Pedro de Malas Artes está
diante de seu carrasco e sabe que logo será morto. Mas, pede para falar: Me ouvindo, poderá conhecer doutamente a
ti mesmo e os ninguéns que entulham teu caminho.
Toda a sua história, desde o
início até chegar ao fim, condenado a morrer - uma depois da outra, as
histórias de Pedro Malazarte - se constrói sobre o confronto clássico: o
poderoso e os deserdados.
E, assim como ele,
Malazarte, Pedro de Malas Artes, cabe na palavra “ninguéns”, também na
expressão “ti mesmo” cabe o seu interlocutor e os poderosos seus semelhantes.
Esperto, falador, cheio de
invenções e, sobretudo sem medo de usar métodos escatológicos na vingança
contra Couralindo, o brutal patrão de seu irmão, ele está consciente dos riscos
que irá correr e tenta escapar sempre das conseqüências de seus atos com as
armas de que dispõe: o engano e a mentira.
Seus feitos, verdadeiras
artes de tinhoso, motivados pela revolta do pobre e encravados numa sociedade
de castas, não apenas emporcalham a vítima (Couralindo, sua mulher e os
respeitáveis convidados da festa que oferecem) como descobrem os vícios de uma
estrutura social regida por preceitos medievais, em pleno fim do século vinte.
Oriundo de invencível
pobreza e, pela primeira vez, no meio de uma festa de ricos, percebe
significados no comportamento dos presentes que seriam extremamente ridículos
não fossem já consagrados por um uso que institui a rígida separação de
classes. Pode, então estabelecer comparações entre os dois mundos: o seu, o da
fome e o apressado comer malazarte que quando termina a bóia ninguém
sabe a hora da seguinte refeição e ainda se lambem dedos e pratos para não perder migalha” e o do outro que
exibia para os convidados montes e vales
de comida, suficientes para as fomes de um exército.
E, no meio dos belos trajes
e de gestos estudados, comprovar, também, as relações que permitem a
estabilidade desse mundo fechado em que o exercício do cargo público e da
justiça são sustentados pelo poder econômico e, portanto, a ele submissos.
Pedro de Malas Artes misto de cobra e urubu para investir
contra Couralindo, o dono de propriedades
sem começo nem fim, dono de milhares e milhares de cabeça de gado e de
capangas e das incríveis judiarias.
E, enganando, mentindo,
inventando, de Couralindo ele destrói o milharal, o animal de estimação, o
casamento e, então, a honra. E, enganando, mentindo, inventando, intrigando, de
Fortunato, homem poderoso e endinheirado,
ele rouba a filha”.
Tudo isso entre muitas
andanças e manhas, entre muitas reflexões sobre o mundo e suas verdades.
Nutrido de suas vivências
que são apenas um contínuo não ter, e dos conhecimentos que absorve na, para
ele, proveitosa leitura do Almanaque Capivarol, suas palavras se abrem para
definitivos e sábios preceitos e para um profundo e, por vezes, amargo lirismo.
Pedro de Malas Artes não tem
salvação e, somente, lhe é concedido a escolha do modo de morrer.
Coerente com toda essa vida
que ele para si mesmo arquitetou, foi sua escolha: inesperada, jocosa,
irreverente, irrepreensível na sua malandragem. Verdadeiramente digna desse
Pedro de Malas Artes que arrancado das histórias do povo, recebeu de Donaldo
Schüler um precioso estatuto de personagem literário.
Um personagem realizador de
façanhas perfeitamente capazes de provocar inveja em muitos brasileiros que,
embora acreditando em ações mais severas e definitivas para assegurar a
assepsia do país, não desprezariam ver chafurdar em elementos menos dignos,
muitos dos grandes senhores que pela nação imperam.
Daí ser Pedro de Malas
Artes, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou este ano, uma leitura
catártica.
E, isto é o menos, embora
sejam duros os tempos que correm.
Porque, a riqueza do tema
popular renovado, a perfeição de um construir narrativo que jamais perde o seu
vigor, uma linguagem inventiva e, muitas vezes, poética e, principalmente, esse
olhar solidário que se pousa sobre os oprimidos faz desse romance do escritor
gaúcho, um importante momento da Literatura brasileira.
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