domingo, 29 de dezembro de 1991

O exílio dos que ficaram


            Desde que os ibéricos aqui chegaram, há quase quinhentos anos, o Continente foi se desangrando. Nessa perda de riquezas, inserem-se, também¸ os escritores. .Muitas vezes,e desde sempre, houve os que foram obrigados a abandonar  seu país, dando origem ao que passou a ser chamado de Literatura do Exílio.

            Rubrica que, ao abrigar um assunto muito vasto e muito variado, irá oferecer diferentes ângulos de aproximação: razões que forçaram a  partida, o momento da partida, o desespero do cotidiano em terras estranhas, a luta pela expressão, a perda do destinatário.

            As razões da partidas acontecida com menor ou maior pressa, acabam por serem sempre as mesmas. Daniel Moyano, que da Argentina partiu para a Espanha, em entrevista concedida, em 1980, em Paris, dizia que lhe era impossível viver num país onde, de repente, é levado preso, preso fica por vários  dias, é posto em liberdade sem conhecer as causas de sua prisão e, ainda, recebe o conselho de não procurar conhecê-las.

            Terrível, também, o momento da partida para o destino desconhecido. Os sentimentos irão explodir nesse desgarramento e terão diferentes nuanças.  De Adrian Santini, jovem poeta chileno, é a voz que diz  poder carregar seus fardos nos ombros e acrescentar  que me despedi insolente.  Com certeza, ignorava ou minimizava os momentos difíceis que o esperavam e que Humberto Constantini, poeta argentino exilado no México irá definir.  Um desacerto  que domina aquele que teve que abandonar o seu espaço para se integrar, arbitrariamente, noutro, que precisa, então criticar: escrupulosamente / umas vinte vezes por dia / isto é / não lhe perdoar absolutamente nada / nem o agorinha nem o smog nem o transporte / nem a grandiosidade/ nem as cores estridentes / nem os impronunciáveis nomes das ruas / nem o seu glorioso passado revolucionário.

            Desacerto no qual se engloba o martírio maior do exílio: o isolamento originado da impossibilidade de comunicação, mesmo nos casos em que a língua do país acolhedor seja a mesma do país natal

            Quem exprime esses obstáculos, que ainda no caso em que seja a mesma língua, devem ser transpostos, é, também, Humberto Costantini que no seu poema “Rosedal” se queixa de não entender quase nada do que dizem os jornais mexicanos.

            Se o exílio do hispano-falante é passado na Espanha, as relações muitas vezes, se regem pela mentalidade, ainda vigente, do colonizador versus colonizado e expressa o binômio metrópole /colônia. Nela, somente é aceitável para os espanhóis a língua falada na Espanha. Todas as variantes próprias de cada país do Continente se afastam de seu padrão e, portanto, são inaceitáveis. Mas, sem dúvida, a dificuldade maior será a  separação do escritor de seus leitores, quando o exílio acontece em paises cuja língua é diferente da sua língua materna e na qual ele se expressa.
            A esses desesperos advém outros; o diluir-se, na passagem dos anos, a imagem do país natal, o exílio duplo ou repetidos exílios, o viver entre um passado destruído e um futuro incerto, o dividir-se entre o desejo de retorno e o medo da volta para tanta coisa que não existe mais.         Emoções que fluem e são testemunhas da tragédia vivida por tantos escritores do Continente. Debruçados sobre esses testemunhos, Carlos Droguett, o romancista chileno exilado na Suíça, reflete e se surpreende. Surpreende-se que no teatro, na música, nas narrativas e nos poemas  que expressam os pensamentos, os suspiros e os sofrimentos dos intelectuais chilenos, paire um silêncio sobre o outro exílio. Aqueles que nenhuma das vozes que se levantaram considerou: O exílio dos que não saíram, não souberam ou não puderam sair do país. O exílio dos que sucessivamente, enfrentaram a delação, a prisão, a tortura, o desaparecimento, o assassinato e o absorveram e deixaram um testemunho escrito ou oral de sua passagem pela terra, de sua vertiginosa agonia na cela  no leito da tortura que também  eram a su

            Desde que os ibéricos aqui chegaram, há quase quinhentos anos, o Continente foi se desangrando. Nessa perda de riquezas, inserem-se, também¸ os escritores. Muitas vezes,e desde sempre, houve os que foram obrigados a abandonar  seu país, dando origem ao que passou a ser chamado de Literatura do Exílio.

            Rubrica que, ao abrigar um assunto muito vasto e muito variado, irá oferecer diferentes ângulos de aproximação: razões que forçaram a  partida, o momento da partida, o desespero do cotidiano em terras estranhas, a luta pela expressão, a perda do destinatário.

            As razões da partidas acontecida com menor ou maior pressa, acabam por serem sempre as mesmas. Daniel Moyano, que da Argentina partiu para a Espanha, em entrevista concedida, em 1980, em Paris, dizia que lhe era impossível viver num país onde, de repente, é levado preso, preso fica por vários  dias, é posto em liberdade sem conhecer as causas de sua prisão e, ainda, recebe o conselho de não procurar conhecê-las.

            Terrível, também, o momento da partida para o destino desconhecido. Os sentimentos irão explodir nesse desgarramento e terão diferentes nuanças.  De Adrian Santini, jovem poeta chileno, é a voz que diz  poder carregar seus fardos nos ombros e acrescentar  que me despedi insolente.  Com certeza, ignorava ou minimizava os momentos difíceis que o esperavam e que Humberto Constantini, poeta argentino exilado no México irá definir.  Um desacerto  que domina aquele que teve que abandonar o seu espaço para se integrar, arbitrariamente, noutro, que precisa, então criticar: escrupulosamente / umas vinte vezes por dia / isto é / não lhe perdoar absolutamente nada / nem o agorinha nem o smog nem o transporte / nem a grandiosidade/ nem as cores estridentes / nem os impronunciáveis nomes das ruas / nem o seu glorioso passado revolucionário.

            Desacerto no qual se engloba o martírio maior do exílio: o isolamento originado da impossibilidade de comunicação, mesmo nos casos em que a língua do país acolhedor seja a mesma do país natal

            Quem exprime esses obstáculos, que ainda no caso em que seja a mesma língua, devem ser transpostos, é, também, Humberto Costantini que no seu poema “Rosedal” se queixa de não entender quase nada do que dizem os jornais mexicanos.

