domingo, 6 de outubro de 1991

No tempo da conquista I

            Corria o ano de 1550, Juan Núñez de Prado havia fundado a cidade, adentrando-se na América a mando do Vice-Rei do Peru.  Barco, assim a chamara. Mas, ameaçado pelos espanhóis,  que do Chile, queriam expandir a conquista, desmanchou a cidade recém-começada, a amontoou em carretas e no dorso dos índios e se pôs em marcha para refazê-la mais adiante. Escolhido o novo assento, mal se erguiam suas paredes quando o medo o conduziu à nova mudança e à outra mais.Os espanhóis, seguindo o seu capitão, entre risos, exclamações, tosses, febres, alguma canção e, sobretudo ,esperança, iam tomando posse da terra.          Eles povoam as páginas do romance de Carlos Droguett com seu sofrimento e sua luta, heróis ou anti-heróis anônimos, cuja presença é registrada por um gesto, por um som emitido.

            Muito próximo, os índios. Entre os espanhóis sem nome que se aventuraram no Continente, em busca de um destino, sem saber que só trabalhavam para a glória do rei da Espanha, os índios são quase sombras. Completam essa trajetória que El hombre que trasladaba las ciudades quiz  tirar do esquecimento. Figurantes que ora estão aqui, ora estão ali. Ajoelhados no chão, dormindo enquanto  uivam os cães, correndo da chuva, chorando ou cantarolando no frio da noite, surgindo da raiz de uma árvore, rindo assustados ou maravilhados, despencando-se nos precipícios junto com a carreta em que viajavam. Pelos espanhóis, são tidos como objetos ou como  animais. Contarei as carretas, contarei os índios diz o capitão. E diz o outro: Olha, senhor, quanto gado e quanto índio!. E diz o narrador: as flores se inclinavam  cerimoniosamente na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, os índios cansados.  Dobram-se para carregar os pesados fardos da mudança – as roupas, os cestos de grãos, os garrafões de vinho –  as riquezas do outro,  daquele que chegou.

            Juan Núñez de Prado, obsecado pela cidade que fundou e que deseja ver gloriosa, temendo sempre perdê-la para os espanhóis do Chile, mal lhes percebe a presença e, num murmúrio, como se falasse para si mesmo, lamenta que estejam sob os fardos. No entanto, é com palavras claras e digna lucidez que mensura os malefícios que para os índios resultaram da chegada dos ibéricos no Continente: conosco trouxemos a traição, não apenas o trigo e algumas plantas exóticas e alguns animaizinhos mas também a falsidade, a fraqueza de caráter e de alma; o índio não possui o coração traidor, nós o trouxemos da Espanha e de Flandres, o metemos no México  no Peru, ensinamos para o índio não só a forma do cavalo e sua utilidade, o índio sabe agora que pode trair o amigo  e o irmão, que  se pode assassinar quem está dormindo  e doente, o que não pode se defender, que se pode deixar de cumprir a palavra... Não ignora que os espanhóis estão violando e matando e destruindo mas, da sua força de conquistadores assim como do trabalho dos índios conquistados não quer e não pode prescindir para levantar a cidade dos seus sonhos.

            Desse sonho, Juan Núñez de Prado será vítima. Ao seu redor, também vítimas, muitos dos soldados aventureiros que vieram para se enriquecer na América. No caminho deles, inocentes vítimas, mil índios massacrados.

            Sem maniqueísmos e sem se afastar da Crônica da Conquista, Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, Barcelona, 1973), faz desses homens a História.   Mais do que heróis é de homens que ele fala. Homens enredados na destruição e no sofrimento.

            Quando se erguerem as vozes laudatórias para comemorar a chegada dos ibéricos  no Continente, tampouco essa destruição e esse sofrimento que  marcou  os conquistadores  tanto quanto as destruições a que foram submetidos os conquistadas não  deverão ser esquecidos.

           

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