domingo, 27 de outubro de 1991

No tempo da conquista IV


          Desta feita, eles não vieram para encontrar riquezas mas, para fundar uma cidade. Juan Núñez de Prado a imaginava com as ruas calçadas, vasos de flores nas varandas e a alegria das crianças correndo nas brincadeiras. Trouxeram grãos, móveis, roupas, instrumentos de trabalho,  animais domésticos para refazer no Continente o que haviam deixado na velha península. E bois, ovelhas, cavalos e galinhas e cães, acompanharam os ibéricos nessa caminhada que busca a posse e um destino de glórias.   E, aos animais, assim como aos homens, o duro trajeto que são obrigados a fazer para se assenhorear desse mundo desconhecido, também infringe sofrimentos: um belo cavalo negro que agora estava descolorido e devorado pelos tremores e pela febre que ondulava nos seus olhos tristes.  Como os homens, entre eles, há os que se aterrorizam diante do perigo, os que adoecem, os que se submetem ao jugo, os que se resignam: uma ovelha balava humilde, viam sua lã triste ressaltar na penumbra, o focinho palpitava assustado e faminto.

            Então suas vozes – e o uivar dos cães, e o mugir dos bois, e o cacarejar das galinhas – se misturam às vozes humanas, a seus murmúrios, interjeições e risos: bem no alto, o grasnar de bandos de pássaros que passavam entre o sol e o nevoeiro, tão alto que somente deixavam relâmpagos  curtos e luminosos de suas asas, suaves relâmpagos de cor verde ou azul ou amarela, uma asa sangrenta quase se agitava com urgência no alto, entre as folhas úmidas, uma cabecinha orgulhosa e azul se esgueirava e deslizava entre os ramos.

            Cores e sons sentidos pelos homens e animais  a avançar sob esse céu desconhecido  que escuro  ou iluminado, azul, imenso, cálido, puro ou avermelhado, adquire, sobretudo, as nuanças das almas humanas que a ele se expõem, e por isso, pode ser um céu implacável, um céu tenso, um céu sem Deus.

            Porque era no tempo da Conquista e o Continente, ingênuo,  se deixava despojar e se instalar nele um prolongado domínio que, durante ininterruptos 500 anos, jamais deixou de exigir a sua submissão (  e as árvores cortadas, e o ouro roubado, e a vida transformada em morte) e o sacrifício de seus habitantes, narcotizados pela fome, pela doença e pela ignorância. Principalmente, pela impossibilidade de descrer das verdades impostas, poucos foram os que, ao longo desse domínio, que se renova, sempre, com idênticos princípios, ousaram replicar.  Em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), os que o fizeram, foram mortos. Muitos deles que só obedeceram, também.

            Carlos Droguett, o romancista chileno, que ainda hoje, prolonga um sofrido  exílio na Europa, na criação  de seu texto ficcional, fez emergir, dos primeiros feitos ibéricos no Continente, o trabalho e o sofrimento dos homens. Ao fixar, também, o sacrifício dos animais e das árvores abatidas, ampliou a visão da conquista, aproximando-a dos dias que correm, em que a maioria das vozes oficiais querem fazer esquecer  que o grande feito semeou, além das instituições, do idioma, da religião, muita destruição e muito morte sem sentido.

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