            Se o exílio do hispano-falante é passado na Espanha, as relações muitas vezes, se regem pela mentalidade, ainda vigente, do colonizador versus colonizado e expressa o binômio metrópole /colônia. Nela, somente é aceitável para os espanhóis a língua falada na Espanha. Todas as variantes próprias de cada país do Continente se afastam de seu padrão e, portanto, são inaceitáveis. Mas, sem dúvida, a dificuldade maior será a  separação do escritor de seus leitores, quando o exílio acontece em paises cuja língua é diferente da sua língua materna e na qual ele se expressa.
            A esses desesperos advém outros; o diluir-se, na passagem dos anos, a imagem do país natal, o exílio duplo ou repetidos exílios, o viver entre um passado destruído e um futuro incerto, o dividir-se entre o desejo de retorno e o medo da volta para tanta coisa que não existe mais.         Emoções que fluem e são testemunhas da tragédia vivida por tantos escritores do Continente. Debruçados sobre esses testemunhos, Carlos Droguett, o romancista chileno exilado na Suíça, reflete e se surpreende. Surpreende-se que no teatro, na música, nas narrativas e nos poemas  que expressam os pensamentos, os suspiros e os sofrimentos dos intelectuais chilenos, paire um silêncio sobre o outro exílio. Aqueles que nenhuma das vozes que se levantaram considerou: O exílio dos que não saíram, não souberam ou não puderam sair do país. O exílio dos que sucessivamente, enfrentaram a delação, a prisão, a tortura, o desaparecimento, o assassinato e o absorveram e deixaram um testemunho escrito ou oral de sua passagem pela terra, de sua vertiginosa agonia na cela  no leito da tortura que também  eram a sua pátria

domingo, 22 de dezembro de 1991

Raízes existem


            Viveu entre 1899 e 1957 e dois anos depois de sua morte, o livro que nem chegou a ver publicado, Tierra y tiempo, recebeu o Prêmio Nacional de Literatura.

            Juan José Morosoli nasceu no interior do Uruguai, na cidade de Minas e lá, dono de um armazém, passou a vida. No livro de matrículas da Escola onde foi alfabetizado, consta que no segundo ano, abandonou os estudos para começar a trabalhar. Com vinte e quatro anos, já instalado como comerciante, se inicia no Jornalismo. Colabora em diferentes publicações, suas peças começam a ser apresentadas e, cinco anos depois, seus poemas e pequeno contos, por sua vez, começam a aparecer em livro. Neste ano de 1991, foi publicado em Porto Alegre (Mercado Aberto, Metrópole, Instituto Estadual do Livro), A longa viagem de prazer, uma coletânea de nove breves relatos que Sérgio Faraco selecionou e traduziu para o português.

            São histórias sobre seres anônimos, humildes, cujo reduzido mundo se situa à margem das transformações hodiernas e que se deixam viver imunes a quaisquer conflitos. São poucos complicados e pensam, falam e atuam de acordo com suas razões primitivas, com sua moral espontânea, mas não por isso menos digna, nem menos rígida, diz deles o crítico Mario Benedetti.  Vidas que deslizam na paisagem interiorana sem deixar marcas e que Juan José Morosoli imobiliza na palavra. No ensaio “Algunas ideas sobre la narración como arte y sobre lo que ella puede tener como documento histórico” que Heber  Raviolo cita no Prólogo da edição brasileira, Juan José Morosoli fala da temática e da gênese de seus contos: E então continuo olhando, me detendo, contando coisas que os tempos mudam, vidas que um dia vão embora pelo caminho de todos, vidas que ficam em mim para me ajudar a sentir a própria vida como a companhia de uma árvore ou de um cavalo ou de uma nuvem.

            Expressão de uma simplicidade tão autêntica e comovente quanto os tipos que descreve, quase sempre extremamente sós, mas receptivos ao gesto, à presença, à amizade. Assim, no relato “Dois velhos”, um  aposentado sente pena da solidão do outro e o convida para morar na sua casa. Assim, em “O viúvo”, a mulher aceita se casar com um homem que perdera a mulher  e tomar conta de seus filhos pequenos porque, ficou, também, com pena. E, assim, Umpierrez que vivia sozinho porque acreditava  desse jeito ser feliz, soube aceitar  a companhia de um burro de olhar agradecido e da mulher que se ofereceu para lhe preparar a comida.

            São tipos que pouco pedem e outros, que se contentam com muito pouco. No relato que dá nome ao livro, Tertuliano ao ganhar, numa rifa, um velho caminhão, pretende fazer uma longa viagem, de puro prazer, para conhecer o mundo e nada mais. Parte com seu amigo Aniceto, em direção do leste para ver o sol nascer. Viajam devagar e, no segundo dia, quando já estavam chegando, perto da fronteira com o Brasil, são detidos pela polícia e devem explicar para onde vão e o que levam no caminhão. A resposta de que nada levam e que apenas estão indo ver o sol nascer, não satisfez e são  levados para a delegacia. Esperaram pelo delegado e só depois de serem interrogados, voltam a estar em liberdade. Consideraram, então, que esperar mais um dia e uma noite, num lugar onde tinham sido maltratados, penas para ver o sol nascer, não valia a pena. E voltam. Já estavam em casa. Acabavam de esquentar a água para o mate. – Hermano – disse Aniceto -  fizemos uma linda viagem, mas vimos pouca coisa, não achas? – Não. As viagens começam depois que a gente chega. Isso eu te digo. Uma vez que fui  a Montevidéu, só na volta, quando comecei a contar tudo pros outros é que me dei conta que aquilo que eu tinha visto era uma coisa maravilhosa.

            Além da perfeição estrutural e estilística de muitos de seus textos, é nesse enraizar-se do autor e de seus personagens que se encontra uma das grandes qualidades dos textos de Juan José Morosoli. Uma outra e não menor, está em não temer as dificuldades de contar coisas simples, desse quase nada acontecer que povoa seu relato.

            É do homem do Continente e de suas andanças que ele fala. Simples. Ingênuo. Tocante. Um homem que muito pouco tem a ver com o brilho dos personagens de uma distante ficção forânea  e alienante que, muitas vezes, encabeça a lista dos livros mais vendidos no Brasil.

            Que haja no país quem perceba a beleza do texto de Juan José Morosoli e se proponha estudá-lo e traduzi-lo é algo extremamente auspicioso na medida em que permite o desafio de editar um autor que não chega precedido das tradicionais loas que ensejam as grandes tiragens. E que irá, sem dúvida, oferecer a muitos a tão necessária reelaboração estética e ideológica de que a elite dos países latino-americanos  é, por vezes, tão carente.




           

domingo, 15 de dezembro de 1991

A lei dos homens


             Aos cinqüenta e cinco anos, tornou-se conhecido nacionalmente ao publicar, pela Civilização Brasileira, A solidão segundo Solano Lopes. Agora, três anos depois de sua morte, a Mercado Aberto de Porto Alegre, lança Para morrer de amor. Um romance que os editores apresentam como carregado de um erotismo tão intenso quanto delicado e poético, um sopro de vida no panorama do romance brasileiro dos últimos anos [...].


            A partir de um egocêntrico mundo feminino que descobre no amor adúltero as suas fibras mais profundas, Carlos Oliveira Gomes, advogado e poeta, esboça um romance de tese. Sua personagem bela, rica, educada nos mais exclusivos colégios, freqüentadora dos mais fechados grupos sociais é nele a vítima. Por se ter descoberto mulher tardiamente, por se considerar incapaz de sobreviver despojada de seu cotidiano conforto. Vive, cuidando muito de si mesma,  a viver na beleza tropical do Rio de Janeiro, usufruindo do que a cidade pode oferecer aos ricos e morre a morte que pressentia lhe estar sendo destinada.

