
Em pouco mais de cem
páginas, a História do Brasil dos últimos anos a partir da história de Ana. Uma
história de dúvidas e inseguranças oferecida pelas três últimas décadas aos
jovens brasileiros que desejaram e, por vezes tentaram, modificar o país: Ana Quaresma, que a Editora Movimento
de Porto Alegre lançou neste ano, trata de um caminho percorrido entre dois
sorvetes. O sorvete contido no título que encabeça a primeira parte da
narrativa, “Tomando sorvete”, um convívio simples que será origem do ato de
contar: Desde que tomamos sorvete na rua da Azenha que estou
com essa coisa despropositada em minha cabeça: escrever. Estou possuída pela
necessidade de te responder, como se te devesse algo. E, no entanto, não te
devo mais do que o sorvete que tomamos na
Azenha.. E o que está contido nas últimas linhas do romance: Leila, é o
seguinte: vamos até a rua da Azenha tomar um sorvete? Eu pago.
Como que um descompromisso,
como que um sem importância pueril emoldurando o conflito dessa geração que
talvez tenha pensado em lutas, talvez tenha querido lutas - e alguns lutaram -
e que as circunstâncias, a falta de preparo ou de um ideal mais forte
conduziram à passividade corroída pelo sentimento de fracasso: Será bom não estar sozinha nessas horas, quando lembro os amigos que
foram presos, os que morreram, os que delataram os que fugiram ou apenas desapareceram diz Ana. Porém não é a deles a história que
ela conta - e quantos foram? - mas a dos que foram alijados ou se alijaram do
processo brasileiro. Primeiramente, pela sanha dos patrioteiros ignorantes ou
oportunistas e depois pela alienação que o Sistema para preservar-se, instaurou
através dos mais diversos meios.
Numa narrativa estruturada
em cinco partes desiguais (uma breve introdução, três capítulos (talvez) e um
também breve post-scriptum, sucedem-se momentos dos últimos trinta anos
brasileiros que se mostram a partir de nostalgias, indecisões, amores que
desabrocham e se diluem, decepções, nos quais, por vezes, uma fugaz felicidade
se insere.
Muitos personagens. Muitos
fatos e situações que se atropelam e que, sem mencionar datas, deixam claro que
as coisas se passam aqui e sob a égide do obscurantismo: e a censura, e o
tolhimento das vontades, e o desemprego planejado e o massacre cultural.
Para Ana e os que a
rodeavam, a realidade estava cheia de
tropeços, desencantos, privações.
E muito medo.
E, embora houvesse
tentativas - o encontro com os alunos na sala de aula, uma tese de mestrado, a
montagem de uma peça de teatro, o trabalho como sociólogo de uma Fundação, o
esforço resultou inglório.
Anos mais tarde, querendo
explicar o que foram esses dias e explicar-se, Ana Quaresma dá provas de uma
lucidez necessária: Eu não matei, não
morri, não delatei, não fui presa [...]. Eu fui a maioria, eu fui a média
dos descontentes, eu me amordacei para continuar. E é disso que estou te
falando: de como tentamos levar a vida, sem abrir mão do sonho mas convivendo
com o pesadelo, perdendo um combatente de tempos em tempos, sentindo nos ossos
a vontade de prender fogo em tudo e de mandar tudo à merda. As vezes sentindo
vergonha de estar vivo.
Lucidez que lhe permite
poder acreditar outra vez. No povo unido, nas canções e nos versos.
O que torna o romance de
Suzana Kilpp uma bela crônica da esperança. E não é de esperança que vive o
país?
Nenhum comentário:
Postar um comentário