domingo, 10 de novembro de 1991

A cor da ternura e outros tons


Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta? 

            Uma menina pobre, filha de pais pobres, estuda e se forma professora. No Brasil, isto pode acontecer. Ou porque nasceram com uma estrela na testa ou porque os fados lhe foram favoráveis, alguns brasileiros, com muito esforço e duras penas, conseguem se sobrepor à pobreza e cruzar as fronteiras que os separam da outra classe social . São histórias  de vida possíveis num país que, aparentemente permite a seus cidadãos a mobilidade social e concede oportunidade para ocupar um espaço que, pelo nascimento e condição social, pareceria não lhes ser destinado.

            A cor da ternura (FTD, 1991) seria uma história assim. Simples e linear, cabendo entre a primeira perda ( o nascimento do irmão rouba à protagonista o leite, o colo, os mimos) e a vitoriosa chegada ao diploma e à conseqüente entrada na campo de trabalho.


            Porém, mais do que isso é uma narrativa que desabrocha em perfeitos achados (trouvailles)  termo que os franceses usam para designar as expressões inusitadas que tornam inconfundível o estilo de um autor e que no livro de Geni Guimarães não se exaurem na beleza da forma. Seu grande valor está precisamente em, através desses achados, refazer significados de uma sociedade classista e reacionária que pretende se mascarar para  lhe ser possível manter a imagem democrática e liberal que, alguém, um dia, lhe inventou.

            Expressão lírica de ingênuo e profundo e sofrido amor filial, ela se mescla às emoções da descoberta de um mundo que, fora do regaço materno, está longe de possuir a cor da ternura e se decompõe  em tons nem sempre luminosos.

            Desde pequena, Geni jamais foi poupada desse contínuo confronto cotidiano que separa o negro do branco no Brasil: um desejo de perder a própria cor; uma anestesia diante dos tradicionais epítetos “boneca de piche”, “cabelo de Bom Bril”; um medo de se expressar em voz alta; uma crença de que a divindade só pode ser branca; um perceber o antagonismo entre a história que lhe é contada por uma preta velha e o discurso oficial.  E, assim, percorre o caminho que a conduz à consciência de si mesma e do lugar que deve ocupar na sociedade:  o lugar de vocês é dar duro na lavoura, diz o administrador da fazenda a seu pai quando sabe que Geni está estudando.

            Mas, menina ainda, ela  recusa a trilha aconselhado ou imposta. Venceu os obstáculos – e ser mulher, e ser pobre, e ser preta – para chegar onde pretendia. E foi além. A cor da ternura      recebeu o Prêmio Jabuti – autor revelação de 1990. Antes disso, já havia publicado dois livros de poemas ( Da flor e afetos e Terceiro filho) e um livro de contos (  Leite de peito). Foi além porque compreendeu quem era  e soube mensurar a força da sua palavra. Acreditando que o ato de escrever é o veículo de exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode com isso motivar mudanças  Geni Guimarães não escreve por escrever mas para conscientizar e alertar.

            Num Continente onde, por vontade dos homens, grassa a desarmonia, criar a beleza e dela fazer um arma é, certamente, um belo destino.

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