domingo, 31 de dezembro de 2000

O retrato 2


            Para seguir-lhe os passos nesses seus últimos dias de vida, em que, aparentemente submissa a um cotidiano morno e regrado pelo ritual familiar, Delmira Agustini escondia suas ânsias e paixões, Omar Prego Gadea se ampara em notícias de jornal, em cartas, em testemunhas, em informes oficiais. Cria um itinerário entremeado de sombras, os definitivos mistérios que envolvem a poetisa. Diante deles, o romancista se vê impotente,deixando-se levar, no seu elaborar romanesco, a suprir com a imaginação – enredada, no entanto, a todo esses documentos em que se apoia –   alguns vazios. Brinco de imaginá-los sentados em torno à mesa, diz numa das primeiras seqüências de seu romance Delmira ( Montevideo, Alfaguara, 1996) ao recriar esses momentos em que o pai e a mãe a esperam para o café da manhã para o qual ela se retarda ao passar mal as noites desde que  se separara do marido. Nesse último encontro da manhã aziaga em que foi condenada à morte, Omar Prego Gadea os descreve a partir das fotos: a do pai, que descobriu num velho baú,  vulgar e resignado, [...], dando as costas para um edifício que bem poderia ser o Hotel de Pocitos, a cabeça coberta por um chapéu de feltro empinado, provavelmente verde ou cinza, o pescoço alto e rígido, a mão esquerda apoiada numa bengala, como um cego absorto, o largo bigode esparramado e ereto como se sublinhasse o triste rosto de quem há tempo admitiu a derrota. Não mais fixando trajes e gestos, a mãe que ele presume, excessiva, sempre alerta na sua função de sentinela dessa mulher condenada por ela a viver uma infância eterna [...]. E Delmira, como aparece nos seus últimos retratos, já entrada em carnes mas ainda bela [...].

            Depois, ao longo dos meandros de seu relato, vai se detendo nas imagens que o acaso ou o desejo de preservar um instante passageiro, fixaram de Delmira: breves retalhos de sua vida, salvos, ainda que por algum tempo, do desaparecimento.

            Pelos olhos do noivo que, em visita, a espera, na sala de sua casa, caminhando entre os móveis se detém diante do retrato de Delmira ainda criança, o narrador a mostra toda vestida de branco, os desafiantes olhos fixos na objetiva. Umas páginas além, a partir de uma foto em que aparece já moça, irá descrevê-la sentada num banco de madeira pintado de branco, usando um chapéu de franja branca sob o qual o seu cabelo parece negro e sombrio, uma ampla blusa decotada e uma saia pelos tornozelos azul ou esverdeada para combinar, como ela gostava, com os seus olhos. Tirada na chácara de um amigo, as flores claras e o céu azul altíssimo, transparente, sem nuvens, que  lhe compõem o cenário, fazem crer ao romancista que era verão ou primavera avançada e que era de poesias o livro que Delmira tinha entre as mãos, absorta na sua leitura e alheia ao que se passava a seu redor. Torna o romancista, em outra seqüência, a mencionar essa foto, atribuindo-lhe uma data, 1913, acrescentando que foi publicada na revista Fray Mocho de 16 de maio e que nela Delmira aparece sentada num longo banco branco de madeira, lendo sob um inequívoco sol de verão.

            Esse recurso de mencionar duas vezes a mesma foto, ocorre,  igualmente, ao se referir à que foi tirada num baile do Club Uruguay e à da cerimônia de seu casamento. Assim, o narrador a  descreve num primeiro plano, com uma fita no cabelo, de braço com seu noivo [...], esperando o clique do magnésio. Está rodeada de outras pessoas, que também fixam a câmara, salvo um jovem militar, em uniforme de gala, que aparece de perfil com os olhos fixos na poetisa. Páginas antes, o narrador falara dessa foto, publicada no jornal El Día, dizendo que em primeiríssimo plano aparecem Delmira e seu noivo. Ele, pouco à vontade no seu fraque, olhando para o vazio. Ela, vestida de branco, os esplêndidos cabelos presos numa fita, olha para a câmara e faz um gesto com o enluvado braço direito como se cumprimentasse alguém. De perfil, um  garboso militar .

