domingo, 20 de setembro de 1992

Estampas do extremo sul


Julián Murguía é um engenheiro agrônomo, escritor de contos que já foram publicados no México, Espanha, Argentina e no Brasil onde morou como exilado político.
Traduzido por Sérgio Faraco, acaba de aparecer, em Porto Alegre, pela Mercado Aberto, Contos do país dos gaúchos, Prêmio Nacional de Literatura Infanto-Juvenil do Ministério de Educação e Cultura do Uruguai.
São quinze pequenos “contos e estampas”, lembranças da infância do autor uruguaio da cidade de Melo, perto da fronteira com o Brasil. Relatos e descrições ingênuas - e as ilustrações de Yamandú Tabárez estão em perfeito acorde com os textos - presos a um mundo que já desapareceu, vencido pelas transformações e que o autor deseja recuperar pela palavra.

E, pelos olhos desse menino que ele foi, Julián Murguía refaz paisagens e tipos humanos desse extremo sul do Continente, cujo encanto reside, sobretudo, na singeleza espontânea que deles emana.

A paisagem é o campo aberto, espraiado entre sangas e coxilhas, rodeado de azul-celeste, o campo era a cor, calor e canto. Viver feliz sem tempo, isso era o campo.

Os tipos, o homem simples que o povoa: o velho Santos, domador de rosto indiático, curtido por mil sóis, vivendo sozinho num rancho que era quase tapera onde os animais de estimação eram um lagarto e uma pequena mulita; Don Miguel, o basco que deste lado do mar se tornou carreteiro e cruzava os campos com as carretas carregadas de mercadorias e de lã e couros; Ugarte, o contrabandista, indo e vindo, levando e trazendo erva-mate, fumo, cachaça, açúcar, feijão. E o Pelado, negrinho de olhos redondos e brilhantes, companheiro de brincadeiras. Luminoso pequeno personagem que, embora só tendo um “peso” para gastar na festa do povoado, ainda consegue levar de presente para o amigo um pastel e o retrato que tirou e no qual nem pode dar a dedicatória que deseja - para o meu melhor amigo porque não sabe escrever. Ele faz parte desses deserdados do campo, desses esquecidos sem direitos porque - e assim o diz Julián Murguía - a lei sempre foi feita só para o dono das terras.

Em Contos do país dos gaúchos  os deserdados aparecem no relato “O rancherio”, mundo dos ranchos corcundas e mal feitos. Pequenos. Temporários. Envelhecendo ali como de passagem e que de enfeite somente tinham, pendurados sob os beirais, latas de óleo de cozinha plantados de jasmins e de gerânios. Deles gotejavam piás de cor terrosa, vestidos com roupas grandes demais ou demasiado pequenas. Filhos dos “quileiros” que atravessam a fronteira a pé para o contrabando de um quilo de açúcar ou de erva-mate ou de feijão, arriscando-se a uma cadeia ou a perder aquilo que levam que nada mais é do que um pouco de comida para a família.

Sombras melancólicas que se insinuam nesse mundo de luz e de verão que, embora esmaecidas pelo tempo e pelo desprevenido olhar infantil, são mais um dos testemunhos da pobreza do Continente.

 

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