domingo, 24 de outubro de 2004

Diálogos. Da indignação


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e  razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente.

 


 

O Capelão deixa Juan Núñez de Prado adormecido e sai pela cidade a meio destruir: escombros informes  e desagradáveis, desolados e trágicos. Caminha para as colinas, sob umas rochas e corre um pouco, desejando se cansar. Escuta vozes distantes e um respirar cansado e desconfiado perto dele. Detém-se para olhar com atenção e vê os pés do homem, a arma caída ali perto. Era jovem, se queixava, tinha o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado, a muleta jogada no chão onde se esparramavam as pás. Pegou uma delas, começou a remover a terra e, então, escutou a conversa e viu os três homens amarrados firmemente. Correu até eles e percebeu que não estavam sozinhos. Havia soldados, cavalos e uma carreta ali perto. Tinham os rostos cheios de sangue e machucadura e parecia que os tinham golpeado uns contra os outros. O que fazem, selvagens? Perguntou. O que  fazem com esses homens com esses cristãos? torna a perguntar. O capitão Vasquez responde que a justiça sempre parece bárbara. E argumenta, mencionando a justiça de Jeová cheia de sangue e que se Deus tem as mão encharcadas de sangue o que importa que eles a tenham também? Trazemos a civilização e a vida e a cruz e a espada da Espanha, mas olha quanta morte devemos deixar como rastro para meter vida alheia num mundo estranho? O Padre-capelão insiste, lúgubre: O que fazem, o que fizeram? O  Capitão irônico responde, afirmando que todos os que morrem nessas terras fizeram algo mau, imperdoável: foram fracos e os filhos de Deus não devem ser fracos, nem mornos. A fraqueza é um pecado que é castigado pela morte,[...] a forca e o  garrote são mortes divinas [...]. Depois, se aproximando do capelão, levantou a voz para dizer: este é um assunto da coroa e não de Deus, do capitão e não do vigário. O capelão interroga, como pode ser do capitão se está dormindo pois foi assim que o deixou, antes de estar ali, para dar sepultura aquele infeliz , disse, mostrando as sombras. É simples, diz Vasquez, a sentença demorou para se cumprir e vamos matar  a todos. Quantos, ainda quis saber  o capelão. A todos que encontremos nas carretas que estão cheias de miseráveis. Ao escutar que se trata de uma espantosa crueldade o capitão acrescenta que a justiça não é obra de misericórdia. O capelão ainda grita com tristeza que não se trata de justiça mas de assassinato o que não é da vontade nem de Deus e nem do rei e largando a pá que ainda mantinha entre as mãos  caminha até os presos e lhes fala aos gritos, perguntando primeiro, quem eram, por que eram tratados assim. As suas perguntas, já traziam as respostas, mas, principalmente, continham o desejo de que fossem formuladas pelos próprios presos: quem somos, que fizemos, Deus, nos desamparaste e o ajudastes a eles, segurando as madeiras e amarrando o nó duplo. Insiste em saber quem são e por que não se defendem. Mas os prisioneiros não respondem e sim o capitão para dizer que já está decidido. O capelão diz, outra vez, que não se trata de justiça mas de assassinato pois é ele quem os está matando. Reafirma Vasquez não ser ele quem os mata mas aqueles aos quais está submisso: Deus, o rei e o vice-rei. O capelão como resposta lhe dá uma bofetada que o faz rolar  pelo chão e lhe cai encima. O diálogo se prolonga em meio à luta que se faz a meias porque o capitão não quer lutar com o padre mas, ainda assim, também o esbofeteia. O padre o deixa deitado no chão e, ao  levantar,  se defronta com os prisioneiros, já enforcados.

O relato no qual se insere o diálogo, a medida que ele vai se estabelecendo, dá conta do cenário, percebido no cheiro da terra e dos personagens  que o povoam e  da ação que substitui as palavras.

            Ausente, o explícito da morte na forca, então , apenas sugerida: as cordas que se balançam na direção do padre; a cabeça do homem coxo, caída sobre o próprio peito;  os soldados, arrastando a escada da forca; o rolar dos corpos para a profundidade da terra. Porque depois das palavras que justificam os crimes, os próprios crimes não precisam mais serem descritos ou relatados. Instaura-se a zona de sombra para que nela se erija, implacável, o mais  hediondo absurdo.

 


 

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