            Também, em duas seqüências, se refere à foto do casamento. Primeiro, informando como foi encontrada, quarenta anos depois, em meio aos documentos do espólio de Delmira. Logo, a mencionar esses recortes que a adulteram, deixando vazios (o noivo, a menina que segurava a cauda do vestido e as damas de honra) perto da noiva, de sua mãe, de dois convidados e de seu irmão.Muitas páginas adiante, o narrador observa, uma vez mais, como se quisesse gravar essa cena para sempre e poder voltar a ela sem ajuda alguma a fotografia oficial do casamento. Nela, Delmira, com uma expressão indefinível no rosto, de braço dado com o marido, ladeada pela mãe e pelo seu padrinho, o poeta Juan Zorrilla de San Martín, é parte de um grupo onde todos estão sérios e com expressões taciturnas, exceto Manuel Ugarte que, atrás dos noivos, entre ambos, olha com arrogância e desafio para a câmara.

            Como as palavras inscritas em cartas no expressar de uma emoção, como as outras,  testemunhando fatos, ou aquelas pronunciadas pelos que da poetisa guardam lembranças, os retratos de Delmira Agustini se oferecem para esboçar o seu viver. Omar Prego Gadea, ao entrelaçá-los na história da poetisa que relata no que sabe e imagina no que ignora, reitera a riqueza de seus segredos na tentativa impossível de desvendá-los.




domingo, 24 de dezembro de 2000

O Retrato 1

            - A doutora Maria Cristina esteve aqui, conversou com a avó, cascavilhou papéis velhos, cismou com um retrato, e foi embora sem me dar importância! É a queixa de Nozinho para a sua tia Dona a quem vai visitar para, com ela, entrelaçar lembranças do passado. Dona, já velha, poço em que estão mergulhadas as histórias da família que ela, diante de quem deseja fazê-las emergir, se  nega a contar.  Ao ouvir as palavras do sobrinho sobre esse retrato de que fala, Coisa muito antiga. de um casamento que se realizou em 1908, se obriga a perguntar de quem foi e a resposta a deixa perplexa quando percebe que a menção ao noivo, que fora seu primeiro namorado, a possa perturbar. Nozinho não lhe nota o susto e continua a falar do retrato que ela conhecia tão bem, pois o olhara muitas vezes, motivo para poder reconstrui-lo, porque o outro, o principal, era a emoção de reviver essa tarde festiva de um sábado já ido.

            Assim, pela palrice de Nozinho e pelo que aflora à mente de sua tia Dona, a foto renasce nas  palavras ditas e nas que foram caladas. Em torno dela, serpenteia o relato pela voz de Nozinho, ao contar à tia o que diz Maria Cristina e pelo que, a partir de suas palavras, a tia imagina. Ao ver todo o grupo de gente que foi ao tal casamento,  Maria Cristina notou os cabelos louros e lisos da avó, presos atrás da orelha por uma fivela. Elogiou o bem vestir das mulheres (os vestidos parecem brancos, com  blusas de folhos franzidos), todas bem penteadas  (os bandós bem assentados ao lado das cabeças) e, curiosa, perguntou muito, se fixou em detalhes, deixou de reparar em outros, alegrou-se ao descobrir a figura do avô. De repente, mudou. Ficou séria. Fez silêncio e encarou a avó. É o que diz Nozinho a sua tia Dona. Menciona que todos riram muito diante da figura de um parente ameninado e desengonçado, repetindo o que disseram, o que significa ter ela visto a foto junto com outras pessoas além da avó: que ela achou tudo muito bonito. No parágrafo seguinte, Dona passa a lhe imaginar os gestos e as reações, a segurar o retrato  e olhar, fascinada, para a figura de um homem que parece ocupar um espaço maior do que os outros. Embora enxergando bem, pede a lupa e mais a imagem se agranda, mais impressão lhe causa. Ela repara, observa, atenta, nota, e a figura vai se completando, no descrever, detalhado da roupa, no desenho dos gestos, no rápido traçar do rosto e da expressão. E concluiu que ele fora surpreendido em momento de elegante inquietação – ao contrário das outras pessoas do grupo, que posam obedientes e abestalhadas, olhando de frente para a máquina fotográfica. Mas Dona também imagina que Maria Cristina tampouco deixou de vê-la, no retrato, em que se mostra imóvel e hesitante, no assombro que os gestos do audacioso cavalheiro lhe causava. E se descreve no olhar que a observa: a testa, o nariz, a boca, o queixo, o meio-riso complacente e o penteado e o vestido branco de cambraia, enfeitado por um lenço escuro e severo. Então, retorna a essa tarde de sábado em que foi retratada com o grupo,  entre o querer fugir e o se deixar fotografar, parada, com os olhos no homem, extasiada, e como ele , rebelde à ordem de olhar para a máquina, ao se fixar na  sua nuca altiva, coberta de cabelos lisos e escuros, adivinhando a intensidade de seus olhos cor de um azul próximo ao anil, que não herdara dos Correa de Araújo (nessa família, eles se faziam sempre claros, celestes, meio aguados, bem diferentes dos dele, firmes, intensos, inquietos, desafiadores). Olhos que não furtavam cor como os de Antônio Cavalcanti: eram definitivos.  Ao constatar a beleza de um rosto perfeito, curioso, inquisitivo,  acrescida de rara elegância no vestir: o corte perfeito da roupa e a camisa alvíssima e a gravata borboleta e  o correntão de ouro . O Major Manuel Henrique, informa a  avó Agripina para a neta, acrescentando ter sido o  homem mais elegante que conheceu. Maria Cristina ainda se maravilhando, exclama: -Vejam como se destaca do grupo! Parece um príncipe! Por que estará segurando a gola com tanto esmero? Mas, ninguém, entre os que a rodeavam, saberia  lhe responder. Como também ficou sem resposta a identidade da moça magra que aparecia de perfil. Porque Dona, embora sabendo-se detentora, a única, do significado do gesto que provoca a pergunta não se presta à confidências. E Nozinho, ainda que pense ser da tia Dona o perfil enquadrado no umbral da porta, nada diz, reiterando: Ela não me deu a devida atenção à minha pessoa. Silêncios a povoar de ausências, para os que desejam desvendá-la, essa imagem reencontrada que, no entanto, se revela ao leitor por um desses recursos formais (tempo, vozes, zonas de sombra que se misturam) que tão prodigamente constróem a narrativa de Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque para fazer deste seu segundo romance (Luz do abismo, Recife, Bagaço, 1996) um rico e sinuoso tecer de histórias..