            Para morrer de amor é o relato desse despertar feminino e do preço que deve, por esse despertar, ser pago. É construído em dois movimentos narrativos: a voz feminina que expressa, sem pudores a descoberta de seu corpo ( um universo fechado no território de anseios e sensações); as anotações do narrador com vistas à elaboração de um livro ( reprodução dos autos de um crime passional). Um narrar paralelo em que o segundo movimento antecipa os fatos ao se inserir no primeiro. Intercalam-se, então, um lirismo extremamente erótico que idealiza os corpos e o ato amoroso e uma objetividade rígida, traduzida na linguagem jurídica do processo que se segue ao crime. O poeta e o advogado que se encontram para falar do ser feminino, violentado e destruído por quem alega ser seu dono.

            Na ficção, Para morrer de amor, a mulher  paga  e com a vida ter ousado outra entrega. O marido, o que decide, com cinco tiros, de seu destino, continua livre e rico, consolado por uma jovem e bela mulher.

            Numa de suas anotações, o narrador já observara: o chamado crime passional ainda desfruta de sólidas simpatias  na triste e atrasada América do Sul.

domingo, 8 de dezembro de 1991

Leitura do Brasil II

          O utópico todos  os homens são iguais perante a lei, perdeu, de certa forma, o sentido  quando na Revolução dos Bichos de George Orwell ficou evidente que a essa verdade  foi superposta uma outra: a de que sempre há os que são mais iguais do que os outros. Para esses, o Brasil é um paraíso.

      Obnubilados pelo tradicional  costume  de exclamar, quando sentem  em perigo alguma de suas pretensões ( mesmo as mais chãs como querer estacionar o carro em lugar proibido), sabe com quem está falando?, alguns brasileiros se auto-situam e disso estão, perfeitamente, convictos, como mais iguais do que os outros.

           Na verdade, eles se constituem uma casta. Isenta,  em alguns lugares em que as circunstâncias não o permitiram, do uso dessa expressão ridícula, trata-se, no entanto,  de uma casta que existe em todo e qualquer lugar do mundo. Tão universal quanto aquela que congrega os menos iguais do que os outros.

           No Brasil, entre “os mais iguais”e “os menos iguais” medeiam verdadeiros abismos que a cegueira herdada pela impermeabilidade das classes ou imposta pelos interesses em alienar uns e outros, impediu, por muito tempo, de perceber.
 
            No caso das crianças, “as mais iguais que as outras”, são as que possuem os bens necessários para uma vida correta e os privilégios que aponta Gontardo Galligaris no seu livro Hello Brasil! (São Paulo, Escuta, 1991) recém lançado no Brasil: comer o que lhe agrada, receber amigos,  poder passear e comprar à vontade.“As menos iguais”, aquelas milhares – e hoje, surgem vozes para dizer de sua penúria – que, no Brasil, já nasceram condenadas a viver no inferno das carências ou ao desaparecimento precoce..

           Situações extremas que permitem ao autor de Hello Brasil! , um psicanalista italiano radicado no Brasil, em 1989,  ver os felizardos que tudo recebem, como  crianças que  reinam  num país em que milhares de outras perambulam, abandonadas, pelas ruas,  como o registra a imprensa nacional e internacional. E o levam a elaborar uma explicação psicanalítica para o Brasil na qual se insere, também, esse fenômeno que é o país possuir uma elite que tudo concede  aos seus, enquanto se exime de qualquer responsabilidade em relação aos que são privados do mais elementar necessário.

           Com certeza, somente os especialistas da área poderão julgar se as palavras  de Gontardo Galligaris, como psicanalista, são pertinentes, se colocam entre as que são passíveis de discussão ou entre as que podem ser consideradas irrefutáveis.

         Porém, o ter tido olhos na “sua viagem ao Brasil”  para esses antagonismos sociais que no país se defrontam e ter, com seus olhos de europeu e com simplicidade,  se  espantado, faz dele um viajante excepcional.

          E suas notas de viagem – “Notas  de um psicanalista europeu  viajando no Brasil” é o sub-título do livro -  se constituem excelentes fios condutores para perceber, entre constatações e contestações, um Brasil, entre  os tantos que existem, que pode, então, ser delineado com novas cores ou com múltiplas nuanças.

domingo, 1 de dezembro de 1991

Leitura do Brasil I

            Entre as múltiplas migrações que, nos dias de hoje, acontecem no mundo em tão grande escala e em tão diferentes direções, uma tornou-se verdadeiramente excepcional:  a de Gontardo Galligaris, italiano, psicanalista em Paris desde 1974 que, em 1989, se instalou no Brasil.

            Para qualquer cidadão do Terceiro Mundo, mais ou menos informado, é plenamente aceitável e, até aconselhável, essa prática de atravessar fronteiras em busca de melhores condições de vida. Que um cidadão do Primeiro Mundo, porém, sem estar pressionado por razões econômicas ou ideológicas ou por um governo ditatorial, simplesmente opte por abandonar  o seu espaço civilizado e sedutor para se estabelecer no Continente é algo que se torna curioso e incompreensível para muitos.

            Diante dessa curiosidade e incompreensão que a sua rota inusual, contrária àquela escolhida pelos que emigram, provoca, esse europeu, cujas raízes piemontesas remontam ao século em que o Brasil foi descoberto, passa, por sua vez, a ser dominado por uma interrogação.  Depois de escutar, muitas vezes, e na boca sem meias palavras dos brasileiros das mais diversas categorias sociais, a frase “este país não presta”,  Gontardo Galligaris procurou respostas e empreendeu outro inusual percurso: o de entender o porquê dessa frase  que lhe provocou, repetidas  vezes, verdadeiro espanto.
 
            Então, Hello Brasil! (São Paulo, Escuta, 1991) que ele define como um escrito de amor:  ao mesmo tempo uma declaração, uma elegia e, naturalmente, um queixa e que resultou, segundo palavras da Editora, num brilhante ensaio que produz, no leitor, uma intensa e prolongada atividade de pensamento.

            Evidentemente, uma permanência de dois anos no país, mesmo que originada de uma paixão, como o autor o confessa, não lhe permite discernir certos detalhes, determinadas nuanças e reais significados do comportamento nacional. Mas, na medida em que os próprios brasileiros não se conhecem e, em muitos casos, pouco de comum têm entre si, dificilmente, uma aproximação poderá resultar satisfatória. Porque as dimensões do país e a conseqüente diversidade de seu território, sua população de mestiçagem diversa e, principalmente, a muralha de preconceitos que separa suas classes sociais, fazem dele um mundo desconhecido e inexplorado. E, sobretudo, porque, salvo as sempre honrosas exceções, grande parte de sua elite somente produz (quando o faz), inspirando-se nos considerados polos irradiadores de conhecimento ou, copiando o que esses pólos produzem enquanto ignoram, conscienciosamente, o que se passa a seu redor.

