domingo, 13 de outubro de 1991

No tempo da conquista II


           Foi Dom Juan Núñez de Prado encarregado por La Gasca, Pacificador do Peru, de fundar uma cidade no lugar que lhe aprouvesse. Parte com soldados espanhóis, internando-se no Continente para dele ir tomando posse em nome de Deus e do rei da Espanha.

            Terrivelmente só entre seus capitães e aventureiros e índios arrebanhados para servir de bestas de carga, as decisões que toma se prendem à obsessão que nele se instalou: assentar a cidade e dela fazer um burgo feliz. Essa visão comanda seus atos como uma verdade norteadora e nele se incorpora com uma profundidade que o irá impedir de aceitar qualquer  réplica. Mesclando seu próprio desejo – levarei a cidade todas as vezes que seja preciso preservá-la, matarei a todos quantos sejam necessários para mantê-la viva- com o que determina ser a vontade de Deus e do rei, Juan Núñez de Prado não recua nunca. Abandona doentes e feridos e manda matar ou mata para que se erga a cidade. Por vezes, hesita – tem medo das intrigas que o possam denegrir perante o rei da Espanha -  o que não o impede, no entanto, de agir. E, teme a Inquisição, cuja sombra, neste ano de 1550, já se estendia pelo Continente. Porque o ilimitado poder que lhe permitia destruir reputações, obras, famílias, vidas, no Velho Continente¸chegava, também, à América já em fins de 1543, na segunda viagem de Colombo, com um prelado dominicano. Como não houvesse, então, no Continente, uma população que o justificasse, nem os meios financeiros para manter um Tribunal do Santo Ofício, aos  bispos foram delegadas as atividades específicas da Inquisição na América. Assim o diz Boleslao Lewin na sua obra La inquisición en América (Buenos Aires, Paidós, 1967), como, também, o quanto essas atividades foram ininterruptas ao longo de dois séculos e como atingiram, profundamente, a população do Continente.

            Ordenada a transplantação do Tribunal da Inquisição para a América em 1569, ele somente foi suprimido nos primeiros anos do século XIX. Enquanto durou – e  os documentos o  atestam -  torturas foram  infligidas,  penas infamantes foram aplicadas e vigoraram os princípios racistas. O intrincado de suas regulamentações, o absoluto sigilo referente à maioria de suas atuações e o proveito que poderia advir de uma denúncia,  somente poderiam conduzir aqueles que desejassem cultivar o hábito de pensar a  um verdadeiro terror.  Desse terror, Juan Núñez de Prado não ficou isento ao imaginar que seu rival, pela posse da cidade, o poderia acusar ante o Santo Ofício, de mouro, de judeu, inimigo de Deus e do rei. Que, num futuro que poderia ser próximo, chegariam soldados do Chile e  delegados do Santo Ofício para  prendê-lo. No pesadelo que a febre lhe ocasiona, sente-se amarrado de braços e pernas na cama, ameaçado pela chegada dos inquisidores, trazendo as vestes amarelas e as velas verdes. No entanto, quando enuncia suas ordens de capitão, quando manda prender ou matar é com a voz da Espanha, do rei, do vice-rei e do Santo Ofício que Juan Núñez de Prado fala.

            Verdugo passível de passar a vítima, ele deve acreditar naquilo que lhe fazem crer : a Verdade é de Deus e do rei da Espanha como a Deus  e ao rei da Espanha pertencem as terras da Conquista. E sonha: então, talvez, já seja o ano de 1550 e estejamos magros e grisalhos e sejamos marqueses e duques e barões e tenhamos caixas de rapé sobre a mesa curva e pó de rapé na algibeira e rodam carruagens pelas pedras, carruagens cheias de riso de mulheres e não de soldados, de leques e luvas e mantilhas e não de arcabuzes, machadinhas, adagas, e cordas de enforcado .
            Carlos Droguett, romancista chileno que, tirando-o do esquecimento de uma Crónica de la Conquista o conduziu ao mundo ficcional no seu romance El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), não apenas sabia, de antemão, que Juan Núñez de Prado jamais veria a cidade no seu assento definitivo, porque antes já o tinham levado preso, como também que a cidade não seria feliz como o desejavam os seus sonhos. Sobre elas, como sobre o Continente inteiro, estariam pairando as fatídicas sombras do Tribunal da Inquisição. Exatamente nesse ano de 1570 ele irá ser instalado no Continente para, durante dois séculos, com vítimas, delatores, carrascos e inocentes, plasmar, também, a História da América hispânica

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