domingo, 17 de dezembro de 2000

Os espelhos da alma

            São histórias reais, são personagens reais que lhe motivam o narrar. Com maestria, entrelaça o tempo, as vozes, os episódios num dizer escorreito que se enobrece com imprevistas e expressivas invenções. Breves histórias se sucedem, se precisam perfis. Uma galeria de seres submissos às emoções e às próprias verdades que se mostram pelos seus quereres e pelo seu sentir na longa história das famílias que Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque  - É outra contadora de histórias. Deseja ser poeta -  redime da aridez de uma árvore genealógica e do esquecimento em Luz do abismo, que a Bagaço, de Recife, publicou em 1996. Um romance de personagens  que Dona e seu sobrinho Nozinho, os dois interlocutores guias da narrativa, fazem renascer das suas lembranças. Obedecendo a esses modelos, enraizados num ou noutro ramo da família – os Cavalcanti,  de pele muito branca e de cabelos e olhos escuros ou de pele menos alva e os olhos mais claros, esverdeados ou furta-cor e os Correa de Araújo, alvos e de olhos de um azul claro, ou miúdos e escuros – ao destacarem, um deles, de seu grupo, quase sempre, as referências ao tipo físico são preteridas pelas palavras que pronunciam, pelos gestos, que esboçam, pelas situações em que se envolvem. Longos são, muitas vezes, os monólogos a conduzirem a narrativa onde as descrições se fixam em algum detalhe para definir um tipo: Nezinho Jaca, sempre bonachão; Sinhazinha, engraçada, meiga, quase doce; Antônio, dono de uma bela barba bem talhada e brilhante, lisa, lustrosa e acastanhada; Maria Cristina, de mãos  desabrochadas, plenas, investidas de gestos majestosos, alvas, longas mãos de uma santa, místicas, altivas, dramáticas. Neles, os gestos e os atos e as situações – Chiquinha a expulsar o marido de casa; Pedro, tentando matar os filhos para então, se suicidar; Sinhô e Sinhozinho, se enfrentando num duelo; as noivas, esperando o amanhecer para dar conta da troca dos maridos; os desacertos, por  doações de terras – refletem não só  temperamentos e visões de mundo mas as próprias leis que regem esse mundo.