            Então, é deveras importante o que escreve Gontardo Galligaris. Por ser oriundo de respeitáveis países do Primeiro Mundo e ter chegado ao Brasil com importantes trabalhos publicados, suas palavras já vem precedidas daquela autoridade que as elites do Continente tem por hábito aceitar. Mormente porque, ainda não contaminado por leituras tradicionais – que, é evidente, não devem deixar de serem feitas – ousa observar o país a partir de seu acervo de psicanalista lacaniano e do acervo que as aventuras do dia a dia num país do Continente lhe possibilita adquirir.

domingo, 24 de novembro de 1991

Cartas para Alejandra


             Doze são as cartas para Alejandra. Algumas, manuscritas, talvez não tenham lhe chegado às mãos. Mas, reunidas em livro e publicadas pela Arca de Montevidéu, em 1990, sob o título Leyendas del abuelo de la tarde, a ela foram dedicadas. E, cada carta, na verdade, é uma lenda. A primeira, conta a chegada de um ginete vestido com uma túnica azul muito clara, montado num ca valo branco: um avô de barbas abundantes e olhos azuis que  olham para  o vale de verdes sedosos antes de dizer: Sou o encarregado de contar histórias. Por sua voz se abre um maravilhoso mundo de fantasia, pleno  de ternuras e de cores. Assim, a origem do cavalo marinho e a origem do alaranjado no mundo onde, por falta dessa cor, as laranjas, ainda que maduras, eram verdes e verde,  como o capim, o  suco dela extraído. Assim, a chegada dos ruídos no mundo de silêncio que era, então, a Terra e da fumaça que na Terra tampouco existia. Presenças que chegam de outros planetas – vem de Urano, Plutão, Netuno, Marte, Vênus e  Mercúrio – sempre em  missão de alegria. Chegam os barquinhos de papel e o sereno da noite e da manhã. E os caracóis para povoar o mar de ruídos: desde então, nos mares tagarelam as ondas,  murmuram as areia, dançam as algas,  assobiam  os peixes coloridos, cantam os caracóis de Netuno, trazendo as primeiras vozes para todas as coisas.


            São presenças regidas pela harmonia de um verso não contaminado pela maldade em que os seres – peixes de muitas cores, sons, gotas de água -  atravessam os céus e pousam, suavemente, na superfície da Terra quando, nela,  as cidades não haviam sido criadas, só pequenas aldeias com casinhas de telhado vermelho e um campanário sempre à beira de lagos serenos e ela ainda era um planeta receptivo para o bem.
            Contadas pelo velho patriarca, o avô do entardecer,  as lendas/cartas se nutrem de um poético que é encontrado nas águas, nos minérios, nos vegetais.  Como já o fizera Serafim J. García em Piquín y Chispita,   um poético que ignora as atuais e excêntricas e violentas aventuras que o Primeiro Mundo se compraz em exportar para os países do Continente e procura na beleza da expressão, onde sobressai a força descritiva dos adjetivos,  lembrar o belo mundo das coisas simples.  E os heróis, nem estranhos monstros, nem impressionantes seres armados para defender o bem ou impor o mal e portadores de verdades importadas, são em Leyendas del abuelo de la tarde, uma gota  d’água, uma pequena pedra colorida, um pássaro, uma florzinha  sem importância. Como se Maurício Rosencof, seu autor, resistisse à inspiração destruidora dos modelos forâneos e, junto com  Elbio Ferrario, que lhe ilustra os textos com desenhos de traços simples e cores vibrantes – cada um a seu modo, um valente David – pudesse conter, com as armas ingênuas da singeleza, a avalanche de heróis e de super heróis  que de outras plagas chegam ao Continente para converter-lhe as crianças

domingo, 17 de novembro de 1991

Cartas para Nicolás


          Hoje ele trabalha no campo e escreve um romance. Já foi professor de escola rural e já escreveu em vários jornais de seu país e  na revista alemã Humboltd. Entre 1974 e 1975 viveu a mil e quinhentos quilômetros ao sul de Buenos Aires, em General Roca. Datam de então, as cartas para Nicolás, seu primeiro amigo nesse extremo sul do Continente onde chegou na época da colheita das maçãs. No dia em que o menino fez três anos, Ramón Igarzábal, o uruguaio recém chegado, deu-lhe de presente doze cartas que foram a origem de um livro publicado neste ano pela Banda Oriental de Montevidéu.

            Um pequeno livro formado por vinte  quatro cartas-poemas de um dizer simples, cálido e limpo, como muito bem o diz José Maria Obaldía ao lhe fazer o prólogo e que se completa nas fotos que o acompanham. E como que encerrados estivessem nessas páginas aquele  que fala e aquele a quem se dirigem as palavras: crianças marginalizadas pela pobreza que se deixam retratar por Carlos Contrera no riso, nas brincadeiras ou no simples ato de ficar quieto, olhando a vida.

            Então, palavras e imagens em Cartas a Nicolas ora se completam, ora se distanciam, unidas no mesmo amor pela criança. Expressões que se alimentam das nuanças luminosas, sugeridas por palavras que falam de sonhos ou daquele tom sombrio do cotidiano pobre, fixado pela imagem fotográfica.

            Ramón Igarzábal fala de um mundo passado que foi o seu, preso à terra, onde o trigo ondula sob um céu eternamente azul, preso ao pátio de sua casa povoado de laranjeiras e pardais e às lembranças e aos sonhos infantis.

            Como adulto, ao refazê-los, lhes confere uma luminosidade de azuis e dourados, uma ternura pelos deserdados e uma crença em algo de feérico que, permanentemente, entrelaçado aos mais puros elementos panteísta -  a água, a luz, a terra, o vento – não está longe de Deus. Uma crença que refúgio ou esperança não se ilude porque sabe os humanos capazes de tirar um filhote de pássaro  do ninho para, mais tarde, engaiolado, ouvi-lo cantar; ou lançar – e quais os motivos que o justificariam ? – a destruição em Hiroshima.

            Sonhar e inventar sem se mentir, permite – sem que isto possa dar impressão de incongruência – que os textos de Ramón Igarzábal convivam harmoniosamente com as fotos de Carlos Contrera. Elas focalizam crianças cujo sorriso não é suficiente para apagar as evidências de uma pobreza que irá lhes fechar muitas portas de acesso aos requisitos mínimos para querer ou exigir a vida ( e alimentação, e saúde, e educação e lazer) que é direito de todos.

            Cartas a Nicolas é um livro de sonhos e de realidades  entrelaçados num diálogo que, sem ingenuidade, é expressão do Continente.

domingo, 10 de novembro de 1991

A cor da ternura e outros tons


Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta? 

            Uma menina pobre, filha de pais pobres, estuda e se forma professora. No Brasil, isto pode acontecer. Ou porque nasceram com uma estrela na testa ou porque os fados lhe foram favoráveis, alguns brasileiros, com muito esforço e duras penas, conseguem se sobrepor à pobreza e cruzar as fronteiras que os separam da outra classe social . São histórias  de vida possíveis num país que, aparentemente permite a seus cidadãos a mobilidade social e concede oportunidade para ocupar um espaço que, pelo nascimento e condição social, pareceria não lhes ser destinado.

