domingo, 10 de outubro de 2004

Diálogos. Das decisões


            Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir de Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente..

 
            A cidade está sendo construída  quando Juan Núñez de Prado decide mudar o seu assento pela segunda vez: não gosto desta terra, tenho horror aos cerros e às rochas, sinto que a cidade e nós estamos sendo afogados neles, nos falta o ar, o céu está muito alto e distante, estamos encurralados e afastados da vida, da rota dos assaltantes e bandidos, temos que ir embora [...].  Alguns espanhóis não querem partir – se apegaram às casas, plantaram flores e árvores frutíferas -   e por sediciosos são feitos prisioneiros. Ao vê-los num quarto fechado, Juan Núñez de Pradoe diz ao capitão Guevara que, talvez, não os devessem ter ali,  mas ao sol, na praça, onde possam vê-los. Guevara responde que logo serão vistos  pois são frutas para as forcas.
            A insegurança de Juan Núñez de Prado expressa no advérbio talvez, contrasta com a segurança de seu capitão que, taxativo, diz do destino que terão os prisioneiros. Insegurança que será presença constante no diálogo que mantém com ele e que determina seja um diálogo, quase sempre, feito de interrogações e respostas. Quer saber Juan Núnez de Prado se os soldados trabalhavam construindo a cidade que deviam desmontar; depois, se deveriam levá-los junto com a mudança; se havia mais prisioneiros do que soldados livres. E a incerteza que o alimenta transparece, igualmente,  ao perguntar se Guevara compreende seus desejos, suas ambições; se acredita ser ele um homem cruel; como  deixar a cidade perecer de fome ou ser destruída pelos índios;  se os padres capelães já sabem o que se passa; e ao saber  que os soldados clamam contra a injustiça, pergunta com tristeza, de que injustiça se trata.

            Ao contrário, o capitão Guevara responde informando: sim, os que não querem deixar a cidade, trabalham desde cedo; nada foi dito aos padres capelães mas devem ter escutado os disparos e os gritos. Mas, também, induz soluções ao perguntar, por sua vez, ao superior, se acredita que devam levar os prisioneiros; não leva em consideração o desejo de seu interlocutor de ser compreendido ou não se propõe a informar aos padres das decisões tomadas. Sobretudo, se mostra convicto da necessidade da mudança que sabe já está sendo feita,  antes mesmo do conhecimento de Juan Núñez de Prado e da honestidade de seu trabalho, tido por injusto, pois no seu entender,  se os  espanhóis não compreendem a necessidade de abandonar um lar que se deseja, os móveis que viveram conosco, a roupa que amassamos no nosso desespero e solidão, se não sabem abandonar virilmente uns vasos de flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como compreender,senhor, que essa tropa de ladrões e assassinos tenham se embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? Mais adiante, respondendo à inquietação de Juan Núñez de Prado ao se referir que alguns de seus homens querem ter raízes e refutam o abandono da cidade, afirma, categórico, que a mudança se fará ainda que eles não queiram.

            Nas palavras – breves seqüências -  que Juan Núñez de Prado e Guevara  trocam entre si, eles se revelam imbuídos  de arrogância e de incertezas. No afã de buscar a vitória a qualquer preço, igualmente revelam  as vítimas que fizeram: prisioneiros, feridos, mortos. O relato, por vezes, neles se detém, fixando-lhes um gesto, traços de um rosto, o medo e o sofrimento. Denso, entrelaça o cenário com os personagens, seus sentimentos, seus atos e numa amálgama de perfeição textual  delineia  vencedores e caídos. Nos territórios do Continente e nos seus dramas se vislumbram, então, magníficos e comovedores, os mistérios da condição humana.

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