Para
seguir-lhe os passos nesses seus últimos dias de vida, em que, aparentemente
submissa a um cotidiano morno e regrado pelo ritual familiar, Delmira Agustini
escondia suas ânsias e paixões, Omar Prego Gadea se ampara em notícias de
jornal, em cartas, em testemunhas, em informes oficiais. Cria um itinerário
entremeado de sombras, os definitivos mistérios que envolvem a poetisa. Diante
deles, o romancista se vê impotente,deixando-se levar, no seu elaborar romanesco,
a suprir com a imaginação – enredada, no entanto, a todo esses documentos em
que se apoia – alguns vazios. Brinco de imaginá-los sentados em torno à mesa, diz numa das
primeiras seqüências de seu romance Delmira
( Montevideo, Alfaguara, 1996) ao recriar esses momentos em que o pai e a
mãe a esperam para o café da manhã para o qual ela se retarda ao passar mal as
noites desde que se separara do marido.
Nesse último encontro da manhã aziaga em que foi condenada à morte, Omar Prego
Gadea os descreve a partir das fotos: a do pai, que descobriu num velho baú, “vulgar
e resignado, [...], dando as costas
para um edifício que bem poderia ser o Hotel de Pocitos, a cabeça coberta por
um chapéu de feltro empinado, provavelmente verde ou cinza, o pescoço alto e
rígido, a mão esquerda apoiada numa bengala, como um cego absorto, o largo bigode
esparramado e ereto como se
sublinhasse o triste rosto de quem há tempo admitiu a derrota. Não mais
fixando trajes e gestos, a mãe que ele presume, excessiva, sempre alerta na sua função de sentinela dessa mulher condenada por ela a viver uma infância eterna [...]. E
Delmira, como aparece nos seus últimos retratos, já entrada em carnes mas
ainda bela [...].
Depois,
ao longo dos meandros de seu relato, vai se detendo nas imagens que o acaso ou
o desejo de preservar um instante passageiro, fixaram de Delmira: breves
retalhos de sua vida, salvos, ainda que por algum tempo, do desaparecimento.
Pelos
olhos do noivo que, em visita, a espera, na sala de sua casa, caminhando entre
os móveis se detém diante do retrato de Delmira ainda criança, o narrador a
mostra toda vestida de branco, os desafiantes olhos fixos na
objetiva. Umas páginas além, a partir de uma foto em que aparece já moça,
irá descrevê-la sentada num banco de
madeira pintado de branco, usando um chapéu de franja branca sob o qual o
seu cabelo parece negro e sombrio, uma ampla blusa decotada e uma saia pelos
tornozelos azul ou esverdeada para combinar, como ela gostava, com os seus
olhos. Tirada na chácara de um amigo, as flores claras e o céu azul altíssimo, transparente, sem nuvens, que lhe compõem o cenário, fazem crer ao
romancista que era verão ou primavera avançada e que era de poesias o livro que
Delmira tinha entre as mãos, absorta na sua leitura e alheia ao que se passava
a seu redor. Torna o romancista, em outra seqüência, a mencionar essa foto,
atribuindo-lhe uma data, 1913, acrescentando que foi publicada na revista Fray Mocho de 16 de maio e que nela
Delmira aparece sentada num longo banco branco
de madeira, lendo sob um inequívoco
sol de verão.
Esse
recurso de mencionar duas vezes a mesma foto, ocorre, igualmente, ao se referir à que foi tirada
num baile do Club Uruguay e à da cerimônia de seu casamento. Assim, o narrador
a descreve num primeiro plano, com uma fita no cabelo, de braço com seu
noivo [...], esperando o clique do magnésio. Está rodeada de outras
pessoas, que também fixam a câmara, salvo um jovem militar, em uniforme de
gala, que aparece de perfil com os olhos fixos na poetisa. Páginas antes, o
narrador falara dessa foto, publicada no jornal El Día, dizendo que em
primeiríssimo plano aparecem Delmira e seu noivo. Ele, pouco à vontade no
seu fraque, olhando para o vazio. Ela, vestida de branco, os esplêndidos
cabelos presos numa fita, olha para a
câmara e faz um gesto com o enluvado
braço direito como se cumprimentasse alguém. De perfil, um garboso militar .
Também,
em duas seqüências, se refere à foto do casamento. Primeiro, informando como
foi encontrada, quarenta anos depois, em meio aos documentos do espólio de
Delmira. Logo, a mencionar esses recortes que a adulteram, deixando vazios (o
noivo, a menina que segurava a cauda do vestido e as damas de honra) perto da
noiva, de sua mãe, de dois convidados e de seu irmão.Muitas páginas adiante, o
narrador observa, uma vez mais, como se
quisesse gravar essa cena para sempre
e poder voltar a ela sem ajuda alguma a fotografia oficial do casamento.
Nela, Delmira, com uma expressão indefinível
no rosto, de braço dado com o marido, ladeada pela mãe e pelo seu padrinho,
o poeta Juan Zorrilla de San Martín, é parte de um grupo onde todos estão
sérios e com expressões taciturnas, exceto Manuel Ugarte que, atrás dos noivos,
entre ambos, olha com arrogância e desafio para a câmara.
Como
as palavras inscritas em cartas no expressar de uma emoção, como as
outras, testemunhando fatos, ou aquelas pronunciadas
pelos que da poetisa guardam lembranças, os retratos de Delmira Agustini se oferecem
para esboçar o seu viver. Omar Prego Gadea, ao entrelaçá-los na história da
poetisa que relata no que sabe e imagina no que ignora, reitera a riqueza de seus
segredos na tentativa impossível de desvendá-los.