            A cor da ternura (FTD, 1991) seria uma história assim. Simples e linear, cabendo entre a primeira perda ( o nascimento do irmão rouba à protagonista o leite, o colo, os mimos) e a vitoriosa chegada ao diploma e à conseqüente entrada na campo de trabalho.


            Porém, mais do que isso é uma narrativa que desabrocha em perfeitos achados (trouvailles)  termo que os franceses usam para designar as expressões inusitadas que tornam inconfundível o estilo de um autor e que no livro de Geni Guimarães não se exaurem na beleza da forma. Seu grande valor está precisamente em, através desses achados, refazer significados de uma sociedade classista e reacionária que pretende se mascarar para  lhe ser possível manter a imagem democrática e liberal que, alguém, um dia, lhe inventou.

            Expressão lírica de ingênuo e profundo e sofrido amor filial, ela se mescla às emoções da descoberta de um mundo que, fora do regaço materno, está longe de possuir a cor da ternura e se decompõe  em tons nem sempre luminosos.

            Desde pequena, Geni jamais foi poupada desse contínuo confronto cotidiano que separa o negro do branco no Brasil: um desejo de perder a própria cor; uma anestesia diante dos tradicionais epítetos “boneca de piche”, “cabelo de Bom Bril”; um medo de se expressar em voz alta; uma crença de que a divindade só pode ser branca; um perceber o antagonismo entre a história que lhe é contada por uma preta velha e o discurso oficial.  E, assim, percorre o caminho que a conduz à consciência de si mesma e do lugar que deve ocupar na sociedade:  o lugar de vocês é dar duro na lavoura, diz o administrador da fazenda a seu pai quando sabe que Geni está estudando.

            Mas, menina ainda, ela  recusa a trilha aconselhado ou imposta. Venceu os obstáculos – e ser mulher, e ser pobre, e ser preta – para chegar onde pretendia. E foi além. A cor da ternura      recebeu o Prêmio Jabuti – autor revelação de 1990. Antes disso, já havia publicado dois livros de poemas ( Da flor e afetos e Terceiro filho) e um livro de contos (  Leite de peito). Foi além porque compreendeu quem era  e soube mensurar a força da sua palavra. Acreditando que o ato de escrever é o veículo de exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode com isso motivar mudanças  Geni Guimarães não escreve por escrever mas para conscientizar e alertar.

            Num Continente onde, por vontade dos homens, grassa a desarmonia, criar a beleza e dela fazer um arma é, certamente, um belo destino.

domingo, 3 de novembro de 1991

Para um mercado comum da cultura da América Latina


             Voltado, sempre, para os pólos irradiadores de cultura e, em geral, submisso as  suas diretrizes, o Brasil tem ignorado as expressões artísticas latino-americanas para consumir música, teatro, cinema, literatura, geralmente de qualidade medíocre e até execrável, mas que, por ser importada do Primeiro Mundo, ganha, por isso, uma chancela de  qualidade.      

            Algumas vezes, qualidades, efetivamente, existem. No entanto, por expressarem situações próprias de países  com outros graus de cultura e outros status econômico-social, diferindo da realidade de um país do Terceiro Mundo ( o Brasil, ameaçado de transmigrar para níveis mais baixos), só podem ser usufruídos por uma ínfima parcela da população. Por sua vez, a Lei 5692/71 ao reestruturar o ensino secundário, pretensamente possibilitou ao aluno optar por uma das cinco línguas estrangeiras modernas. Mas, de fato, levou  o ensino do idioma estrangeiro, no segundo grau, a um mono-lingüismo extremamente limitante e cerceador. Desde então, a visão de mundo do estudante brasileiro passou a ser perigosamente simplista porque espelhado numa única expressão cultural importada e, assim, colonizante.

            Além disso, seja pela má formação dos professores, seja pela própria situação  decadente da Escola Brasileira,  o aprendizado do idioma estrangeiro mostrou-se inóquo pois, dificilmente,  alguém que tenha aprendido a língua inglesa no seu currículo escolar é capaz de entender um breve texto de jornal ou uma simples instrução para o uso correto de um aparelho de som ou máquina fotográfica, redigido em inglês, para ficar, apenas, nesses dois exemplos.

            Todavia, dois anos de aprendizado de espanhol seriam perfeitamente suficientes para a aquisição das quatro habilidades lingüísticas (leitura, compreensão, redação e expressão oral) o que permitiria o acesso a toda sorte de informação e nas mais diversas áreas, tendo em vista o que é publicado nessa língua.


            É evidente que tornar possível o acesso a esse material bibliográfico exigiria que fossem postos em prática os acordos culturais que existem entre o Brasil e vários países de língua espanhola, isentando  o comercio  de livros das taxas de importação que torna proibitiva para a grande maioria, a compra de livros estrangeiros.

            Extremamente auspiciosa é, pois, a instalação no Brasil da Editora Fondo de Cultura Econômica. Fundada no México em 1934, com a intenção de publicar apenas livros de Economia, hoje, com um imenso e variado catálogo, seus títulos mais procurados são os de Filosofia, História, Economia e Literatura. Trata-se de uma presença que irá propiciar a oportunidade de comprar, no Brasil, obras em espanhol que até, então, sempre tam sido de difícil e cara  aquisição.

            Tendo, igualmente, por objetivo a tradução para o espanhol de obras de autores brasileiros, a Editora Fondo de Cultura Econômica irá possibilitar, também, a sua leitura em todo o Continente, mercê de sua presença em vários países da América Latina.

            Num momento em que os governos do Continente  mostram intenções de estreitar laços através de acordos econômicos, um Mercado Comum da Cultura da América Latina, cujas bases a Editora Fondo de Cultura Económica pretende implantar, significa importantíssimo  passo para a integração do Brasil no Continente Latino-americano.

domingo, 27 de outubro de 1991

No tempo da conquista IV


          Desta feita, eles não vieram para encontrar riquezas mas, para fundar uma cidade. Juan Núñez de Prado a imaginava com as ruas calçadas, vasos de flores nas varandas e a alegria das crianças correndo nas brincadeiras. Trouxeram grãos, móveis, roupas, instrumentos de trabalho,  animais domésticos para refazer no Continente o que haviam deixado na velha península. E bois, ovelhas, cavalos e galinhas e cães, acompanharam os ibéricos nessa caminhada que busca a posse e um destino de glórias.   E, aos animais, assim como aos homens, o duro trajeto que são obrigados a fazer para se assenhorear desse mundo desconhecido, também infringe sofrimentos: um belo cavalo negro que agora estava descolorido e devorado pelos tremores e pela febre que ondulava nos seus olhos tristes.  Como os homens, entre eles, há os que se aterrorizam diante do perigo, os que adoecem, os que se submetem ao jugo, os que se resignam: uma ovelha balava humilde, viam sua lã triste ressaltar na penumbra, o focinho palpitava assustado e faminto.

