domingo, 1 de novembro de 1992

Crônica da esperança

                                   ...eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa... 



          Em pouco mais de cem páginas, a História do Brasil dos últimos anos a partir da história de Ana. Uma história de dúvidas e inseguranças oferecida pelas três últimas décadas aos jovens brasileiros que desejaram e, por vezes tentaram, modificar o país: Ana Quaresma, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou neste ano, trata de um caminho percorrido entre dois sorvetes. O sorvete contido no título que encabeça a primeira parte da narrativa, “Tomando sorvete”, um convívio simples que será origem do ato de contar: Desde que tomamos sorvete na rua da Azenha que estou com essa coisa despropositada em minha cabeça: escrever. Estou possuída pela necessidade de te responder, como se te devesse algo. E, no entanto, não te devo mais do que o sorvete que tomamos na Azenha.. E o que está contido nas últimas linhas do romance: Leila, é o seguinte: vamos até a rua da Azenha tomar um sorvete? Eu pago.

          Como que um descompromisso, como que um sem importância pueril emoldurando o conflito dessa geração que talvez tenha pensado em lutas, talvez tenha querido lutas - e alguns lutaram - e que as circunstâncias, a falta de preparo ou de um ideal mais forte conduziram à passividade corroída pelo sentimento de fracasso: Será bom não estar sozinha nessas horas, quando lembro os amigos que foram presos, os que morreram, os que delataram os que fugiram ou apenas desapareceram  diz Ana. Porém não é a deles a história que ela conta - e quantos foram? - mas a dos que foram alijados ou se alijaram do processo brasileiro. Primeiramente, pela sanha dos patrioteiros ignorantes ou oportunistas e depois pela alienação que o Sistema para preservar-se, instaurou através dos mais diversos meios.

          Numa narrativa estruturada em cinco partes desiguais (uma breve introdução, três capítulos (talvez) e um também breve post-scriptum, sucedem-se momentos dos últimos trinta anos brasileiros que se mostram a partir de nostalgias, indecisões, amores que desabrocham e se diluem, decepções, nos quais, por vezes, uma fugaz felicidade se insere.

          Muitos personagens. Muitos fatos e situações que se atropelam e que, sem mencionar datas, deixam claro que as coisas se passam aqui e sob a égide do obscurantismo: e a censura, e o tolhimento das vontades, e o desemprego planejado e o massacre cultural.

          Para Ana e os que a rodeavam, a realidade estava cheia de tropeços, desencantos, privações. E muito medo.

          E, embora houvesse tentativas - o encontro com os alunos na sala de aula, uma tese de mestrado, a montagem de uma peça de teatro, o trabalho como sociólogo de uma Fundação, o esforço resultou inglório.

          Anos mais tarde, querendo explicar o que foram esses dias e explicar-se, Ana Quaresma dá provas de uma lucidez necessária: Eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa [...]. Eu fui a maioria, eu fui a média dos descontentes, eu me amordacei para continuar. E é disso que estou te falando: de como tentamos levar a vida, sem abrir mão do sonho mas convivendo com o pesadelo, perdendo um combatente de tempos em tempos, sentindo nos ossos a vontade de prender fogo em tudo e de mandar tudo à merda. As vezes sentindo vergonha de estar vivo.

          Lucidez que lhe permite poder acreditar outra vez. No povo unido, nas canções e nos versos.

          O que torna o romance de Suzana Kilpp uma bela crônica da esperança. E não é de esperança que vive o país?

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