domingo, 21 de novembro de 2004

Achados e perdidos


            É um olheiro atento de seu tempo que registra breves cenas da urbe: transeuntes que falam sozinhos, menina chorando com seu desconsolo, encontros cotidianos casuais que deixam de acontecer, adolescente na espera inquieta de alguém, trechos de diálogos mal e mal escutados entre um ruído e outro da cidade. Também, muitas vezes, os mutáveis contornos da cidade sob a chuva e o vento e a paisagem cujas transformações o passar do tempo vai instaurando.

            Porto Alegre se desenha no esboço das lembranças e nos traços lavrados pelo presente. Em “O arqueólogo do futuro”, Liberato Vieira da Cunha historia esses dois tempos de um mundo que existiu e se foi perdendo no atropelo das mudanças. E são elas que o privam de perceber a ronda das estações: no florescer do flamboyant, o vermelho indicando o verão; no cair das folhas da paineira, os galhos nus anunciam o outono; no rio, as águas crispadas dizem do inverno; nas flores do jacarandá, a chegada da primavera. E, também, lhe tiram um cenário feito da imensidão do céu, na qual se inscreviam os telhados, os morros, as enseadas do rio, os navios e as gasolinas. Sem que se desse conta, foi sendo sitiado pela barreira de cimento e aço e não mais a visão do rio, não mais a luz do norte. Veio-lhe, então, o medo de que, irreversivelmente, essa barreira se expandindo sempre, roubaria os  últimos territórios do céu e de verde, expulsando os derradeiros pássaros, banindo, por descartáveis, as flores e a brisa e a grama que certa manhã uma deusa pisou descalça. Também, outro melancólico presságio a vislumbrar um futuro mais remoto em que o arqueólogo, ao encontrar nesse desfiladeiro entre muralhas, cantigas de roda e cadeiras na calçada e acordes de serenata, tudo ignore por não atinar com a sua serventia.
 

            Nessa crônica, como nas demais que fazem parte de A Companhia da solidão (Porto Alegre, L&PM, 2000), o cronista gaúcho erige o lirismo das perdas. Perda de uma cidade em que muitas casas se esboroam para dar lugar ao moderno, aos modernosos caixotes de aço e vidro [...], em que a obediência aos preceitos alienígenas do bem viver prescreve a chegada do leiteiro, do verdureiro, do padeiro à porta da casa e não concede lugar para o afiador de faca a oferecer seus serviços com o apito de melodiosa escala de sons e, tampouco, ao vendedor de puxa-puxa que anuncia o produto com o toque de corneta.

            Mas, no destruir/construir do novo itinerário urbano, o cronista erige, igualmente, a lírica dos achados. Quando se depara com um motorista de táxi que, trabalhando quatorze horas por dia, decide que os loucos do trânsito não o irão contaminar;  quando é atendido por uma jovem funcionária dos correios que atende a todos da longa fila, minuciosa e sorridente; quando é tranquilizado pelo ascensorista que enfrenta a súbita falta de luz no elevador com um monólogo de conversador nato, bem humorado, fluente, a própria voz da tranquilidade. São anjos da guarda a postos em meio ao caos de uma capital sem alma, os define na crônica “Os anjos do caos”. Uma capital que, todavia, possui o oásis de ruas tranquilas e arborizadas que ainda resistem. Numa delas, ao estacionar o carro na frente de uma casa pequena, na sua despojada simplicidade de porta e janela , ele conta em “Travessia das idades” estar diante de um momento de ternura: a mãe, ensinando o filho a andar de triciclo, mostra como por os pés nos pedais, como segurar o guidom, como desviar os buracos da calçada e o cachorro da vizinha. Sucedem-se as idas e vindas entre a mãe e a esquina da rua até esse instante em que o menino travou, rindo do susto que tinha pregado num tico-tico distraído e disse: -Mãe, como é bom ser criança. Liberato Vieira da Cunha, segue o seu caminho pensando: que algum dia aquele menino vai crescer, vai morar em avenidas ruidosas e sem árvores, vai perder seu riso e o brilho do seu olhar, conhecerá a aflição e o medo, será um animal urbano cronometrado, feito eu, feito todos nós. E lhe deseja esse grande bem: o de poder reviver um momento feliz do passado e nele se aninhar quando a vida se mostrar adversa ou triste.

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