            Então suas vozes – e o uivar dos cães, e o mugir dos bois, e o cacarejar das galinhas – se misturam às vozes humanas, a seus murmúrios, interjeições e risos: bem no alto, o grasnar de bandos de pássaros que passavam entre o sol e o nevoeiro, tão alto que somente deixavam relâmpagos  curtos e luminosos de suas asas, suaves relâmpagos de cor verde ou azul ou amarela, uma asa sangrenta quase se agitava com urgência no alto, entre as folhas úmidas, uma cabecinha orgulhosa e azul se esgueirava e deslizava entre os ramos.

            Cores e sons sentidos pelos homens e animais  a avançar sob esse céu desconhecido  que escuro  ou iluminado, azul, imenso, cálido, puro ou avermelhado, adquire, sobretudo, as nuanças das almas humanas que a ele se expõem, e por isso, pode ser um céu implacável, um céu tenso, um céu sem Deus.

            Porque era no tempo da Conquista e o Continente, ingênuo,  se deixava despojar e se instalar nele um prolongado domínio que, durante ininterruptos 500 anos, jamais deixou de exigir a sua submissão (  e as árvores cortadas, e o ouro roubado, e a vida transformada em morte) e o sacrifício de seus habitantes, narcotizados pela fome, pela doença e pela ignorância. Principalmente, pela impossibilidade de descrer das verdades impostas, poucos foram os que, ao longo desse domínio, que se renova, sempre, com idênticos princípios, ousaram replicar.  Em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), os que o fizeram, foram mortos. Muitos deles que só obedeceram, também.

            Carlos Droguett, o romancista chileno, que ainda hoje, prolonga um sofrido  exílio na Europa, na criação  de seu texto ficcional, fez emergir, dos primeiros feitos ibéricos no Continente, o trabalho e o sofrimento dos homens. Ao fixar, também, o sacrifício dos animais e das árvores abatidas, ampliou a visão da conquista, aproximando-a dos dias que correm, em que a maioria das vozes oficiais querem fazer esquecer  que o grande feito semeou, além das instituições, do idioma, da religião, muita destruição e muito morte sem sentido.

domingo, 20 de outubro de 1991

No tempo da conquista III


Por isso há tanta fatalidade aqui, tanta maldade, não temos mulheres, deveríamos trazê-las para evitar tanto sangue e tantas traições...

          As mulheres ficaram de outro lado  do Atlântico. Um bando de aventureiros o atravessou, procurando as riquezas que no Velho Continente lhes eram negadas. Ou, apenas, um pedaço de terra onde se enraizar. Estavam de sobra nas terras áridas da Península Ibérica que já tinham dono. Embarcavam, então, para um destino desconhecido que deviam enfrentar, quase sempre, na mais absoluta solidão.
 
            Seres sem direito às lágrimas diz Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos seus romances que fazem parte da, assim chamada pela historiadora francesa Jacqueline Covo, Trilogia da Conquista. No trabalho que apresentou, em 1982, no Colóquio Internacional sobre a obra de Carlos Droguett, realizado em Poitiers na França, ela demonstrou como a obra ficcional do romancista  chileno não se afasta da crônica oficial que registrou  esses primeiros feitos dos ibéricos no Continente. Apenas, dessas figuras estratificadas pelo documento histórico, Carlos Droguett faz personagens profundamente humanos. Empenhados na Conquista do Continente,eles lutam, adoecem, fracassam, morrem, eventualmente vencem e passam a existir na História como heróis ou como vilãos, percorrendo um itinerário no qual a mulher esteve sempre alijada. Nossos olhos são para procurar o peito dos indígenas, não peitos de mulheres, diz um capitão para o outro sintetizando o alvo a que se propumham.

            E fazendo e desfazendo a cidade que a autoridade espanhola do Peru o incumbira de fundar, para defendê-la do rival ambicioso, que vindo do Chile pretendia dela tomar posse, Juan Núñez de Prado, mal vislumbra a mulher na figura de uma índia que se banha no rio  ou na outra que é morta pelos invasores ou na que executa uma tarefa imposta pelos brancos. E, são como relâmpagos as imagens femininas que lhe cruzam o cérebro: lembranças de um gesto, de um olhar, de uma flor, de um riso, de um perfume. Ofertas de alguém cujo nome já pouco importa – ou Amparo, ou Consuelo, ou Claudia, ou Marcela – para quem ele correu, um dia.Também são lampejos, essas ânsias que nele irrompem por uma pele feminina, sadia, cheia de vida e pela qual ele trocaria toda  essa conquista que tem a ilusão de possuir. Mulheres que riam e que chorem sob estas árvores e estas ramagens onde esparramaremos a cidade.

            E, figura de sonho são esses olhos negros que o espiam quando pensa a cidade de Barco assentada, terminada, habitada, esses suspiros, risos, murmúrios escondidos atrás dos postigos que ainda não existem.

            Mas, o rei e sua vontade estão muito distantes. E a conquista do Continente, que por ele se faz entre tantas e desmesuradas privações, não somente ignorou os sentimentos dos vencidos, como, também, os sentimentos  daqueles que a realizaram.

            Porque o importante era somente, a Cruz e a Espada.

 

domingo, 13 de outubro de 1991

No tempo da conquista II


           Foi Dom Juan Núñez de Prado encarregado por La Gasca, Pacificador do Peru, de fundar uma cidade no lugar que lhe aprouvesse. Parte com soldados espanhóis, internando-se no Continente para dele ir tomando posse em nome de Deus e do rei da Espanha.

            Terrivelmente só entre seus capitães e aventureiros e índios arrebanhados para servir de bestas de carga, as decisões que toma se prendem à obsessão que nele se instalou: assentar a cidade e dela fazer um burgo feliz. Essa visão comanda seus atos como uma verdade norteadora e nele se incorpora com uma profundidade que o irá impedir de aceitar qualquer  réplica. Mesclando seu próprio desejo – levarei a cidade todas as vezes que seja preciso preservá-la, matarei a todos quantos sejam necessários para mantê-la viva- com o que determina ser a vontade de Deus e do rei, Juan Núñez de Prado não recua nunca. Abandona doentes e feridos e manda matar ou mata para que se erga a cidade. Por vezes, hesita – tem medo das intrigas que o possam denegrir perante o rei da Espanha -  o que não o impede, no entanto, de agir. E, teme a Inquisição, cuja sombra, neste ano de 1550, já se estendia pelo Continente. Porque o ilimitado poder que lhe permitia destruir reputações, obras, famílias, vidas, no Velho Continente¸chegava, também, à América já em fins de 1543, na segunda viagem de Colombo, com um prelado dominicano. Como não houvesse, então, no Continente, uma população que o justificasse, nem os meios financeiros para manter um Tribunal do Santo Ofício, aos  bispos foram delegadas as atividades específicas da Inquisição na América. Assim o diz Boleslao Lewin na sua obra La inquisición en América (Buenos Aires, Paidós, 1967), como, também, o quanto essas atividades foram ininterruptas ao longo de dois séculos e como atingiram, profundamente, a população do Continente.

