domingo, 13 de setembro de 1992

O morto


 Talvez seja um delírio da imaginação, talvez uma catarse burlesca. Nada, no entanto, impediria que pudesse ser, exata e minuciosa, a verdadeira descrição do enterro de um Governante do Continente. 

O seu grande amigo morria envenenado e o Governante, admiravelmente fiel a esse que acreditara sincero, lhe assiste os últimos momentos. Morto, veste-o com as roupas que ele, Governante, costumava usar e o deixa nos aposentos oficiais para que assim o encontrem no dia seguinte. Com esse engodo, se despoja do Poder e reduzindo-se à escala dos mortais comuns, pode, então, presenciar o que acontece no Palácio: primeiramente, a demora em anunciar o fato à nação para dar tempo de se efetuarem os acordos secretos dos herdeiros do regime; depois, o velório, o morto no caixão, com todas as medalhas que se acreditara merecedor e o cortejo desfilando ao redor do cadáver. E, repentinamente, explodir o ódio popular.

Sem o imprescindível aparato do Poder, o Governante, misturado aos demais, passa despercebido e presencia o destino que o povo dá a seus “despojos” e ao Palácio. Vê os grupos de assalto se meterem pelas janelas diante da complacência calada da guarda, vê as cabeças ferozes que dispersavam a pauladas o cortejo[...] e os oito homens que retiraram o morto do caixão e o arrastaram escadas abaixo e pelas ruas onde se levantavam fogueiras alimentadas com seus retratos oficiais que desde o começo de seu governo, haviam sido espalhado por toda parte.

Mas, depois que se calou o júbilo dos sinos por sua pretensa morte, o Governante, ignorando a vontade de seu povo, não abandonou o Poder. Somente fará isso muito depois, quando morre, já senil e alheio aos clamores das multidões frenéticas que se lançavam nas ruas cantando os hinos de júbilo da notícia jubilosa de sua morte e alheio para sempre jamais às músicas de liberação e aos foguetes de alegria e às badaladas de gloria que anunciaram ao mundo a boa nova de que o tempo incontável da eternidade tinha, por fim, terminado.

Na América das ditaduras ou das pseudo-democracias, a história desse ditador (com as possíveis variantes, igual a de tantos outros) se nutre de injustiças, crueldades, desprezo absoluto pelos que o rodeiam.Mas, ele é tão simplório e reles e tão simplórios e reles são os seus atos que para aproximar-se deles parece que só cabe o riso. Embora amargo para os homens do Continente.

Em El otoño del patriarca (Barcelona, Plaza y Janes, 1975), Gabriel García Márquez não lhe poupou as zombarias e ninguém ignora o quanto elas podem ser pertinentes.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário