domingo, 26 de dezembro de 2004

Bilhete natalino


             Foi em 27 de dezembro de 1969 que Mário Quinta enviou um “Bilhete” sob a rubrica  “Do caderno H”, publicado no Correio do Povo de Porto Alegre. Na verdade, um poema de muitos versos que ele inicia citando um conceito do poeta latino Valerius Flaccus, autor de Argonáutica,   relembrado diante da pureza intocada da folha em branco na qual deseja escrever uma mensagem de Natal. Mensagem que a página lhe diz ter sido enviada, já há muito, pelos Reis Magos. O poeta recorda da estrela que eles tinham e se pergunta, talvez atônito, onde ela está. Porque, no presente,  elas apenas  se mostram visíveis como as estrelas pirotécnicas / estrelas do mar / estrelas de generais... Hoje se esparramam no céu em efêmeros espetáculos, em encantados mistérios de águas  verdes ou azuis, em realidades cruéis nesse 1969 em que os subterrâneos da ditadura guardavam seus segredos. Talvez razões para que o poeta afirme ser melhor não falar nem escrever, apenas desenhar coisas sem nenhum conceito. Épocas existem em que os conceitos devem ser calados e não é dado saber qual deles o poeta teria desejado enunciar. Cala e, crítico ou melancólico, acrescenta que uma palavra qualquer macularia uma pobre página, ainda nuínha como a verdade. Assim, ainda que toscamente, quer desenhar a Virgem, o Menino, o burrico...  A menção à figura materna com seu filho e do animal, que o diminutivo suaviza, insere no poema, uma imagem terna. Lirismo cujo tom se acentua nos versos seguintes ao se fazer mais presente esse interlocutor a  quem o poeta se dirige. Já presente no início do poema, agora, o poeta o enlaça neste envio não de uma idéia, mas de uma visão: o desenho que deseja esboçar e do qual adviria – a felicidade? a alegria?, a paz? – certamente um bem que sabe ser propício a ele próprio e ao interlocutor: o bem que isso nos faria aos dois. Todavia, algo ainda a conquistar, aprisionado que está nesse tempo de verbo no condicional a remeter a um querer que não culmina no desejado mas, apenas do desejado se aproxima. 

Esse bilhete que se inicia remetendo a um poeta definido como arqui-sofista, que mais adiante questiona o paradeiro da estrela dos Reis Magos e, sobretudo, afirma o possível malefício de uma palavra contrapondo a ela o despojamento da verdade, é um dos poucos poemas de Mario Quintana em que a sua vontade se expressa no condicional.  Se vislumbra o motivo de seu desenho que o dia em que escreve o poema  Hoje ,/ Dia de Natal,   amplia, em sugestões, de certa forma, o dilui, ao enunciar que será feito toscamente o que, no entanto, pode significar pureza e ingenuidade. Se aponta para o bem que tal desenho fará, o verbo imagina, imperativo que dirige ao interlocutor, torna esse bem anunciado para si e para ele, uma hipótese.

Na verdade, na hesitação em querer e não querer dizer, na ingenuidade do desenho almejado, os versos desse Bilhete revelam, principalmente, um ingênuo desejo do poeta de compartilhar um sonho.

domingo, 19 de dezembro de 2004

Faíscas na chuva


            Seu nome, Jaime Espaillat. Seu país, Santo Domingo. Fora ministro do governo socialista de Juan Bosch, eleito em 1961 e deposto sete meses depois. Sérgio Faraco em Lágrimas na chuva : uma aventura na URSS (Porto Alegre, L&PM, 2002) o descreve, nesses idos de 1963, já com sessenta anos, com voz anasalada e olhar manso. Por um breve tempo, seus dias se cruzaram na clínica de reabilitação onde um e outro foi internado por algum ato de rebeldia que desagradou ao Partido. O texto do escritor gaúcho que relata a sua viagem a Moscou para freqüentar, como estudante, a convite do Partido Comunista da União Soviética, o Instituto Internacional de Ciências Sociais e os terríveis momentos vividos sob o efeito de medicamentos num regime de reclusão a que foi submetido como todos aqueles que ousaram criticas às assertivas superiores, foi publicado, primeiramente em A Notícia, de São Luiz Gonzaga de fevereiro a setembro de 2002. São lembranças, diz Sérgio Faraco, em nota quando da publicação do livro, que remetem ao gelo. E os anos que passaram, desde então, não minimizaram os desconfortos originados dos atritos constantes com os demais componentes do grupo de brasileiros, da insegurança gerada pelo golpe de 64 que iria se constituir, não somente um entrave para a volta ao Brasil, mas, principalmente, uma incógnita quanto ao tratamento que lhe seria reservado ao retornar; da grande tristeza causada pela morte acidental de um companheiro; das tediosas visitas às fazendas que deveriam se constituir  modelos de produtividade. Tampouco deixaram esquecer os itinerários de um país fascinante e um percurso amoroso que o transitório de sua situação, na Rússia, transformou em sofrimento. Sobretudo, resguardaram esses momentos ímpares em que, repentinas, emergem, como que do nada  a solidariedade e a gratidão a reafirmar as qualidades do homem.

            Sucumbindo ao cerco mesquinho e hipócrita armado pelo grupo brasileiro do qual fazia parte e pelos anfitriões, é levado a uma  verdadeira situação de horror cujo cenário foi o Hospital do Kremlin e cujo preço, o entorpecimento que o acometia, advindo dos comprimidos e injeções com que era “medicado”. No leito do hospital, sucederam-se os dias brancos, a perda da vontade de sair da cama, a falta de ânimo de sair do quarto. É quando recebe a visita de um dos pacientes que ele já vira passar pelo corredor. Propunha que fizessem a caminhada juntos. Ainda que não lhe tivesse dado resposta, Jaime Espaillat volta no dia seguinte e tanto insiste que termina por convencer. Não somente Sérgio Faraco se submete à ingente tarefa de se erguer do leito, de efetuar o esforço de sair do quarto e caminhar, como também aceita o conselho de não mais engolir os remédios que recebia a cada manhã, numa tigelinha. Assim, lhe foi  possível tornar-se, outra vez, um ser humano normal, capaz de perceber a beleza do bosque de bétulas por onde caminhavam e o afeto de um companheiro que até então lhe fora desconhecido.  
            Antes disso, quando nas férias foi à Armênia, cuja história sempre o atraíra, presenciou uma cena que o tocou profundamente. Viajava no ônibus e de súbito se dá conta de que uma menina de uns oito ou nove anos, que viajava sozinha com um embrulho, fora apanhada  sem passagem. Não levantava os olhos, nem falava para responder às ríspidas perguntas do cobrador. Percebendo que seria devolvida à estrada, Sérgio Faraco prontifica-se a pagar-lhe a passagem e a menina volta para o seu lugar com os olhos baixos. A viagem prossegue e o sol começa a se por e ele dormita. Até  que um  leve susto, como se alguém lhe tivesse tocado a face com um raminho, o faz abrir os olhos e se emocionar com a delicadeza do gesto agradecido da menina que, ao ser surpreendida, recua ruborizada.

