domingo, 5 de dezembro de 2004

Para constar


 Em “Las vidas del Poeta: Memórias y recurdos de Pablo Neruda”, publicadas em 1962, na revista O CRUZEIRO Internacional há um parágrafo que foi eliminado de Confieso que he vivido (1974). Aquele em que, ao relatar Pablo Neruda sobre esse tempo em que, perseguido pela polícia de seu país, teve que viver escondido no campo, na cidade, nos portos, em acampamentos, recebido por camponeses, advogados, engenheiros, médicos, mineiros, fala na alegria  que, se não fossem as circunstâncias, teria então, sentido. Uma alegria que somente é possível sentir, diz, quando existe uma identificação absoluta de um poeta com o seu povo: Estou consciente de ter alcançado está subterrânea distinção, título raro, louros que muitos desdenham mas que não conhecem. Mais tarde, irá dizer a Sara Vial, na entrevista realizada a 28 de março de 1965, que leu seus versos em lugares que teriam espantado os poetas do passado. Num galpão de tosa de ovelhas na Patagônia, por exemplo, onde os tosadores  interromperam sua tarefa para escutá-lo. E assim foi em Vega Central, o maior mercado popular de Santiago, no Sindicato dos Carregadores onde leu seus versos de España en el corazón para homens que vestiam apenas velhas camisetas manchadas ou tinham o torso nu, como que alheios ao frio do mês de julho e que se emocionaram até as lágrimas, como ele narra em Confieso que he vivido.  E, também, assim foi em Lota, durante o comício em que, ao ser anunciado o seu nome e o título do poema que iria ler, a multidão de mineiros, como um só gesto tirou o chapéu numa calada reverência, feita por dez mil mãos.

            Algo de similar ocorreu no passado dia 20, em Curitiba. Na Programação do “Primeiro Festiva Latino-americano de Música Camponesa”, organizado pelo MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e pelo Governo do Estado do Paraná, entre outros conferencistas, Eduardo Galeano. Uruguaio, autor de contos (Vagamundo), de um romance Prêmio Casa de las Américas 1975, (La canción de nosotros), de breves textos que narram a História da América latina de nossos dias e dele próprio (Dias y noches de amor y de guerra), de um ensaio que foi traduzido em mais de vinte idiomas (Las venas abiertas de América Latina e de Memórias del fuego, cujos três volumes, feitos de pequenos textos, é um dos mais belos livros de Histórias das Américas, é um dos poucos autores latino-americanos, cuja obra, na sua maior parte, traduzida para o português, é conhecida dos brasileiros. Um interesse não muito comum num país em que os leitores, em geral, tem a tendência de acreditar que apenas tem valor o que chega do Hemisfério Norte.

            Já em 1987, a Associação de Professores de Espanhol do Estado do Paraná, realizou de 28 de setembro a 2 de outubro, um Seminário sobre a sua obra. Analisados  Las venas abiertas de América Latina, La canción de nosotros, Memórias del fuego e a sua participação na revista Crisis, respectivamente por Carlos Roberto Antunes dos Santos, Marilena Weinhardt, Francisco de Morais Paz e Roberto Figurelli, professores da Universidade Federal do Paraná, os trabalhos foram publicados no volume II de Cuardernos Hispano-América (Curitiba). No dia em que devia falar Eduardo Galeano, a sala Scabi do Solar do Barão estava repleta para ouvir não apenas um escritor de talento, mas aquele que desafiara os regimes de exceção, chamando, como já ensinava La Fontaine, no século, as coisas pelo seu nome.

            Agora, dezessete anos passados, novamente em Curitiba e participando de uma programação oficial, ao ser apresentado ao público – seus leitores fiéis e os que o vem descobrindo ao longo desse tempo transcorrido e, principalmente, os que fazem parte do MST, a maioria dos presentes – Eduardo Galeano recebe uma ovação que irá se repetir, inúmeras vezes, ao longo da leitura de seus textos. Cada um deles, expressando a realidade do Continente que não consta das crônicas oficiais. Em  “Los nadies” (El libro de los abrazos), “os ninguéns” são esses compatriotas de cidadãos de qualquer país, cuja existência parece constar, apenas, nas estatísticas: nenhum direito possuem e, certamente, nenhum direito irão ter se continuarem na ignorância que lhes coube e lhes nega a consciência de saberem quem são e o que podem ser. Um texto claro e objetivo que, ao ser lido para aqueles cuja luta ainda se prende à conquista dos mais elementares direitos à cidadania  como ter direito à posse de um pedaço de terra, à saúde, à educação, à alimentação e para aqueles que, já não necessitando dessa luta a aceitam como válida e imprescindível, certamente não elude o seu sentido. E esse sentido foi entendido pelos que na sua condição de serem tratados como ninguém, estão conscientes ou se conscientizam de que podem passar à condição de serem efetivamente alguém.

E o entusiasmo dos aplausos enlaçou Eduardo Galeano, arauto de seu tempo, com aqueles que pelas palavras escutadas passaram a perceber muito mais sobre si mesmos.

 
 

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