Terrivelmente
só entre seus capitães e aventureiros e índios arrebanhados para servir de
bestas de carga, as decisões que toma se prendem à obsessão que nele se
instalou: assentar a cidade e dela fazer um burgo feliz. Essa visão comanda
seus atos como uma verdade norteadora e nele se incorpora com uma profundidade
que o irá impedir de aceitar qualquer
réplica. Mesclando seu próprio desejo – levarei a cidade todas as vezes que seja preciso preservá-la, matarei a
todos quantos sejam necessários para
mantê-la viva- com o que determina ser a vontade de Deus e do rei, Juan
Núñez de Prado não recua nunca. Abandona doentes e feridos e manda matar ou
mata para que se erga a cidade. Por vezes, hesita – tem medo das intrigas que o
possam denegrir perante o rei da Espanha -
o que não o impede, no entanto, de agir. E, teme a Inquisição, cuja
sombra, neste ano de 1550, já se estendia pelo Continente. Porque o ilimitado
poder que lhe permitia destruir reputações, obras, famílias, vidas, no Velho
Continente¸chegava, também, à América já em fins de 1543, na segunda viagem de
Colombo, com um prelado dominicano. Como não houvesse, então, no Continente,
uma população que o justificasse, nem os meios financeiros para manter um
Tribunal do Santo Ofício, aos bispos
foram delegadas as atividades específicas da Inquisição na América. Assim o diz
Boleslao Lewin na sua obra La inquisición en América (Buenos
Aires, Paidós, 1967), como, também, o quanto essas atividades foram
ininterruptas ao longo de dois séculos e como atingiram, profundamente, a
população do Continente.
Ordenada
a transplantação do Tribunal da Inquisição para a América em 1569, ele somente
foi suprimido nos primeiros anos do século XIX. Enquanto durou – e os documentos o atestam -
torturas foram infligidas, penas infamantes foram aplicadas e vigoraram
os princípios racistas. O intrincado de suas regulamentações, o absoluto sigilo
referente à maioria de suas atuações e o proveito que poderia advir de uma
denúncia, somente poderiam conduzir
aqueles que desejassem cultivar o hábito de pensar a um verdadeiro terror. Desse terror, Juan Núñez de Prado não ficou
isento ao imaginar que seu rival, pela posse da cidade, o poderia acusar ante o
Santo Ofício, de mouro, de judeu, inimigo de Deus e do rei. Que, num futuro que
poderia ser próximo, chegariam soldados do Chile e delegados do Santo Ofício para prendê-lo. No pesadelo que a febre lhe
ocasiona, sente-se amarrado de braços e pernas na cama, ameaçado pela chegada
dos inquisidores, trazendo as vestes amarelas e as velas verdes. No entanto,
quando enuncia suas ordens de capitão, quando manda prender ou matar é com a
voz da Espanha, do rei, do vice-rei e do Santo Ofício que Juan Núñez de Prado
fala.

Verdugo
passível de passar a vítima, ele deve acreditar naquilo que lhe fazem crer : a
Verdade é de Deus e do rei da Espanha como a Deus e ao rei da Espanha pertencem as terras da
Conquista. E sonha: então, talvez, já
seja o ano de 1550 e estejamos magros e grisalhos e sejamos marqueses e duques
e barões e tenhamos caixas de rapé sobre a mesa curva e pó de rapé na algibeira
e rodam carruagens pelas pedras, carruagens cheias de riso de mulheres e não de
soldados, de leques e luvas e mantilhas e não de arcabuzes, machadinhas, adagas, e cordas de enforcado .
Carlos
Droguett, romancista chileno que, tirando-o do esquecimento de uma Crónica
de la Conquista o conduziu ao mundo ficcional no seu romance El
hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), não apenas
sabia, de antemão, que Juan Núñez de Prado jamais veria a cidade no seu assento
definitivo, porque antes já o tinham levado preso, como também que a cidade não
seria feliz como o desejavam os seus sonhos. Sobre elas, como sobre o
Continente inteiro, estariam pairando as fatídicas sombras do Tribunal da
Inquisição. Exatamente nesse ano de 1570 ele irá ser instalado no Continente
para, durante dois séculos, com vítimas, delatores, carrascos e inocentes,
plasmar, também, a História da América hispânica
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