            Assim, embora nessa experiência vivida na Rússia, imperassem “ressentimentos e malquerenças, incompreensões e vilanias, a solidariedade e a gratidão – inesperadas presenças – mostraram  quanto é possível o luminoso se inscrever na fosca melancolia das horas.

domingo, 12 de dezembro de 2004

De arames farpados



            Em 1956, Pablo Neruda publica Nuevas odas elementales e “Oda al alambre de púa” (“Ode ao arame farpado”) é o terceiro poema do livro. A estrofe que o inicia, No meu país, / arame, arame... é quase igual a seu último verso: No Chile, arame, arame.... Um círculo que se fecha, aprisionando um espaço bem definido, mas que, na verdade, não se diferencia de outros espaços do Continente: paragens desertas, sem homens, sem cavalos, apenas arames farpados e terras despovoadas: terras emudecidas, terras cegas, / terras sem coração, terras sem sulco. À essa aridez, o Poeta opõe a alegria da abundância que existe em outras terras do planeta, tornando assim mais questionável e cruel a presença agressiva do arame farpado nessa constatação de que nelas poderia existir o trigo, a hortaliça, o queijo, o arroz, a fruta e o pão enquanto, no Chile, só arame ao longo das amplas extensões de vazios. 

            Daniel Viglietti é uruguaio. Também em seu país a imensidão deserta dos campos se recortam, como soe acontecer com os latifúndios, com arames farpados: provas dos sonhos desfeitos de José Artigas, o prócer da Independência de seu país que já no século XIX acreditava pudesse a terra pertencer a todos. Seguindo-lhe o ideal, Daniel Viglietti, uma das figuras mais expressivas da música latino-americana compõe “A desalambrar”, uma canção profundamente ligada à realidade do Continente que, embora tenha sido composta na década de 60, continua expressando os anseios desses homens que o passar dos anos não libera de estarem sempre alijados de tudo o que lhes é devido.

            Em março deste ano, Daniel Viglietti se apresentou na Semana Nacional da Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, no Rio de Janeiro, convidado pela Direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Agora, no passado dia 21, cantou em Curitiba no primeiro Festival Latino-americano de Música Camponesa, organizado pelo Governo do Estado do Paraná e pelo MST. No seu repertório, as belíssimas composições “Gurisito”,  em que as palavras gurizinho, crianças, amanhecer, remetem a um futuro demarcado pela esperança da igualdade: “cada criança um pouco, todos tomarão do mesmo leite e do mesmo pão”;  “Soledad Barret”: minha vida inteira não alcança para acreditar que possam fechar a pureza de teu olhar,  um tributo à jovem paraguaia,  vítima da luta clandestina, assassinada no Recife, lembrada pela sua vida, querendo levar a justiça onde não existia, pela compreensão de que as lágrimas devem ser empunhadas para cantar, pela certeza de que a união levará à vitória. E  “A desalambrar”,  cujos sons do violão, lentos e melancólicos se aproximam do sentencioso que, segundo Félix Coluccio  (como também a alegria) define a milonga, ritmo popular escolhido por Daniel Viglietti como acompanhamento para as palavras que expressam o anseio coletivo de séculos. Elas emergem com a autoridade, dada pela razão, que esta terra é nossa a sugerir o ato de tirar os arames que a dividem entre poucos e assim  socializar-lhe a posse; e se dirige aos que a escutam, questionando o estabelecido: eu pergunto aos presentes / se começaram a pensar / que esta terra é nossa / e não do que possua mais. E o estribilho é um chamado à ação: a desalambrar, a desalambrar (a tirar os arames, a tirar os arames).

domingo, 5 de dezembro de 2004

Para constar


 Em “Las vidas del Poeta: Memórias y recurdos de Pablo Neruda”, publicadas em 1962, na revista O CRUZEIRO Internacional há um parágrafo que foi eliminado de Confieso que he vivido (1974). Aquele em que, ao relatar Pablo Neruda sobre esse tempo em que, perseguido pela polícia de seu país, teve que viver escondido no campo, na cidade, nos portos, em acampamentos, recebido por camponeses, advogados, engenheiros, médicos, mineiros, fala na alegria  que, se não fossem as circunstâncias, teria então, sentido. Uma alegria que somente é possível sentir, diz, quando existe uma identificação absoluta de um poeta com o seu povo: Estou consciente de ter alcançado está subterrânea distinção, título raro, louros que muitos desdenham mas que não conhecem. Mais tarde, irá dizer a Sara Vial, na entrevista realizada a 28 de março de 1965, que leu seus versos em lugares que teriam espantado os poetas do passado. Num galpão de tosa de ovelhas na Patagônia, por exemplo, onde os tosadores  interromperam sua tarefa para escutá-lo. E assim foi em Vega Central, o maior mercado popular de Santiago, no Sindicato dos Carregadores onde leu seus versos de España en el corazón para homens que vestiam apenas velhas camisetas manchadas ou tinham o torso nu, como que alheios ao frio do mês de julho e que se emocionaram até as lágrimas, como ele narra em Confieso que he vivido.  E, também, assim foi em Lota, durante o comício em que, ao ser anunciado o seu nome e o título do poema que iria ler, a multidão de mineiros, como um só gesto tirou o chapéu numa calada reverência, feita por dez mil mãos.

            Algo de similar ocorreu no passado dia 20, em Curitiba. Na Programação do “Primeiro Festiva Latino-americano de Música Camponesa”, organizado pelo MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e pelo Governo do Estado do Paraná, entre outros conferencistas, Eduardo Galeano. Uruguaio, autor de contos (Vagamundo), de um romance Prêmio Casa de las Américas 1975, (La canción de nosotros), de breves textos que narram a História da América latina de nossos dias e dele próprio (Dias y noches de amor y de guerra), de um ensaio que foi traduzido em mais de vinte idiomas (Las venas abiertas de América Latina e de Memórias del fuego, cujos três volumes, feitos de pequenos textos, é um dos mais belos livros de Histórias das Américas, é um dos poucos autores latino-americanos, cuja obra, na sua maior parte, traduzida para o português, é conhecida dos brasileiros. Um interesse não muito comum num país em que os leitores, em geral, tem a tendência de acreditar que apenas tem valor o que chega do Hemisfério Norte.

            Já em 1987, a Associação de Professores de Espanhol do Estado do Paraná, realizou de 28 de setembro a 2 de outubro, um Seminário sobre a sua obra. Analisados  Las venas abiertas de América Latina, La canción de nosotros, Memórias del fuego e a sua participação na revista Crisis, respectivamente por Carlos Roberto Antunes dos Santos, Marilena Weinhardt, Francisco de Morais Paz e Roberto Figurelli, professores da Universidade Federal do Paraná, os trabalhos foram publicados no volume II de Cuardernos Hispano-América (Curitiba). No dia em que devia falar Eduardo Galeano, a sala Scabi do Solar do Barão estava repleta para ouvir não apenas um escritor de talento, mas aquele que desafiara os regimes de exceção, chamando, como já ensinava La Fontaine, no século, as coisas pelo seu nome.

            Agora, dezessete anos passados, novamente em Curitiba e participando de uma programação oficial, ao ser apresentado ao público – seus leitores fiéis e os que o vem descobrindo ao longo desse tempo transcorrido e, principalmente, os que fazem parte do MST, a maioria dos presentes – Eduardo Galeano recebe uma ovação que irá se repetir, inúmeras vezes, ao longo da leitura de seus textos. Cada um deles, expressando a realidade do Continente que não consta das crônicas oficiais. Em  “Los nadies” (El libro de los abrazos), “os ninguéns” são esses compatriotas de cidadãos de qualquer país, cuja existência parece constar, apenas, nas estatísticas: nenhum direito possuem e, certamente, nenhum direito irão ter se continuarem na ignorância que lhes coube e lhes nega a consciência de saberem quem são e o que podem ser. Um texto claro e objetivo que, ao ser lido para aqueles cuja luta ainda se prende à conquista dos mais elementares direitos à cidadania  como ter direito à posse de um pedaço de terra, à saúde, à educação, à alimentação e para aqueles que, já não necessitando dessa luta a aceitam como válida e imprescindível, certamente não elude o seu sentido. E esse sentido foi entendido pelos que na sua condição de serem tratados como ninguém, estão conscientes ou se conscientizam de que podem passar à condição de serem efetivamente alguém.

E o entusiasmo dos aplausos enlaçou Eduardo Galeano, arauto de seu tempo, com aqueles que pelas palavras escutadas passaram a perceber muito mais sobre si mesmos.

 
 

domingo, 28 de novembro de 2004

De leis e emoções


            Atenea, publicação  semestral, editada pela Universidade de Concepción, foi fundada em 1924 e no seu número 489, homenageia  Pablo Neruda com trabalhos de Alain Sicard, da Universidade de Poitiers (França), que possui um dos mais respeitados centros de pesquisa latino-americana da Europa, de Hernán Loyola organizador das Obras Completas do Poeta, publicadas em Barcelona e dos professores e pesquisadores chilenos, Dario Oses, Enrique Robertson e Mario Rodriguez F. Trabalhos que analisam a temática da luz e da sombra, as duas poéticas que constituem a poesia nerudiana, sua articulação e inseparabilidade;  a noção da morte que o Poeta introduz nos seus versos como uma entidade que, deliberadamente, evita nomear; a imagem da amante invisível, a sua relação com os livros, a amizade com Picasso, as conexões possíveis entre Residencia en la tierra e o Canto General. A partir de textos precisos do Poeta, de fatos e documentos ainda não estudados, fazem parte desse mar de palavras, alçado neste ano, procurando aproximar-se da obra do Poeta com o rigor indagativo que a sua obra merece.



            Na sua  segunda parte, Atenea oferece testemunhos de amigos que o mostram em momentos originados de uma convivência do cotidiano e, ainda, reproduz a conversa do Poeta com a jornalista Sara Vial, em março de 1965, um pouco antes de ir à Inglaterra onde receberia o título de Doutor Honoris Causa na Universidade de Oxford. Entrevista publicada em La Nación, no dia 28, reproduzida no livro Neruda em Valparaíso, em 1983 e agora, outra vez, vinte anos passados. Nela,  Neruda fala sobre Valparaíso, cidade que o encanta a ponto de dizer que é a melhor obra de Deus o que, na verdade é pouco em relação às palavras que lhe dedica no seu livro de memórias. E sobre essa casa que ele comprou a meio construir e foi terminando com paciência e com tempo e que se tornou cenário para esses objetos de sonhos revisitados que lhe foram tão importantes possuir como o cavalo da selaria de Temuco. Menciona o novo livro que irá ser publicado nesse ano no Chile, Arte de pájaros e, indignado, a carta em que o Inspetor de Obras Municipais determina que mande podar as árvores de sua casa ou extirpá-las de vez para evitar que novas reclamações dos vizinhos sejam feitas e para cumprir com as leis de Construção e Urbanismo. O Poeta pergunta, perguntando-se, como responder a essa carta – permitindo que destruam  as suas árvores, sua casa, as rochas?  – e, esperançoso, admite que a municipalidade, ao não poder enfrentar o mar e exterminá-lo, pelo menos, terá que deixá-lo à margem de seus regulamentos.

            Se as árvores de suas casas continuaram crescendo, a revelia dos vizinhos implicantes e das leis municipais ou por essas leis destruídas, poucos são os que podem testemunhar. Mas, nas palavras que deixou escritas, elas se erguem  perenes na descrição do bosque chileno na primeira página de Confieso que he vivido  e nas odes à araucária e à acácia mimosa.

 “Oda a la araucária araucana” (in Nuevas odas elementales) é um longo louvor à árvore (dura, bela, torre do Chile, pavilhão do inverno, nave de aroma, coroa verde, pura mãe dos espaços, lâmpada do frio) e a seus frutos (farinha, pão silvestre / do indomável / Araucano, fruta, o pão derradeiro da pátria, pão de valentes, / alimento / escondido / na molhada aurora / da pátria). Porque ela presenciou as guerras que dizimaram os índios Araucanos (A cruz, / a espada ,/ a fome). Porque dela o Poeta deseja a resistência contra os males, a proteção para o seu sentir, para aqueles que ama, para os ombros dos valentes.

            Em “Oda al aromo” (in Tercer libro de las odas), seus versos dizem primeiro da emoção ao perceber uma montanha / de luz amarela, / uma torre florida e o perfume que se espalha: a acácia mimosa, construída de mel e de perfume e em que ele vê a catedral do pólen ,/ a profunda / cidade/das abelhas. E perde a voz diante da árvore cuja presença é feita da cor: amarela / como nenhuma coisa pode ser ,/ nem o canário, nem o ouro ,/ nem a pele do limão, nem a gesta e da essência que exala: explosão do perfume.  Então, ele a proclama colméia do mundo e assumindo uma voz coletiva, “nós”, expressa  o desejo de ser vespa ou besouro silvestre para se fundir na ramagem amarela até ser somente aroma.

 

 

           

domingo, 21 de novembro de 2004

Achados e perdidos


            É um olheiro atento de seu tempo que registra breves cenas da urbe: transeuntes que falam sozinhos, menina chorando com seu desconsolo, encontros cotidianos casuais que deixam de acontecer, adolescente na espera inquieta de alguém, trechos de diálogos mal e mal escutados entre um ruído e outro da cidade. Também, muitas vezes, os mutáveis contornos da cidade sob a chuva e o vento e a paisagem cujas transformações o passar do tempo vai instaurando.

            Porto Alegre se desenha no esboço das lembranças e nos traços lavrados pelo presente. Em “O arqueólogo do futuro”, Liberato Vieira da Cunha historia esses dois tempos de um mundo que existiu e se foi perdendo no atropelo das mudanças. E são elas que o privam de perceber a ronda das estações: no florescer do flamboyant, o vermelho indicando o verão; no cair das folhas da paineira, os galhos nus anunciam o outono; no rio, as águas crispadas dizem do inverno; nas flores do jacarandá, a chegada da primavera. E, também, lhe tiram um cenário feito da imensidão do céu, na qual se inscreviam os telhados, os morros, as enseadas do rio, os navios e as gasolinas. Sem que se desse conta, foi sendo sitiado pela barreira de cimento e aço e não mais a visão do rio, não mais a luz do norte. Veio-lhe, então, o medo de que, irreversivelmente, essa barreira se expandindo sempre, roubaria os  últimos territórios do céu e de verde, expulsando os derradeiros pássaros, banindo, por descartáveis, as flores e a brisa e a grama que certa manhã uma deusa pisou descalça. Também, outro melancólico presságio a vislumbrar um futuro mais remoto em que o arqueólogo, ao encontrar nesse desfiladeiro entre muralhas, cantigas de roda e cadeiras na calçada e acordes de serenata, tudo ignore por não atinar com a sua serventia.
 

            Nessa crônica, como nas demais que fazem parte de A Companhia da solidão (Porto Alegre, L&PM, 2000), o cronista gaúcho erige o lirismo das perdas. Perda de uma cidade em que muitas casas se esboroam para dar lugar ao moderno, aos modernosos caixotes de aço e vidro [...], em que a obediência aos preceitos alienígenas do bem viver prescreve a chegada do leiteiro, do verdureiro, do padeiro à porta da casa e não concede lugar para o afiador de faca a oferecer seus serviços com o apito de melodiosa escala de sons e, tampouco, ao vendedor de puxa-puxa que anuncia o produto com o toque de corneta.

            Mas, no destruir/construir do novo itinerário urbano, o cronista erige, igualmente, a lírica dos achados. Quando se depara com um motorista de táxi que, trabalhando quatorze horas por dia, decide que os loucos do trânsito não o irão contaminar;  quando é atendido por uma jovem funcionária dos correios que atende a todos da longa fila, minuciosa e sorridente; quando é tranquilizado pelo ascensorista que enfrenta a súbita falta de luz no elevador com um monólogo de conversador nato, bem humorado, fluente, a própria voz da tranquilidade. São anjos da guarda a postos em meio ao caos de uma capital sem alma, os define na crônica “Os anjos do caos”. Uma capital que, todavia, possui o oásis de ruas tranquilas e arborizadas que ainda resistem. Numa delas, ao estacionar o carro na frente de uma casa pequena, na sua despojada simplicidade de porta e janela , ele conta em “Travessia das idades” estar diante de um momento de ternura: a mãe, ensinando o filho a andar de triciclo, mostra como por os pés nos pedais, como segurar o guidom, como desviar os buracos da calçada e o cachorro da vizinha. Sucedem-se as idas e vindas entre a mãe e a esquina da rua até esse instante em que o menino travou, rindo do susto que tinha pregado num tico-tico distraído e disse: -Mãe, como é bom ser criança. Liberato Vieira da Cunha, segue o seu caminho pensando: que algum dia aquele menino vai crescer, vai morar em avenidas ruidosas e sem árvores, vai perder seu riso e o brilho do seu olhar, conhecerá a aflição e o medo, será um animal urbano cronometrado, feito eu, feito todos nós. E lhe deseja esse grande bem: o de poder reviver um momento feliz do passado e nele se aninhar quando a vida se mostrar adversa ou triste.

domingo, 14 de novembro de 2004

As queimadas

            Em 2001, a Academia de Trovas do Rio Grande do Norte promoveu um concurso cujo tema “Queimada” atraiu mais de duzentos trovadores de vários estados brasileiros. Além dos vinte e sete trovadores do Rio Grande do Norte, vinte e nove, principalmente de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul também foram selecionados. Suas trovas foram publicadas pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA)  e, em 2002, pelo Centro de Recursos Ambientais da Bahia.


            Submissas ao heptassílabo e às rimas alternadas ( entre as rimas ricas, também  as que não eludem a facilidade das palavras terminadas em ão) e ao tema, repetem, o que é inevitável, certos vocábulos (carvão, fogo, vida, cinzas, morte).

            Mas, nessa grande qualidade que é saber condensar em  quatro versos o que é desejado expressar, se mostram essas trovas, na sua simplicidade, de uma grande força poética e inigualável poder de comunicação . Porque, em seus pequenos versos, a síntese parece ser a medida exata para dizer o imprescindível sobre uma prática inegavelmente condenável no  que significa de destruição. Em muitas delas, a queimada se define como guerra, crime hediondo, angústia e morte, jogo insano, devastação, inclemente, criminosa, criminosa ação, criminosa violência macabra festa, devastação, praga desgraçada. Evidente, também, constar o efeito dessas ações: atroz e daninho,  vidas ceifadas, extinção da vida, cinza de uma floresta, terra ferida, terras devastadas, terra despovoada,  migração e morte de animais, erosão.   E o móvel dos atos predatórios -  a desonestidade, a ignorância, a ambição desmedida – que, certamente, poderiam ser neutralizados por sanções (ou por pesadas sanções).

            Para combater a queimada os trovadores têm, apenas, a palavra e a alçam com esperança. Pedem aos agricultores e a todos aqueles que se sintam concernidos, que nunca mais façam queimadas para não destruir a própria vida  na destruição da flora (planta florida, mata plantada , árvores tão bem formadas, matas sagradas) e da fauna cujo habitat desaparece nas cinzas após a macabra festa do fogo

            Um desequilíbrio inquestionável cujo testemunho se enlaça na emoção diante do que é presenciado: a juriti, desolada ,/ chora a falta de seu ninho..., um sabiá solitário / chora a morte da floresta...; e se enraíza no próprio sentimento: Cena triste em mim gravada, / quando a mamãe tico-tico / voltou, depois da queimada, / trazendo um verme no bico.

            Pedir, porém não parece ser suficiente. Alfredo de Castro, de Minas Gerais, então, exclama esse óbvio:  Sem uma luta acirrada, sem punição com firmeza /  não se põe fim à queimada / da nossa mãe natureza!.

domingo, 7 de novembro de 2004

Outras respostas


Por qué en las épocas oscuras
Se escribe com tinta invisible?
Pablo Neruda 

            Esta  sucessão de interrogações foi ditada enquanto o poeta era levado a passear de carro pelos maravilhosos campos franceses, na véspera de regressar para morrer em Santiago. Assim inicia seu artigo “Qué pregunta el libro de las preguntas?” (El Mercúrio, Santiago, 9/7/2004) Luiz Vargas Saavedra. E, antes de se deter em algumas das perguntas que formam o Libro de las Preguntas, diz que Pablo Neruda não as quis organizar por tema e elas se oferecem no livro pela ordem em que foram criadas. Na verdade, ao longo de sua trajetória poética, Pablo Neruda nunca deixou  de fazer perguntas. Em El libro de las preguntas suas indagações sempre são formuladas em estrofes de dois versos octassílabos e formam um conjunto que, no seu profundo lirismo, parecem valer apenas por si. No entanto, instigam  não poucas respostas.

