domingo, 19 de dezembro de 2004

Faíscas na chuva


            Seu nome, Jaime Espaillat. Seu país, Santo Domingo. Fora ministro do governo socialista de Juan Bosch, eleito em 1961 e deposto sete meses depois. Sérgio Faraco em Lágrimas na chuva : uma aventura na URSS (Porto Alegre, L&PM, 2002) o descreve, nesses idos de 1963, já com sessenta anos, com voz anasalada e olhar manso. Por um breve tempo, seus dias se cruzaram na clínica de reabilitação onde um e outro foi internado por algum ato de rebeldia que desagradou ao Partido. O texto do escritor gaúcho que relata a sua viagem a Moscou para freqüentar, como estudante, a convite do Partido Comunista da União Soviética, o Instituto Internacional de Ciências Sociais e os terríveis momentos vividos sob o efeito de medicamentos num regime de reclusão a que foi submetido como todos aqueles que ousaram criticas às assertivas superiores, foi publicado, primeiramente em A Notícia, de São Luiz Gonzaga de fevereiro a setembro de 2002. São lembranças, diz Sérgio Faraco, em nota quando da publicação do livro, que remetem ao gelo. E os anos que passaram, desde então, não minimizaram os desconfortos originados dos atritos constantes com os demais componentes do grupo de brasileiros, da insegurança gerada pelo golpe de 64 que iria se constituir, não somente um entrave para a volta ao Brasil, mas, principalmente, uma incógnita quanto ao tratamento que lhe seria reservado ao retornar; da grande tristeza causada pela morte acidental de um companheiro; das tediosas visitas às fazendas que deveriam se constituir  modelos de produtividade. Tampouco deixaram esquecer os itinerários de um país fascinante e um percurso amoroso que o transitório de sua situação, na Rússia, transformou em sofrimento. Sobretudo, resguardaram esses momentos ímpares em que, repentinas, emergem, como que do nada  a solidariedade e a gratidão a reafirmar as qualidades do homem.

            Sucumbindo ao cerco mesquinho e hipócrita armado pelo grupo brasileiro do qual fazia parte e pelos anfitriões, é levado a uma  verdadeira situação de horror cujo cenário foi o Hospital do Kremlin e cujo preço, o entorpecimento que o acometia, advindo dos comprimidos e injeções com que era “medicado”. No leito do hospital, sucederam-se os dias brancos, a perda da vontade de sair da cama, a falta de ânimo de sair do quarto. É quando recebe a visita de um dos pacientes que ele já vira passar pelo corredor. Propunha que fizessem a caminhada juntos. Ainda que não lhe tivesse dado resposta, Jaime Espaillat volta no dia seguinte e tanto insiste que termina por convencer. Não somente Sérgio Faraco se submete à ingente tarefa de se erguer do leito, de efetuar o esforço de sair do quarto e caminhar, como também aceita o conselho de não mais engolir os remédios que recebia a cada manhã, numa tigelinha. Assim, lhe foi  possível tornar-se, outra vez, um ser humano normal, capaz de perceber a beleza do bosque de bétulas por onde caminhavam e o afeto de um companheiro que até então lhe fora desconhecido.  
            Antes disso, quando nas férias foi à Armênia, cuja história sempre o atraíra, presenciou uma cena que o tocou profundamente. Viajava no ônibus e de súbito se dá conta de que uma menina de uns oito ou nove anos, que viajava sozinha com um embrulho, fora apanhada  sem passagem. Não levantava os olhos, nem falava para responder às ríspidas perguntas do cobrador. Percebendo que seria devolvida à estrada, Sérgio Faraco prontifica-se a pagar-lhe a passagem e a menina volta para o seu lugar com os olhos baixos. A viagem prossegue e o sol começa a se por e ele dormita. Até  que um  leve susto, como se alguém lhe tivesse tocado a face com um raminho, o faz abrir os olhos e se emocionar com a delicadeza do gesto agradecido da menina que, ao ser surpreendida, recua ruborizada.

            Assim, embora nessa experiência vivida na Rússia, imperassem “ressentimentos e malquerenças, incompreensões e vilanias, a solidariedade e a gratidão – inesperadas presenças – mostraram  quanto é possível o luminoso se inscrever na fosca melancolia das horas.

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