            Ordenada a transplantação do Tribunal da Inquisição para a América em 1569, ele somente foi suprimido nos primeiros anos do século XIX. Enquanto durou – e  os documentos o  atestam -  torturas foram  infligidas,  penas infamantes foram aplicadas e vigoraram os princípios racistas. O intrincado de suas regulamentações, o absoluto sigilo referente à maioria de suas atuações e o proveito que poderia advir de uma denúncia,  somente poderiam conduzir aqueles que desejassem cultivar o hábito de pensar a  um verdadeiro terror.  Desse terror, Juan Núñez de Prado não ficou isento ao imaginar que seu rival, pela posse da cidade, o poderia acusar ante o Santo Ofício, de mouro, de judeu, inimigo de Deus e do rei. Que, num futuro que poderia ser próximo, chegariam soldados do Chile e  delegados do Santo Ofício para  prendê-lo. No pesadelo que a febre lhe ocasiona, sente-se amarrado de braços e pernas na cama, ameaçado pela chegada dos inquisidores, trazendo as vestes amarelas e as velas verdes. No entanto, quando enuncia suas ordens de capitão, quando manda prender ou matar é com a voz da Espanha, do rei, do vice-rei e do Santo Ofício que Juan Núñez de Prado fala.

            Verdugo passível de passar a vítima, ele deve acreditar naquilo que lhe fazem crer : a Verdade é de Deus e do rei da Espanha como a Deus  e ao rei da Espanha pertencem as terras da Conquista. E sonha: então, talvez, já seja o ano de 1550 e estejamos magros e grisalhos e sejamos marqueses e duques e barões e tenhamos caixas de rapé sobre a mesa curva e pó de rapé na algibeira e rodam carruagens pelas pedras, carruagens cheias de riso de mulheres e não de soldados, de leques e luvas e mantilhas e não de arcabuzes, machadinhas, adagas, e cordas de enforcado .
            Carlos Droguett, romancista chileno que, tirando-o do esquecimento de uma Crónica de la Conquista o conduziu ao mundo ficcional no seu romance El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), não apenas sabia, de antemão, que Juan Núñez de Prado jamais veria a cidade no seu assento definitivo, porque antes já o tinham levado preso, como também que a cidade não seria feliz como o desejavam os seus sonhos. Sobre elas, como sobre o Continente inteiro, estariam pairando as fatídicas sombras do Tribunal da Inquisição. Exatamente nesse ano de 1570 ele irá ser instalado no Continente para, durante dois séculos, com vítimas, delatores, carrascos e inocentes, plasmar, também, a História da América hispânica

domingo, 6 de outubro de 1991

No tempo da conquista I

            Corria o ano de 1550, Juan Núñez de Prado havia fundado a cidade, adentrando-se na América a mando do Vice-Rei do Peru.  Barco, assim a chamara. Mas, ameaçado pelos espanhóis,  que do Chile, queriam expandir a conquista, desmanchou a cidade recém-começada, a amontoou em carretas e no dorso dos índios e se pôs em marcha para refazê-la mais adiante. Escolhido o novo assento, mal se erguiam suas paredes quando o medo o conduziu à nova mudança e à outra mais.Os espanhóis, seguindo o seu capitão, entre risos, exclamações, tosses, febres, alguma canção e, sobretudo ,esperança, iam tomando posse da terra.          Eles povoam as páginas do romance de Carlos Droguett com seu sofrimento e sua luta, heróis ou anti-heróis anônimos, cuja presença é registrada por um gesto, por um som emitido.

            Muito próximo, os índios. Entre os espanhóis sem nome que se aventuraram no Continente, em busca de um destino, sem saber que só trabalhavam para a glória do rei da Espanha, os índios são quase sombras. Completam essa trajetória que El hombre que trasladaba las ciudades quiz  tirar do esquecimento. Figurantes que ora estão aqui, ora estão ali. Ajoelhados no chão, dormindo enquanto  uivam os cães, correndo da chuva, chorando ou cantarolando no frio da noite, surgindo da raiz de uma árvore, rindo assustados ou maravilhados, despencando-se nos precipícios junto com a carreta em que viajavam. Pelos espanhóis, são tidos como objetos ou como  animais. Contarei as carretas, contarei os índios diz o capitão. E diz o outro: Olha, senhor, quanto gado e quanto índio!. E diz o narrador: as flores se inclinavam  cerimoniosamente na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, os índios cansados.  Dobram-se para carregar os pesados fardos da mudança – as roupas, os cestos de grãos, os garrafões de vinho –  as riquezas do outro,  daquele que chegou.

            Juan Núñez de Prado, obsecado pela cidade que fundou e que deseja ver gloriosa, temendo sempre perdê-la para os espanhóis do Chile, mal lhes percebe a presença e, num murmúrio, como se falasse para si mesmo, lamenta que estejam sob os fardos. No entanto, é com palavras claras e digna lucidez que mensura os malefícios que para os índios resultaram da chegada dos ibéricos no Continente: conosco trouxemos a traição, não apenas o trigo e algumas plantas exóticas e alguns animaizinhos mas também a falsidade, a fraqueza de caráter e de alma; o índio não possui o coração traidor, nós o trouxemos da Espanha e de Flandres, o metemos no México  no Peru, ensinamos para o índio não só a forma do cavalo e sua utilidade, o índio sabe agora que pode trair o amigo  e o irmão, que  se pode assassinar quem está dormindo  e doente, o que não pode se defender, que se pode deixar de cumprir a palavra... Não ignora que os espanhóis estão violando e matando e destruindo mas, da sua força de conquistadores assim como do trabalho dos índios conquistados não quer e não pode prescindir para levantar a cidade dos seus sonhos.

            Desse sonho, Juan Núñez de Prado será vítima. Ao seu redor, também vítimas, muitos dos soldados aventureiros que vieram para se enriquecer na América. No caminho deles, inocentes vítimas, mil índios massacrados.

            Sem maniqueísmos e sem se afastar da Crônica da Conquista, Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, Barcelona, 1973), faz desses homens a História.   Mais do que heróis é de homens que ele fala. Homens enredados na destruição e no sofrimento.

            Quando se erguerem as vozes laudatórias para comemorar a chegada dos ibéricos  no Continente, tampouco essa destruição e esse sofrimento que  marcou  os conquistadores  tanto quanto as destruições a que foram submetidos os conquistadas não  deverão ser esquecidos.