            Em 1991, para comemorar os vinte  anos de atribuição do Prêmio Nobel a Pablo Neruda, as Academias Brasileira e Brasiliense de Letras e a Embaixada do Chile no Brasil, realizaram um concurso de poesia para homenagear o Poeta. José Túlio Barbosa, gaúcho de Bagé, autor de Rastro dos ventos (1989) e Corpo Sentido (1992), atendeu ao chamado, convicto de que uma homenagem a Pablo Neruda, exigia fidelidade cúmplice ao homem, ao poeta e ao político, sobretudo pela apaixonante e apaixonada personalidade em que fundiu, coerentemente, todas as suas facetas.  Em dez noites, ele escreveu, então,Vinte respostas a  Neruda ( segundo lugar entre mais de quatrocentas obras inscritas). Mas esse  diálogo não lhe foi suficiente. Retomou o trabalho e ao vinte poemas acrescentou outros quarenta. Todos formam o volume Manhãs marinhas. Tributo a Neruda,  publicado pelo Instituto Estadual do Livro e pela Tchê! de Porto Alegre em 1994  e, quatro anos depois, em edição do autor.           

            Nas palavras que antecedem os poemas, José Túlio Barbosa diz não ser possível dar respostas às indagações do Poeta chileno; também, de seu encantamento por ter ousado como que tocar a imensidão de Pablo Neruda. Ao escolher, porém, alguns de seus poemas -  motes perfeitos  que atravessam fronteiras lingüísticas e geográficas – cria versos que instauram um lirismo no qual se amalgama o sentir de um homem e o sentir de um homem do Continente. O de um homem   na solidão de quem não expõe alegrias ou tristezas, que se angustia diante da vida  cristalizada num presente vazio (Dormita a solidão em seus cais / à espreita / desde o último aceno / na névoa do horizonte / desde a primeira indiferença / que construiu a redoma / nos olhos de sal / dos que se foram / e nos deixaram / abandonados);  que é submetido à dolorosa sina do existir (pesa a tocaia dos sonhos / assassinados em sorte vã)  É o sofrimento de um homem do Continente que testemunha sobre o   tempo de obscurantismo em que vive ( um, entre os muitos  tempos de obscurantismo) ao aceitar o repto de Pablo Neruda: Por qué en las épocas oscuras / se escribe con tinta invisible?, dizendo do sangue vertido à luz  da tarde; ou, em outros poemas, de mãos cúmplices e o cobre  das armas brutas, de gritos que incendeiam as noite,  de cadáveres surpreendidos / sob a lápide / de um silêncio complacente, de esqueletos descobertos / sob o gelo as calçadas. Expressando, ao responder Y si el alma se me cayó  / por qué me sigue el esqueleto?  não somente a agressão do sistema com suas ameaças, suas perseguições, seus assassinatos mas a indiferença dos que optam por ignorá-lo. Constatação cruel que irá reaparecer em outro poema, respondendo ao de Pablo Neruda: En que idioma cae la lluvia / sobre ciudades dolorosas?:  quatro versos breves, surpreendentes no seu poder de síntese e na força com que fazem constar  essa realidade do sangue derramado que, para aqueles que tem interesses a preservar, é como se não existisse: No ígneo idioma / do sangue / vertido até a fronteira / da cúmplice indiferença.

            Talvez (ou certamente) José Túlio Barbosa não responda, com exatidão, as questões nerudianas feitas, quem sabe, também, para ficarem sem respostas. E esses versos que  entrelaça aos versos de El libro de las preguntas ele os constrói com a emoção  que habita na sua alma de poeta e com as certezas de quem sabe do mundo e de suas penas.

Outras respostas


Por qué en las épocas oscuras
Se escribe com tinta invisible?
Pablo Neruda 

            Esta  sucessão de interrogações foi ditada enquanto o poeta era levado a passear de carro pelos maravilhosos campos franceses, na véspera de regressar para morrer em Santiago. Assim inicia seu artigo “Qué pregunta el libro de las preguntas?” (El Mercúrio, Santiago, 9/7/2004) Luiz Vargas Saavedra. E, antes de se deter em algumas das perguntas que formam o Libro de las Preguntas, diz que Pablo Neruda não as quis organizar por tema e elas se oferecem no livro pela ordem em que foram criadas. Na verdade, ao longo de sua trajetória poética, Pablo Neruda nunca deixou  de fazer perguntas. Em El libro de las preguntas suas indagações sempre são formuladas em estrofes de dois versos octassílabos e formam um conjunto que, no seu profundo lirismo, parecem valer apenas por si. No entanto, instigam  não poucas respostas.

            Em 1991, para comemorar os vinte  anos de atribuição do Prêmio Nobel a Pablo Neruda, as Academias Brasileira e Brasiliense de Letras e a Embaixada do Chile no Brasil, realizaram um concurso de poesia para homenagear o Poeta. José Túlio Barbosa, gaúcho de Bagé, autor de Rastro dos ventos (1989) e Corpo Sentido (1992), atendeu ao chamado, convicto de que uma homenagem a Pablo Neruda, exigia fidelidade cúmplice ao homem, ao poeta e ao político, sobretudo pela apaixonante e apaixonada personalidade em que fundiu, coerentemente, todas as suas facetas.  Em dez noites, ele escreveu, então,Vinte respostas a  Neruda ( segundo lugar entre mais de quatrocentas obras inscritas). Mas esse  diálogo não lhe foi suficiente. Retomou o trabalho e ao vinte poemas acrescentou outros quarenta. Todos formam o volume Manhãs marinhas. Tributo a Neruda,  publicado pelo Instituto Estadual do Livro e pela Tchê! de Porto Alegre em 1994  e, quatro anos depois, em edição do autor.           

            Nas palavras que antecedem os poemas, José Túlio Barbosa diz não ser possível dar respostas às indagações do Poeta chileno; também, de seu encantamento por ter ousado como que tocar a imensidão de Pablo Neruda. Ao escolher, porém, alguns de seus poemas -  motes perfeitos  que atravessam fronteiras lingüísticas e geográficas – cria versos que instauram um lirismo no qual se amalgama o sentir de um homem e o sentir de um homem do Continente. O de um homem   na solidão de quem não expõe alegrias ou tristezas, que se angustia diante da vida  cristalizada num presente vazio (Dormita a solidão em seus cais / à espreita / desde o último aceno / na névoa do horizonte / desde a primeira indiferença / que construiu a redoma / nos olhos de sal / dos que se foram / e nos deixaram / abandonados);  que é submetido à dolorosa sina do existir (pesa a tocaia dos sonhos / assassinados em sorte vã)  É o sofrimento de um homem do Continente que testemunha sobre o   tempo de obscurantismo em que vive ( um, entre os muitos  tempos de obscurantismo) ao aceitar o repto de Pablo Neruda: Por qué en las épocas oscuras / se escribe con tinta invisible?, dizendo do sangue vertido à luz  da tarde; ou, em outros poemas, de mãos cúmplices e o cobre  das armas brutas, de gritos que incendeiam as noite,  de cadáveres surpreendidos / sob a lápide / de um silêncio complacente, de esqueletos descobertos / sob o gelo as calçadas. Expressando, ao responder Y si el alma se me cayó  / por qué me sigue el esqueleto?  não somente a agressão do sistema com suas ameaças, suas perseguições, seus assassinatos mas a indiferença dos que optam por ignorá-lo. Constatação cruel que irá reaparecer em outro poema, respondendo ao de Pablo Neruda: En que idioma cae la lluvia / sobre ciudades dolorosas?:  quatro versos breves, surpreendentes no seu poder de síntese e na força com que fazem constar  essa realidade do sangue derramado que, para aqueles que tem interesses a preservar, é como se não existisse: No ígneo idioma / do sangue / vertido até a fronteira / da cúmplice indiferença.

