É
um olheiro atento de seu tempo que registra breves cenas da urbe: transeuntes
que falam sozinhos, menina chorando com seu desconsolo, encontros cotidianos
casuais que deixam de acontecer, adolescente na espera inquieta de alguém,
trechos de diálogos mal e mal escutados entre um ruído e outro da cidade.
Também, muitas vezes, os mutáveis contornos da cidade sob a chuva e o vento e a
paisagem cujas transformações o passar do tempo vai instaurando.
Porto
Alegre se desenha no esboço das lembranças e nos traços lavrados pelo presente.
Em “O arqueólogo do futuro”, Liberato Vieira da Cunha historia esses dois
tempos de um mundo que existiu e se foi perdendo no atropelo das mudanças. E
são elas que o privam de perceber a ronda
das estações: no florescer do flamboyant, o vermelho indicando o verão; no
cair das folhas da paineira, os galhos nus anunciam o outono; no rio, as águas
crispadas dizem do inverno; nas flores do jacarandá, a chegada da primavera. E,
também, lhe tiram um cenário feito da
imensidão do céu, na qual se inscreviam os telhados, os morros, as enseadas
do rio, os navios e as gasolinas. Sem que se desse conta, foi sendo sitiado pela
barreira de cimento e aço e não mais a visão do rio, não mais a luz do norte.
Veio-lhe, então, o medo de que, irreversivelmente, essa barreira se expandindo
sempre, roubaria os últimos territórios do céu e de verde, expulsando os derradeiros
pássaros, banindo, por descartáveis, as flores e a brisa e a grama que certa
manhã uma deusa pisou descalça. Também, outro melancólico presságio a
vislumbrar um futuro mais remoto em que o arqueólogo, ao encontrar nesse
desfiladeiro entre muralhas, cantigas de
roda e cadeiras na calçada e acordes de serenata,
tudo ignore por não atinar com a sua serventia.
Nessa
crônica, como nas demais que fazem parte de A Companhia da solidão (Porto Alegre, L&PM, 2000), o cronista
gaúcho erige o lirismo das perdas. Perda de uma cidade em que muitas casas se
esboroam para dar lugar ao moderno, aos modernosos
caixotes de aço e vidro [...], em que a obediência aos preceitos
alienígenas do bem viver prescreve a chegada do leiteiro, do verdureiro, do
padeiro à porta da casa e não concede lugar para o afiador de faca a oferecer
seus serviços com o apito de melodiosa
escala de sons e, tampouco, ao vendedor de puxa-puxa que anuncia o produto
com o toque de corneta.
Mas,
no destruir/construir do novo itinerário urbano, o cronista erige, igualmente,
a lírica dos achados. Quando se depara com um motorista de táxi que,
trabalhando quatorze horas por dia, decide que os loucos do trânsito não o irão
contaminar; quando é atendido por uma
jovem funcionária dos correios que atende a todos da longa fila, minuciosa e sorridente; quando é tranquilizado
pelo ascensorista que enfrenta a súbita falta de luz no elevador com um
monólogo de conversador nato, bem humorado, fluente, a própria voz da
tranquilidade. São anjos da guarda a
postos em meio ao caos de uma capital
sem alma, os define na crônica “Os anjos do caos”. Uma capital que,
todavia, possui o oásis de ruas tranquilas
e arborizadas que ainda resistem.
Numa delas, ao estacionar o carro na frente de uma casa pequena, na sua despojada simplicidade de porta e janela
, ele conta em “Travessia das idades” estar diante de um momento de ternura: a mãe, ensinando o filho a andar de triciclo,
mostra como por os pés nos pedais, como segurar o guidom, como desviar os
buracos da calçada e o cachorro da vizinha. Sucedem-se as idas e vindas entre a
mãe e a esquina da rua até esse instante
em que o menino travou, rindo do susto que tinha pregado num tico-tico
distraído e disse: -Mãe, como é bom ser criança. Liberato Vieira da Cunha,
segue o seu caminho pensando: que algum
dia aquele menino vai crescer, vai morar em avenidas ruidosas e sem árvores,
vai perder seu riso e o brilho do seu olhar, conhecerá a aflição e o medo, será
um animal urbano cronometrado, feito eu, feito todos nós. E lhe deseja esse
grande bem: o de poder reviver um momento feliz do passado e nele se aninhar
quando a vida se mostrar adversa ou triste.

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