domingo, 8 de novembro de 1992

O novo Malazarte

 
Pedro de Malas Artes está diante de seu carrasco e sabe que logo será morto. Mas, pede para falar: Me ouvindo, poderá conhecer doutamente a ti mesmo e os ninguéns que entulham teu caminho.

Toda a sua história, desde o início até chegar ao fim, condenado a morrer - uma depois da outra, as histórias de Pedro Malazarte - se constrói sobre o confronto clássico: o poderoso e os deserdados.

E, assim como ele, Malazarte, Pedro de Malas Artes, cabe na palavra “ninguéns”, também na expressão “ti mesmo” cabe o seu interlocutor e os poderosos seus semelhantes.

Esperto, falador, cheio de invenções e, sobretudo sem medo de usar métodos escatológicos na vingança contra Couralindo, o brutal patrão de seu irmão, ele está consciente dos riscos que irá correr e tenta escapar sempre das conseqüências de seus atos com as armas de que dispõe: o engano e a mentira.

Seus feitos, verdadeiras artes de tinhoso, motivados pela revolta do pobre e encravados numa sociedade de castas, não apenas emporcalham a vítima (Couralindo, sua mulher e os respeitáveis convidados da festa que oferecem) como descobrem os vícios de uma estrutura social regida por preceitos medievais, em pleno fim do século vinte.

Oriundo de invencível pobreza e, pela primeira vez, no meio de uma festa de ricos, percebe significados no comportamento dos presentes que seriam extremamente ridículos não fossem já consagrados por um uso que institui a rígida separação de classes. Pode, então estabelecer comparações entre os dois mundos: o seu, o da fome e o apressado comer malazarte que quando termina a bóia ninguém sabe a hora da seguinte refeição e ainda se lambem dedos e pratos para não perder migalha” e o do outro que exibia para os convidados montes e vales de comida, suficientes para as fomes de um exército.

E, no meio dos belos trajes e de gestos estudados, comprovar, também, as relações que permitem a estabilidade desse mundo fechado em que o exercício do cargo público e da justiça são sustentados pelo poder econômico e, portanto, a ele submissos.

Pedro de Malas Artes misto de cobra e urubu para investir contra Couralindo, o dono de propriedades sem começo nem fim, dono de milhares e milhares de cabeça de gado e de capangas e das incríveis judiarias.

E, enganando, mentindo, inventando, de Couralindo ele destrói o milharal, o animal de estimação, o casamento e, então, a honra. E, enganando, mentindo, inventando, intrigando, de Fortunato, homem poderoso e endinheirado, ele rouba a filha”.

Tudo isso entre muitas andanças e manhas, entre muitas reflexões sobre o mundo e suas verdades.

Nutrido de suas vivências que são apenas um contínuo não ter, e dos conhecimentos que absorve na, para ele, proveitosa leitura do Almanaque Capivarol, suas palavras se abrem para definitivos e sábios preceitos e para um profundo e, por vezes, amargo lirismo.

Pedro de Malas Artes não tem salvação e, somente, lhe é concedido a escolha do modo de morrer.

Coerente com toda essa vida que ele para si mesmo arquitetou, foi sua escolha: inesperada, jocosa, irreverente, irrepreensível na sua malandragem. Verdadeiramente digna desse Pedro de Malas Artes que arrancado das histórias do povo, recebeu de Donaldo Schüler um precioso estatuto de personagem literário.

Um personagem realizador de façanhas perfeitamente capazes de provocar inveja em muitos brasileiros que, embora acreditando em ações mais severas e definitivas para assegurar a assepsia do país, não desprezariam ver chafurdar em elementos menos dignos, muitos dos grandes senhores que pela nação imperam.

Daí ser Pedro de Malas Artes, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou este ano, uma leitura catártica.

E, isto é o menos, embora sejam duros os tempos que correm.

Porque, a riqueza do tema popular renovado, a perfeição de um construir narrativo que jamais perde o seu vigor, uma linguagem inventiva e, muitas vezes, poética e, principalmente, esse olhar solidário que se pousa sobre os oprimidos faz desse romance do escritor gaúcho, um importante momento da Literatura brasileira.

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