            Talvez (ou certamente) José Túlio Barbosa não responda, com exatidão, as questões nerudianas feitas, quem sabe, também, para ficarem sem respostas. E esses versos que  entrelaça aos versos de El libro de las preguntas ele os constrói com a emoção  que habita na sua alma de poeta e com as certezas de quem sabe do mundo e de suas penas.

domingo, 31 de outubro de 2004

Diálogos. Das convicções



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crónica de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente.
 
 

            Juan Núñez de Prado ainda uma vez defende a mudança da cidade: É uma bela terra, mas estreita e dura, estamos morrendo de fome, senhores[...] e percebe  o prisioneiro caminhando entre os escombros. Tinha os braços cruzados no peito e as cordas o amarravam até os ombros. Ia apressado, os soldados o assinalavam rindo e  um dos capitães diz que ele está indo para a cadeia onde irá esperar que as cordas apodreçam para voltar ao cultivo de suas rosas. Juan Núñez de Prado   lança  o  cavalo  na sua perseguição. Ao ver que ele se aproximava, o soldado começa a correr mas o capitão dá um golpe nas suas costas e o atira no chão. Ele cai sobre uns lençóis. Estavam  limpos e frescos e tinham  cheiro de flor e de capim, de verde, de sol, de madrugada e o soldado procurou esconder seu rosto neles. Juan Núñez de Prado desmontou e se ajoelhou a seu lado. Por que foges, por que foges atado assim, quem te atou, quem te atou e te deixou sozinho? ele pergunta, mas a resposta – os soldados, o capitão – não foi de seu agrado. O soldado conseguiu se por de pé e caminhou, tambaleando  Era garboso, jovem, de traços finos, audazes e ingênuo[...]. O capitão, segurando as cordas que lhe caiam da cintura o puxou com violência, e perguntou, outra vez, por que fugia. Com tristeza,  ele responde, falando da cidade ferida que o capitão apunhalava. E o capitão se justifica, dizendo que não a apunhala, não a mata mas a leva embora para salvá-la. Defendes a cidade daqueles que a amam mais do que tu, prendeste todos que  desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu queres somente homens a cavalo, agarrados aos arcabuzes e as adagas, somente queres soldados.  O capitão argumenta falando no rei,  em Jesus e o soldado lhe diz que as suas palavras são as de um homem que tem medo. Não estou derrotado  se defende, e ouve, ainda, uma nova acusação: senhor, estás matando as pessoas para alimentar tua solidão, para que sejas devorado pelo teu medo[...].  Juan Núñez de Prado levanta a mão e com a adaga e corta as cordas que aprisionavam o soldado. Sentindo-se livre  seu  olhar e  o  gesto que esboça demonstram  tímida alegria e ressurreição. O capitão, desceu o braço, o abrigou a se afundar na terra e, se ajoelhando caiu sobre ele dobrando a mão que se apagou no seu peito. Os cavalos se moveram como se desejassem esconder  tudo aquilo.

            As próximas seqüências narrativas informam  que    Juan Núñez de Prado escuta os ruído da vida  que se agita  a seu redor: dos sabres, das vozes dos soldados, do ranger das carretas na terra dura, no latir os cães, da água correndo. Percebe o movimento dos índios, carregando sacos e ferramentas, dos soldados se certificando se as adagas e as cordas estavam nos cinturões, o farfalhar  das árvores,  e o  vôo  pesado dos pássaros enormes. Entre as sequências  que estabelecem o cenário e seus personagens estão as que  tornam a referir a morte do soldado pelas mãos de seu capitão.  Já, agora, acrescentando informações (o capitão via o seu  perfil puro e jovem, ainda não  formado de todo) ou oferecendo significado diferente para o gesto do soldado ao serem cortadas as cordas que o prendiam (  levantou o braço para golpear o capitão ou se despedir), referindo o ato de matar, apenas sugerindo ( sabendo o capitão o que fazia e lamentando-o,  a mão lhe tremia, tinha muito medo, via os olhos do soldado buscar a terra).

            Novamente, o relato abandona a cena sangrenta  para fixar o movimento dos cavalos, as vozes dos soldados, o barulho dos martelos batendo algumas portas, as madeiras se desprendendo das casas.

domingo, 24 de outubro de 2004

Diálogos. Da indignação


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e  razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente.

 


 

O Capelão deixa Juan Núñez de Prado adormecido e sai pela cidade a meio destruir: escombros informes  e desagradáveis, desolados e trágicos. Caminha para as colinas, sob umas rochas e corre um pouco, desejando se cansar. Escuta vozes distantes e um respirar cansado e desconfiado perto dele. Detém-se para olhar com atenção e vê os pés do homem, a arma caída ali perto. Era jovem, se queixava, tinha o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado, a muleta jogada no chão onde se esparramavam as pás. Pegou uma delas, começou a remover a terra e, então, escutou a conversa e viu os três homens amarrados firmemente. Correu até eles e percebeu que não estavam sozinhos. Havia soldados, cavalos e uma carreta ali perto. Tinham os rostos cheios de sangue e machucadura e parecia que os tinham golpeado uns contra os outros. O que fazem, selvagens? Perguntou. O que  fazem com esses homens com esses cristãos? torna a perguntar. O capitão Vasquez responde que a justiça sempre parece bárbara. E argumenta, mencionando a justiça de Jeová cheia de sangue e que se Deus tem as mão encharcadas de sangue o que importa que eles a tenham também? Trazemos a civilização e a vida e a cruz e a espada da Espanha, mas olha quanta morte devemos deixar como rastro para meter vida alheia num mundo estranho? O Padre-capelão insiste, lúgubre: O que fazem, o que fizeram? O  Capitão irônico responde, afirmando que todos os que morrem nessas terras fizeram algo mau, imperdoável: foram fracos e os filhos de Deus não devem ser fracos, nem mornos. A fraqueza é um pecado que é castigado pela morte,[...] a forca e o  garrote são mortes divinas [...]. Depois, se aproximando do capelão, levantou a voz para dizer: este é um assunto da coroa e não de Deus, do capitão e não do vigário. O capelão interroga, como pode ser do capitão se está dormindo pois foi assim que o deixou, antes de estar ali, para dar sepultura aquele infeliz , disse, mostrando as sombras. É simples, diz Vasquez, a sentença demorou para se cumprir e vamos matar  a todos. Quantos, ainda quis saber  o capelão. A todos que encontremos nas carretas que estão cheias de miseráveis. Ao escutar que se trata de uma espantosa crueldade o capitão acrescenta que a justiça não é obra de misericórdia. O capelão ainda grita com tristeza que não se trata de justiça mas de assassinato o que não é da vontade nem de Deus e nem do rei e largando a pá que ainda mantinha entre as mãos  caminha até os presos e lhes fala aos gritos, perguntando primeiro, quem eram, por que eram tratados assim. As suas perguntas, já traziam as respostas, mas, principalmente, continham o desejo de que fossem formuladas pelos próprios presos: quem somos, que fizemos, Deus, nos desamparaste e o ajudastes a eles, segurando as madeiras e amarrando o nó duplo. Insiste em saber quem são e por que não se defendem. Mas os prisioneiros não respondem e sim o capitão para dizer que já está decidido. O capelão diz, outra vez, que não se trata de justiça mas de assassinato pois é ele quem os está matando. Reafirma Vasquez não ser ele quem os mata mas aqueles aos quais está submisso: Deus, o rei e o vice-rei. O capelão como resposta lhe dá uma bofetada que o faz rolar  pelo chão e lhe cai encima. O diálogo se prolonga em meio à luta que se faz a meias porque o capitão não quer lutar com o padre mas, ainda assim, também o esbofeteia. O padre o deixa deitado no chão e, ao  levantar,  se defronta com os prisioneiros, já enforcados.

