Mãe, se chover água de Deus,
será que sai a minha tinta?
Uma
menina pobre, filha de pais pobres, estuda e se forma professora. No Brasil,
isto pode acontecer. Ou porque nasceram com uma estrela na testa ou porque os
fados lhe foram favoráveis, alguns brasileiros, com muito esforço e duras
penas, conseguem se sobrepor à pobreza e cruzar as fronteiras que os separam da
outra classe social . São histórias de
vida possíveis num país que, aparentemente permite a seus cidadãos a mobilidade
social e concede oportunidade para ocupar um espaço que, pelo nascimento e
condição social, pareceria não lhes ser destinado.
A
cor da ternura (FTD, 1991) seria uma história assim. Simples e linear,
cabendo entre a primeira perda ( o nascimento do irmão rouba à protagonista o
leite, o colo, os mimos) e a vitoriosa chegada ao diploma e à conseqüente
entrada na campo de trabalho.
Porém,
mais do que isso é uma narrativa que desabrocha em perfeitos achados
(trouvailles) termo que os franceses
usam para designar as expressões inusitadas que tornam inconfundível o estilo
de um autor e que no livro de Geni Guimarães não se exaurem na beleza da forma.
Seu grande valor está precisamente em, através desses achados, refazer
significados de uma sociedade classista e reacionária que pretende se mascarar
para lhe ser possível manter a imagem
democrática e liberal que, alguém, um dia, lhe inventou.
Expressão
lírica de ingênuo e profundo e sofrido amor filial, ela se mescla às emoções da
descoberta de um mundo que, fora do regaço materno, está longe de possuir a cor
da ternura e se decompõe em tons nem
sempre luminosos.
Desde
pequena, Geni jamais foi poupada desse contínuo confronto cotidiano que separa
o negro do branco no Brasil: um desejo de perder a própria cor; uma anestesia
diante dos tradicionais epítetos “boneca de piche”, “cabelo de Bom Bril”; um
medo de se expressar em voz alta; uma crença de que a divindade só pode ser
branca; um perceber o antagonismo entre a história que lhe é contada por uma
preta velha e o discurso oficial. E,
assim, percorre o caminho que a conduz à consciência de si mesma e do lugar que
deve ocupar na sociedade: o lugar de vocês é dar duro na lavoura, diz o administrador da fazenda
a seu pai quando sabe que Geni está estudando.
Mas,
menina ainda, ela recusa a trilha
aconselhado ou imposta. Venceu os obstáculos – e ser mulher, e ser pobre, e ser
preta – para chegar onde pretendia. E foi além. A cor da ternura recebeu o Prêmio Jabuti – autor revelação
de 1990. Antes disso, já havia publicado dois livros de poemas ( Da flor e
afetos e Terceiro filho) e um livro de contos ( Leite de peito). Foi além porque
compreendeu quem era e soube mensurar a
força da sua palavra. Acreditando que o
ato de escrever é o veículo de
exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode com isso motivar mudanças Geni Guimarães não
escreve por escrever mas para conscientizar
e alertar.
Num
Continente onde, por vontade dos homens, grassa a desarmonia, criar a beleza e
dela fazer um arma é, certamente, um belo destino.
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