domingo, 12 de dezembro de 2004

De arames farpados



            Em 1956, Pablo Neruda publica Nuevas odas elementales e “Oda al alambre de púa” (“Ode ao arame farpado”) é o terceiro poema do livro. A estrofe que o inicia, No meu país, / arame, arame... é quase igual a seu último verso: No Chile, arame, arame.... Um círculo que se fecha, aprisionando um espaço bem definido, mas que, na verdade, não se diferencia de outros espaços do Continente: paragens desertas, sem homens, sem cavalos, apenas arames farpados e terras despovoadas: terras emudecidas, terras cegas, / terras sem coração, terras sem sulco. À essa aridez, o Poeta opõe a alegria da abundância que existe em outras terras do planeta, tornando assim mais questionável e cruel a presença agressiva do arame farpado nessa constatação de que nelas poderia existir o trigo, a hortaliça, o queijo, o arroz, a fruta e o pão enquanto, no Chile, só arame ao longo das amplas extensões de vazios. 

            Daniel Viglietti é uruguaio. Também em seu país a imensidão deserta dos campos se recortam, como soe acontecer com os latifúndios, com arames farpados: provas dos sonhos desfeitos de José Artigas, o prócer da Independência de seu país que já no século XIX acreditava pudesse a terra pertencer a todos. Seguindo-lhe o ideal, Daniel Viglietti, uma das figuras mais expressivas da música latino-americana compõe “A desalambrar”, uma canção profundamente ligada à realidade do Continente que, embora tenha sido composta na década de 60, continua expressando os anseios desses homens que o passar dos anos não libera de estarem sempre alijados de tudo o que lhes é devido.

            Em março deste ano, Daniel Viglietti se apresentou na Semana Nacional da Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, no Rio de Janeiro, convidado pela Direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Agora, no passado dia 21, cantou em Curitiba no primeiro Festival Latino-americano de Música Camponesa, organizado pelo Governo do Estado do Paraná e pelo MST. No seu repertório, as belíssimas composições “Gurisito”,  em que as palavras gurizinho, crianças, amanhecer, remetem a um futuro demarcado pela esperança da igualdade: “cada criança um pouco, todos tomarão do mesmo leite e do mesmo pão”;  “Soledad Barret”: minha vida inteira não alcança para acreditar que possam fechar a pureza de teu olhar,  um tributo à jovem paraguaia,  vítima da luta clandestina, assassinada no Recife, lembrada pela sua vida, querendo levar a justiça onde não existia, pela compreensão de que as lágrimas devem ser empunhadas para cantar, pela certeza de que a união levará à vitória. E  “A desalambrar”,  cujos sons do violão, lentos e melancólicos se aproximam do sentencioso que, segundo Félix Coluccio  (como também a alegria) define a milonga, ritmo popular escolhido por Daniel Viglietti como acompanhamento para as palavras que expressam o anseio coletivo de séculos. Elas emergem com a autoridade, dada pela razão, que esta terra é nossa a sugerir o ato de tirar os arames que a dividem entre poucos e assim  socializar-lhe a posse; e se dirige aos que a escutam, questionando o estabelecido: eu pergunto aos presentes / se começaram a pensar / que esta terra é nossa / e não do que possua mais. E o estribilho é um chamado à ação: a desalambrar, a desalambrar (a tirar os arames, a tirar os arames).

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