domingo, 17 de outubro de 2004

Diálogos. Das razões

      

Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crónica de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa e da surpreendente  expressão lingüística, os diálogos expressam sentimentos e razões e revelam o que houve de humano e de cruel na Conquista do Continente.. 

            A cidade está sendo desfeita na tarde ensolarada. Guevara empurra com o peito do cavalo a parte traseira das carretas e argumenta para os demais capitães: esta é uma bela terra, mas temos outra ainda mais bela, mais formosa, mais fácil e mais difícil, presa aos vales que descem para o mar [...]. Diante de portas e janelas  que permaneciam fechadas, Juan Núñez de Prado as mostra com o gesto de sua mão enluvada, interrogando. Por que não abrem? E, acrescentando com raiva e, igualmente, a interrogar: sempre, em cada mudança, termos que topar com um  punhado de loucos que se fecham nas casas e pegam em armas para defendê-las? Guevara uma hora antes o havia informado que tinham doentes e é troçando que lhe responde não estarem  robustos, nem sadios para efetuarem proezas, que não são obstinados, nem loucos, apenas doentes, febris, pesteados.  O que leva a nova pergunta: Vamos, então carregar mais gente podre? E à outra mais, tentativa de argumentar que todos sabiam da mudança, mas à qual se acrescenta a dúvida: ou não? Guevara responde que uns sabem, outros não; que uns acreditam, outros não;  que uns não se atrevem a acreditar, que só irão acreditar quando estiverem com os braços atados, quando forem atirados no chão, quando receberam os golpes na cara. E que eles  podiam atar e enforcar  os traidores que pretendiam voltar ao Chile e os que defendiam suas casas,  mas o que fazer com esses pobres infelizes que tremem e choram nas suas roupas senão entregá-los aos padres capelães?

     
       Então, se definem as razões: Deus há de gostar mais dos sãos;  ao Rei e a eles próprios convém mais levar os sãos e os vivos; é preciso exterminar os doentes; a saúde da cidade é o mais importante  não a dos enfermos; não devem deixar ninguém vivo ao partirem; ninguém deixará de acreditar na necessidade de matar cristãos para salvar a cidade.

            No relato, são os dizeres de Juan Núñez de Prado e de seu capitão Guevara  e se inscrevem entre as seqüências que fixam estados de ânimo, que mencionam sofrimentos, que enumeram ações.

Estados de espírito que transparecem na  voz que ora balbucia desculpas, ora se eleva com naturalidade, com frieza, com doçura. No caminhar nervoso, no estremecer de medo, na indecisão. No mostrar-se desesperado, humilhado, perseguido diante do olhar do outro. Na pergunta que se eleva, malvada, muito mais malvada por estar velada, escondida por medos e desconfianças; ou superficial, ao ignorar como apunhalar um moribundo? ;  ou por que matar os doentes se de qualquer jeito eles vão morrer?

            Dos doentes, são os sofrimentos: queixam-se, tossem, murmuram, rezam, tremem, suspiram. Juan Núñez de Prado os percebe,  entre os lençóis, suados, amarelos, consumidos pelos  sobressaltos,  pela febre e a sonolência, tiritando de dor e de medo e de ilusões e desconfiança[...] e deve ditar-lhes o destino. Porque, se abandonados na cidade, eles sobrevivem, acredita que a proximidade com a morte os tornará mais duros e mais terríveis.

            Ao redor desses fadados à morte, agitam-se os que trabalham na destruição da cidade. As carretas estão repletas de trastes, os soldados gritam advertências ou chamam os índios, os cavalos galopam entre os escombros;  móveis  se esparramam, as galinhas se assustam, os cães correm. Há onda de fumaça e  de disparos.

            Seguem-se  as palavras dos padres capelães que Juan Núñez contesta, reafirmando razões e a chegada de Miguel Ardiles, o capitão que deveria trazer reforços a introduzir um novo núcleo dramático na ação. Então, as decisões e os atos que as cumprem,  não mais estão presentes na narrativa. Fazem  parte das zonas de sombra,  recurso que no romance de Carlos Droguett  elude a violência explícita e a torna, assim, mais  absurda, desumana e cruel.

           

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