          As carretas avançam, muitas vezes penosamente, contornando encostas, suportando o cair da chuva no peso da carga, a cada mudança que o capitão determina querendo salvar a cidade; os homens sofrem privações.
 
          E, repetitivas, se inserem sempre renovadas na narrativa, as enumerações desses objetos que, trazidos da metrópole, vão se perdendo nas terras da América.
 
          Ou abandonadas no meio de uma casa a meio derrubar, onde as cadeiras empilhadas e as roupas espalhadas no chão ou penduradas num prego, os papéis soltos, um livro desfeito, mapas, cartas de baralho, um pequeno martelo de prata, pousado sobre um pano qualquer, mostram não só a ansiedade em realizar a mudança, como a violência que a orientou ao obrigar a partir também aqueles que, na cidade, já se haviam enraizado.
 
          Ou perdidas nessa viagem cheia de medos e percalços em que os bois, querendo fugir do terror ao margear os precipícios, neles se lançam, levando montanha abaixo a carga inteira: dos cestos, caindo a roupa branca; tilintando as colheres, as facas, uma panela; cadeiras, pedaços de portas, de janelas, de camas, pedaços de um altar se espatifando.
 
          Bêbado de palavras é Carlos Droguett, diz o professor da Universidade de Poitiers, Alain Sicard. É realmente, um bêbado de palavras, o autor de El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973)
 
          Na escrita repetitiva e sinuosa, as palavras aparecem e aparecem outra vez e tornam a aparecer num perfeito e inusitado jogo estilístico em que o substantivo, na enumeração das coisas recria um universo cotidiano e simples, inserido na epopéia da conquista e a reduz à dimensão dos homens.
 
          Sejam esses homens, o conquistador valente e cruel guerreiro, ou o soldado ingênuo e ignorante, engajado na ilusória e perigosa empresa de submeter o Novo Mundo, eles, sem dúvida, são iguais na sua fragilidade.
 
          E, perdendo, nesse adentrar-se pelo Continente, as coisas que eram parte do mundo que haviam deixado - e lençóis, e móveis e armas e utensílios - capitães e soldados, igualmente, vão sendo despojados do passado e das raízes que procuravam conservar.
 
          De seu, teriam somente a luta, os sofrimentos, as perdas. Porque o espaço conquistado, as riquezas dele advindas e seu usufruto e as glórias pertenciam aos donos do Poder distante.

 

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