            Porém, o que, deveras, diz melhor dos personagens são seus olhos e o seu modo de olhar.  Mostram-se como são: os olhos azuis de Dona e de Isabel, os olhos irrepreensivelmente azuis do filho de Joaquim, os olhos de Joaquim, cujo azul muito estranho, lhe rendeu o apelido de Guabiraba porque só na sua flor é que Bentinha encontrou a nuança comparável à cor de seus olhos e nos inusuais tons de alourados e dourados. Ou como se tornam quando à mercê de um sentir:  vazios, baços, profundamente tristes, brilhantes, expandindo e clareando a seu redor, capiongos, indagadores, embaciados, pedregosos, duros como caroços secos, engastados em órbitas poderosas. E, belamente cambiantes, cristalizando sentimentos como ao relembrar um acontecimento do passado que, de aparente drama, passou à comédia, os olhos de Maurícia, agateados, cintilavam sem furtar a cor. Assim, agateados furtavam cor, comandados pela emoção, os de seu filho Antônio que ficam  acinzentados quando embrabece, numa discussão, e faíscam como se estivessem dourados. E há quem os tenha secos, brilhando excitados; quem os tenha gozados, tremeluzindo em tons de prata e mel; quem fale com firmeza enquanto medo e insegurança lhe nadam nos olhos escuros; quem, morrendo, caído no chão, os tenha citrinos, cintilando de espanto; quem sofrendo, intensamente, os tenha secos e ásperos como nunca.  E, expressando toda uma gama de emoções,  o olhar. Um olhar que se define por adjetivos ( curiosos, enigmático, sereno e direto, mortiço, brilhante, inquieto, feito de entusiasmo e ingenuidade) que, embora prosaicos, se enriquecem num entrelaçar lírico do relato como o adjetivo cristalino, atribuído ao olhar de Sinhazinha, morta aos dezessete anos ao lhe nascer o primeiro filho: Feia não era, nem havia em seu olhar cristalino qualquer prenúncio de tragédia; um olhar cujo matiz é dado por um verbo, como na seqüência em que a narradora ouve a história das noivas trocadas, contada pela avó e percebe que, finalmente, irá conhecer o motivo secreto daquele riso esguio e malicioso que lhe aloirava o olhar. O mesmo verbo, usado em outro momento do relato em que, após a discussão com seu filho, na cadeira de balanço, ela se embala ancha, satisfeita da vida, agora descuidada do rubor de satisfação que lhe coloria as faces, e da luminosidade que vadiava em seus olhos, aloirando o seu olhar. Um olhar que o adjunto adnominal determina: ao perder a mulher que lhe dera nove filhos, o sofrimento de Pedro é comparado à mesma agonia prateada de um peixe subitamente arrancado do riacho se estampa em seu olhar de cascalho e mica.

            Olhos e olhares, descobrindo segredos e caracteres num texto de suma beleza como na seqüência em que a narradora lembra seu primo Pedro, casado com Táti. Eram muito diferentes os dois, Táti e Pedrinho. Ela encarava o mundo com os olhos  úmidos de comiseração. Ele deixava-se levar pela amargura, que fustigava seus olhos pedregosos e secos. Não sei mesmo onde foi que Pedro foi buscar aqueles olhos pétreos. Em Antônio não foi, pois ele os teve sempre agateados, brincalhões, quase maliciosos – florentinos. Nem em Dona, que sempre se enfeitou com seu doce olhar desbotado. Fico pensando que a fonte de sua secura foi o seu próprio nome, ou – a despeito das terras do brejo – os espinhos esturricados das caatingas que se alastram pelo lugar onde nasceu. Contudo, apesar de carentes de frescor, seus olhos secos tinham brilho. Tremeluziam como as cintilações do cascalho e da mica em que foram esculpidos. Uma luz prateada – agonia de um peixe sob o sol – escondia-se, contida, entre as duras lâminas da rocha. Nunca choraram. Espelhos da alma que somente a maestria estilística e o conhecimento profundo das almas permite revelar. Itinerário que Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque é exímia em percorrer.

domingo, 10 de dezembro de 2000

O valor das coisas


            No intrincado refazer de uma genealogia em que duas famílias se unem e se desunem em laços e nós comandados por interesses e por conveniências, eventualmente, por afetos, como breves ilhas, emergindo num caudal de nomes e sobrenomes e parentescos, textos exemplares de um lirismo que vai além do traçado de um perfil para mostrar seres humanos nas suas emoções mais sentidas e verdadeiras.