           

domingo, 29 de setembro de 1991

A descoberta da América 2


1979, na cidade de Caracas, se realizava o XIX Congresso Internacional de Literatura Iberoamericana, patrocinado pelo Instituto Iberaoamericano de Pittsburg. Entre os autores convidados, o mexicano Carlos Fuentes, conhecido autor de uma importante e vasta obra romanesca da qual muitos títulos já foram traduzidos para o português (Aura, A cabeça da Hidra, A morte de Artêmio Cruz). Menos conhecido é seu texto para teatro, cujo título, Todos los gatos son pardos, não sugere a imensa beleza das palavras, nem a concepção cênica inovadora que, ainda que se tenham passado vinte anos, não perderam a sua grande força expressiva.     O poder exigir suntuosos cenários, riquíssimos trajes, uma iluminação feérica e sugestivos efeitos sonoros a tornam fadada a um grandioso espetáculo para os sentidos sem que disso se excluam, em nenhum momento, significados extremamente profundos que se enraízam nos mitos do México.  Construída em nove cenas, a ação se passa no Palácio Real, nos acampamentos espanhóis, num templo indígena e é conduzida por Montezuma e Hernán Cortez. Uma corte faustuosa, uns soldados pobres e, entre esses dois mundos, Malintzin, nascida infeliz, tornada Malinche, a traidora que, batizada de Marina, serve ao vencedor.

            Um homem que tudo possuía e outro que nada tinha, assim simplificou a tragédia do encontro de Montezuma e Cortez, o americano Arthur Miller para Carlos Fuentes. Ao redor deles se elevam as vozes cheias de medo dos que não querem ser derrotados e os clamores raivosamente inseguros dos que chegaram e são dominados pela ambição. A voz do ritual e dos profetas. Das verdades e da hipocrisia. Principalmente, a voz da mulher, levando palavras de uns para outros e que entrega os seus para ter o direito de existir.

            Todos los gatos son pardos é uma síntese da Conquista do México. Mudam-se os tempos, mudam-se os lugares, mudam-se as figuras e, ainda, é sempre, a História do Continente. E, as palavras em epígrafe que repetem as conhecidas e citadas réplicas de Andréa (Desventurado o povo que não tem heróis.) e Galileu (Não. Desventurado o povo que precisa de heróis.) não foram citadas em vão.

            Nesse ano de 1979, em Caracas, pude me aproximar de Carlos Fuentes e perguntar-lhe, pois os livros sobre ele e sobre sua obra jamais o haviam mencionado, se Todos los gatos son pardos já tinha, algum dia, sido encenada. Respondeu que não. Doze anos se passaram e continuo ignorando se a peça, como espetáculo, continua inédita.

            Agora, que as comemorações dos 500 anos do descobrimento da América se voltam para os feitos ibéricos, indubitavelmente, mais do que nunca, seria o momento para que tal montagem acontecesse.

            Seria, talvez, o início do descobrimento de uma dramaturgia que tem estado ausente dos palcos brasileiros, mesmo daqueles situados em região de fronteiras com os países latino-americanos e cujos teatros como Álvaro de Carvalho de Florianópolis, São Pedro de Porto Alegre e Guairá de Curitiba, considerando-se o universo cultural do Brasil, tem cumprido sua missão.

            Mas é, sobretudo, pela sua beleza plástica e por essa dialética extremamente valiosa para o homem do Continente, dominantes na peça, que a montagem de Todos los gatos son pardos deve marcar o mundo teatral brasileiro.

            Num território tão vasto, onde os habitantes não somente se desconhecem como tendem a perceber a História pelo olhar dos outros, Todos los gatos son pardos é, certamente, um espelho que tem a ousadia de refletir muitas imagens. Mesmo aqueles que não as queiram ver, ficarão fascinados com a festa e luzes e cores e paixões que o trabalho de um diretor sábio e sutil, cuja visão de mundo não seja a do colonizado, saberá  fazer emergir do jogo cênicos. Incrustadas nesse jogo, as palavras de Todos los gatos são pardos também serão sementes.

 

domingo, 22 de setembro de 1991

A descoberta da América 1


             Ao longo do tempo, por diversas razões e, por vezes, induzidas razões, o Brasil tem se mantido alheio aos demais países do Continente, voltado, sempre, para a Europa e para o Hemisfério Norte, os considerados pólos irradiadores do conhecimento. Agora, quando a Espanha prepara os festejos que devem comemorar a chegada de Colombo à América, em 1492, o Brasildeles participa, submetendo-se, salvo as raras e valiosas exceções, à liderança ideológica ibérica. Assim, com exposições, palestras, cursos, conferências, mostras, filmes, concertos, espetáculos teatrais, na maioria dos casos, vai reafirmando essa História Oficial que, até agora, não tem sido o suficientemente questionada. Como resultado dessas atividades, esperar-se-ia uma notável reflexão crítica sobre os múltiplos aspectos relacionados com a chegada dos ibéricos na América e uma conseqüente mudança no trato do Brasil com os países do Continente, na medida que ficará demonstrada a similitude de destinos e problemas cuja solução poderá, muitas vezes, ser semelhante.


            A experiência, porém, tem demonstrado que tempo e constância são necessários para a obtenção  de determinados resultados. Passado o evento, é quase certo que as comemorações, ignoradas pela maioria, venham logo a ser esquecidas pelos que a vivenciaram. O Brasil, certamente, continuará voltado para a Europa e para o Hemisfério Norte e, também, certamente, continuará ignorando seus vizinhos latino-americanos.

            No entanto, as comemorações talvez possam se constituir um privilegiado momento para  que  o país, finalmente perceba que, antes de procurar imitar essa realidade do Primeiro Mundo que tanto admira, deve mirar-se como expressão do Continente. E, em uníssono com os países latino-americanos, fazer seu povo merecedor – com tudo o que isso possa comportar de direitos e deveres-  da cidadania que lhe tem sido negada.

 

            Mas esse Continente unido, sonho de muitos e que, tantas vezes, foram expressos, pressupõe conhecê-lo, compreendê-lo em diferentes níveis e múltiplas direções. Nesse sentido, nas mais diversas áreas, inúmeros programas poderão ser perfeitamente exeqüíveis. Para citar apenas um exemplo, o relacionado com o mundo das Letras: a tradução para o português de obras de autores latino-americanos contemporâneos e para o espanhol, de autores brasileiros contemporâneos.Seria oferecer aos brasileiros, a imperdível oportunidade de ler, hoje, o que há de melhor na produção literária do mundo ocidental e aos latino-americanos, por sua vez, a possibilidade de conhecer os autores brasileiros que, raramente,  são traduzidos para o espanhol e, sem duvida, pelas mesmas razões que induzem a América a se desconhecer mutuamente.

            Tal conhecimento (e compreensão de incomensurável valor para as partes envolvidas) teria um alcance mais amplo e mais duradouro na medida que, podendo usufruir de obras que até então tem sido vedadas, aos habitantes do Continente, eles poderão compará-las com aquelas que lhe são impostas pela política editorial que visa, apenas, o lucro e, então, se dar conta que o ônus oriundo de um atrelamento  cultural no mundo da editoração é muito grande  e não tem sido devidamente mensurado.

            Um descobrimento da América estaria se efetuando. As loas cantadas seriam, então, para aqueles que verdadeiramente delas sejam merecedores.