O relato no qual se insere o diálogo, a medida que ele vai se estabelecendo, dá conta do cenário, percebido no cheiro da terra e dos personagens  que o povoam e  da ação que substitui as palavras.

            Ausente, o explícito da morte na forca, então , apenas sugerida: as cordas que se balançam na direção do padre; a cabeça do homem coxo, caída sobre o próprio peito;  os soldados, arrastando a escada da forca; o rolar dos corpos para a profundidade da terra. Porque depois das palavras que justificam os crimes, os próprios crimes não precisam mais serem descritos ou relatados. Instaura-se a zona de sombra para que nela se erija, implacável, o mais  hediondo absurdo.

 


 

domingo, 17 de outubro de 2004

Diálogos. Das razões

      

Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crónica de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente.. 

            A cidade está sendo desfeita na tarde ensolarada. Guevara empurra com o peito do cavalo a parte traseira das carretas e argumenta para os demais capitães: esta é uma bela terra, mas temos outra ainda mais bela, mais formosa, mais fácil e mais difícil, presa aos vales que descem para o mar [...]. Diante de portas e janelas  que permaneciam fechadas, Juan Núñez de Prado as mostra com o gesto de sua mão enluvada, interrogando. Por que não abrem? E, acrescentando com raiva e, igualmente, a interrogar: sempre, em cada mudança, termos que topar com um  punhado de loucos que se fecham nas casas e pegam em armas para defendê-las? Guevara uma hora antes o havia informado que tinham doentes e é troçando que lhe responde não estarem  robustos, nem sadios para efetuarem proezas, que não são obstinados, nem loucos, apenas doentes, febris, pesteados.  O que leva a nova pergunta: Vamos, então carregar mais gente podre? E à outra mais, tentativa de argumentar que todos sabiam da mudança, mas à qual se acrescenta a dúvida: ou não? Guevara responde que uns sabem, outros não; que uns acreditam, outros não;  que uns não se atrevem a acreditar, que só irão acreditar quando estiverem com os braços atados, quando forem atirados no chão, quando receberam os golpes na cara. E que eles  podiam atar e enforcar  os traidores que pretendiam voltar ao Chile e os que defendiam suas casas,  mas o que fazer com esses pobres infelizes que tremem e choram nas suas roupas senão entregá-los aos padres capelães?

     
       Então, se definem as razões: Deus há de gostar mais dos sãos;  ao Rei e a eles próprios convém mais levar os sãos e os vivos; é preciso exterminar os doentes; a saúde da cidade é o mais importante  não a dos enfermos; não devem deixar ninguém vivo ao partirem; ninguém deixará de acreditar na necessidade de matar cristãos para salvar a cidade.

            No relato, são os dizeres de Juan Núñez de Prado e de seu capitão Guevara  e se inscrevem entre as seqüências que fixam estados de ânimo, que mencionam sofrimentos, que enumeram ações.

Estados de espírito que transparecem na  voz que ora balbucia desculpas, ora se eleva com naturalidade, com frieza, com doçura. No caminhar nervoso, no estremecer de medo, na indecisão. No mostrar-se desesperado, humilhado, perseguido diante do olhar do outro. Na pergunta que se eleva, malvada, muito mais malvada por estar velada, escondida por medos e desconfianças; ou superficial, ao ignorar como apunhalar um moribundo? ;  ou por que matar os doentes se de qualquer jeito eles vão morrer?

            Dos doentes, são os sofrimentos: queixam-se, tossem, murmuram, rezam, tremem, suspiram. Juan Núñez de Prado os percebe,  entre os lençóis, suados, amarelos, consumidos pelos  sobressaltos,  pela febre e a sonolência, tiritando de dor e de medo e de ilusões e desconfiança[...] e deve ditar-lhes o destino. Porque, se abandonados na cidade, eles sobrevivem, acredita que a proximidade com a morte os tornará mais duros e mais terríveis.

            Ao redor desses fadados à morte, agitam-se os que trabalham na destruição da cidade. As carretas estão repletas de trastes, os soldados gritam advertências ou chamam os índios, os cavalos galopam entre os escombros;  móveis  se esparramam, as galinhas se assustam, os cães correm. Há onda de fumaça e  de disparos.

            Seguem-se  as palavras dos padres capelães que Juan Núñez contesta, reafirmando razões e a chegada de Miguel Ardiles, o capitão que deveria trazer reforços a introduzir um novo núcleo dramático na ação. Então, as decisões e os atos que as cumprem,  não mais estão presentes na narrativa. Fazem  parte das zonas de sombra,  recurso que no romance de Carlos Droguett  elude a violência explícita e a torna, assim, mais  absurda, desumana e cruel.

           

domingo, 10 de outubro de 2004

Diálogos. Das decisões


            Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir de Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente..

 
            A cidade está sendo construída  quando Juan Núñez de Prado decide mudar o seu assento pela segunda vez: não gosto desta terra, tenho horror aos cerros e às rochas, sinto que a cidade e nós estamos sendo afogados neles, nos falta o ar, o céu está muito alto e distante, estamos encurralados e afastados da vida, da rota dos assaltantes e bandidos, temos que ir embora [...].  Alguns espanhóis não querem partir – se apegaram às casas, plantaram flores e árvores frutíferas -   e por sediciosos são feitos prisioneiros. Ao vê-los num quarto fechado, Juan Núñez de Pradoe diz ao capitão Guevara que, talvez, não os devessem ter ali,  mas ao sol, na praça, onde possam vê-los. Guevara responde que logo serão vistos  pois são frutas para as forcas.
            A insegurança de Juan Núñez de Prado expressa no advérbio talvez, contrasta com a segurança de seu capitão que, taxativo, diz do destino que terão os prisioneiros. Insegurança que será presença constante no diálogo que mantém com ele e que determina seja um diálogo, quase sempre, feito de interrogações e respostas. Quer saber Juan Núnez de Prado se os soldados trabalhavam construindo a cidade que deviam desmontar; depois, se deveriam levá-los junto com a mudança; se havia mais prisioneiros do que soldados livres. E a incerteza que o alimenta transparece, igualmente,  ao perguntar se Guevara compreende seus desejos, suas ambições; se acredita ser ele um homem cruel; como  deixar a cidade perecer de fome ou ser destruída pelos índios;  se os padres capelães já sabem o que se passa; e ao saber  que os soldados clamam contra a injustiça, pergunta com tristeza, de que injustiça se trata.

            Ao contrário, o capitão Guevara responde informando: sim, os que não querem deixar a cidade, trabalham desde cedo; nada foi dito aos padres capelães mas devem ter escutado os disparos e os gritos. Mas, também, induz soluções ao perguntar, por sua vez, ao superior, se acredita que devam levar os prisioneiros; não leva em consideração o desejo de seu interlocutor de ser compreendido ou não se propõe a informar aos padres das decisões tomadas. Sobretudo, se mostra convicto da necessidade da mudança que sabe já está sendo feita,  antes mesmo do conhecimento de Juan Núñez de Prado e da honestidade de seu trabalho, tido por injusto, pois no seu entender,  se os  espanhóis não compreendem a necessidade de abandonar um lar que se deseja, os móveis que viveram conosco, a roupa que amassamos no nosso desespero e solidão, se não sabem abandonar virilmente uns vasos de flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como compreender,senhor, que essa tropa de ladrões e assassinos tenham se embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? Mais adiante, respondendo à inquietação de Juan Núñez de Prado ao se referir que alguns de seus homens querem ter raízes e refutam o abandono da cidade, afirma, categórico, que a mudança se fará ainda que eles não queiram.

            Nas palavras – breves seqüências -  que Juan Núñez de Prado e Guevara  trocam entre si, eles se revelam imbuídos  de arrogância e de incertezas. No afã de buscar a vitória a qualquer preço, igualmente revelam  as vítimas que fizeram: prisioneiros, feridos, mortos. O relato, por vezes, neles se detém, fixando-lhes um gesto, traços de um rosto, o medo e o sofrimento. Denso, entrelaça o cenário com os personagens, seus sentimentos, seus atos e numa amálgama de perfeição textual  delineia  vencedores e caídos. Nos territórios do Continente e nos seus dramas se vislumbram, então, magníficos e comovedores, os mistérios da condição humana.

domingo, 3 de outubro de 2004

Diálogos. Da Conquista


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e ra zoes e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente. 

            Juan Núñez de Prado deve decidir e sabe que fixar-se em detalhes o faz encontrar a tranqüilidade, uma tranqüilidade  relativa que lhe permitiria, por imaginar, entrever, o que realmente buscava ter meios e forças e desejos para levar a cidade embora [...]. Lembra-se do momento em que, no Peru, lhe é traçado esse caminho que o conduz para dentro do Continente e para o cumprimento de sua missão. O atormentado silêncio do Vice-rei enquanto   ele fazia o cálculo do tempo que levaria para reunir os cavalos e  os homens necessários. Depois,  seus argumentos para que apressasse a partida, as perguntas sobre o dinheiro de que dispunha, os objetivos a alcançar e as determinações quanto ao procedimento em relação aos índios, instituindo um diálogo feito de poucas réplicas  entre as quais, algumas breves  seqüências dizem algo do espaço em que eles se movem , dos componentes  da expedição; esboçam o retrato do Vice-rei que se completa pelos seus gestos e pelos seus medos e pela expressão de suas convicções ;  e mencionam o olhar do capitão acompanhando o interlocutor,  gesto de estender os papeis sobre a mesa e a seu riso alegre, diante da perspectiva de concretizar a expedição. 
  
         

O diálogo se estabelece hierarquicamente. O Vice-rei se dirige ao Capitão na segundo pessoa singular e, uma vez, tratando-o pelo nome. Juan Núnez de Prado  lhe responde, dando-lhe a senhoria o que, no entanto, não irá significar  ser-lhe submisso.

            Ao lhe dizer do tempo que precisa para preparar a expedição, primeiro, três meses, depois dois meses  pelo menos, todo o resto do ver, talvez para o outono, o Vice-rei, como se não o tivesse ouvido, insiste para que parta no sábado com a tropa de que dispõe e com  o dinheiro prometido pelo padre Gomar. Diante das explicações  que lhe dá  – só tem sete cavalos e promessas de cães, couros, roupas  e sacos de alimentos – ainda argumenta que dois meses  é demasiado tempo, que parta antes de quatro semanas, que quer vê-lo partir em sete dias. Então,  reconsidera, para aceitar: dois meses, só dois meses, nem um dia mais, partirás a meia noite em que se completarem nossos prazos.

            Em relação ao dinheiro necessário, pergunta  se o  Padre Gomar não vai dá-lo, referindo –se ao ouro que ele tem guardado numa panela e, também, que  lhe havia dito da intenção  de  comprar todos os cavalos do reino para que subamos as serras, e explorar entre as nuvens do sol crespuscular as primeiras estrelas, os rios amassados contra o horizonte, as boas terras.   Juan Núñez de Prado lhe responde que o padre irá  vender o que possui, sua casa, sua índia, seus paramentos sagrados para ir também com a expedição. O Vice rei, impaciente, lhe responde  que venda tudo, Cristo, Maria Madalena e São Cristóvão, que faça sociedade com o diabo, com todos os diabos, mas  quem que devem partir logo.

            Com o acordo feito, o capitão acrescenta o que lhe fora prometido: cavalos e gado, bois, cabra, ovelhas, porcos, cães, trigo, fruta, vinho e armas. E quinhentos índios bem contados e  três  frades.

            Estabelecidas as condições práticas e pecuniárias, o Vice-rei determina, então,  os deveres: o serviço do rei deve se manter vivo, ainda que à custa de necessidades e crimes e misérias:  a crueldade é necessária, quando não existe bondade à mão a qual recorrer [...]..  Mas, adverte que o capitão não deve ser malvado e nem selvagem sem que para isso haja uma extrema necessidade. Que estará pensando nele, na mensagem  do  rei e de Cristo que leva.

            Como sempre fará neste romance, Carlos Droguett insere a expressão dos personagens em meio a seqüências que descrevem e narram e na sua perfeita combinação de elementos fazem do texto romanesco uma dinâmica representação de vida.