            O relato de Luz do abismo (Recife, Bagaço, 1996), desrespeitoso pelas leis do tempo, reconstruindo fatos através da memória, de vozes que se alternam, se ilumina, então, ao se deixar ir pelos caminhos das sensações, como preconiza Dona, a principal narradora, em vez de guiar-se pela inteligência. Assim, as seqüências dedicadas ao xale de casimira da Índia. Sua dona foi Maurícia, uma das matriarcas da família que, segundo um dos filhos, foi uma mulher teimosa e imprevisível. Já velha e com o lado do corpo paralisado por uma congestão, não se privava das visitas aos parentes. Fazia-se carregar por quatro negros numa rede e protegida por uma enorme sombrinha, chegava com chá de erva doce, sequilhos, bolos de goma, beijus, beiras-secas, castanhas e passas que oferecia ao parente visitado. Num dia de inverno, chega na casa de um dos filhos com o aparato de sempre e envolta no seu xale de casimira da Índia. Sua neta, Dona, muitos anos depois, o descreve como uma peça antiga, com seus ricos matizes de cores um pouco gastos. Uma penugem esbranquiçada largava-se pelo tecido, esmaecendo a estamparia, composta de rosácea, em vários tons de rosa e roxo, sobre um fundo acinzentado que dava ao olhar apenas a impressão de ser velha e aconchegante. Mas, o aproximar-se dele, e então o relato assume uma primeira pessoa plural, permite aspirar-lhe o cheiro de lã, guardada em cedro e perceber detalhes: medalhões dourados, muito rarefeitos, salpicados com sábia parcimônia por entre as rosáceas desbotadas. As palavras que seguem, se afastam do traçar cores e formas para anotar  as vibrações que dele emanam, advindas das emoções que absorve e que ele é incapaz de armazenar: essas lembranças no tênue entrelaçamento de sua lã à espera que a memória de alguém lhe resgate as cores e os sentimentos do passado. Palavras que tornarão a aparecer, mais adiante, quando a avó, em meio a uma história que estava contando, embrulha as mãos friorentas e reumáticas no velho xale. E a narradora torna a defini-lo e a estabelecer com ele seus liames de afeto: Denso de lembranças entranhadas em seus fios, com um perfume abstrato, suas cores antigas pareciam esperar o merecido resgate. Voltando a sentir o seu cheiro de lã velha, guardada em cedro, me comovi.

            Mas, os anos, as mortes, os direitos de posse no parentesco entrelaçado, acabaram por apagar o itinerário do xale que torna a aparecer, já desbotado, velho, com a penugem prestes a se soltar. Porém, aos olhos que o haviam visto outrora, ele continua habitado por lembranças, à espera de redenção. Nesse dia, que a narradora precisa ser lá pelos anos de 1947, envolve a criança adormecida no colo da mãe, sentindo o gosto do doce de leite que o bisavô lhe havia posto na boca. Os  olhos que lhe observam o rostinho, se dão conta do bem-estar e da felicidade que está sentindo e que o xale a reverbera,  resgatado  na lembrança que , por certo, irá perdurar na criança que mal o percebeu, entre o gosto do doce e o cheiro de coisa limpa. A criança é Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque,  autora  do romance e que dá a sua voz para Dona, a narradora, assim como lhe concede essa bem-aventurada lembrança para que a velha parenta a cristalize junto com as da sua própria meninice. Um recurso narrativo a envolver vivências que se entrecruzam, tendo de permeio, gerações e que, a par de outros que a habilidade da romancista enriquece com o inventivo uso de expressões, constroem uma obra instigante e bela e pontilhada de matizes líricos. Um excepcional momento da ficção brasileira. Desde que as leituras, no país, não optassem, como é de hábito, pelas traduções do que se lê no hemisfério norte como o demonstram, sempre, as listas dos “mais vendidos”.

domingo, 3 de dezembro de 2000

Pequenos nadas

            Em 1986, Laury Maciel publicava o seu primeiro romance, Noites no sobrado. Até então, fora autor de contos, reunidos em 1977, no livro Corpo e sombra e, cinco anos depois, em O homem que amava cavalos. Seguiram-se, ainda, A noite do homem-mosca  e Rosas de papel crepom, um romance ambientado em Mundo Novo, pequena cidade interiorana  onde, também, se abrigam os personagens de Pedra dos anjos,  que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba de lançar. Um espaço apenas mencionado porque neste último romance de Laury Maciel o que realmente conta é o personagem narrador e o seu drama de existir. Um drama que, em efeito, se faz de pequenos nadas que ele alimenta para transformar em sofrimento.

            Ao iniciar o seu relato, já a vida passou e o que poderia tê-lo feito feliz, ele mal percebeu, submisso a seus ciúmes e à incapacidade de assumir a própria vida. Diante do jardim de sua casa, invadido pela erva daninha, pelas aranhas, formigas e lacraias, destroçando o que foi o seu universo, e dono de seu tempo, recorda o passado no qual importa, apenas, o que viveu com Patrícia Emília. Primeiro, a menina adolescente, depois a noiva, logo a mulher. É através de seus olhos, presos naquela divina criatura, que ela emerge da narrativa em verdadeira sinfonia de delicadezas: pequeninas mãos, castos joelhos, pernas imaculadas, pezinhos muito brancos, belo rosto pálido, cabelos loiros. O mesmo olhar que lhe completa os contornos, vislumbrando-lhe uma sensibilidade a flor da pele que ordena lágrimas e soluços, explosões de ternura, a palidez doentia, os vincos fundos das faces e, sobretudo,  a mostram dúbia e indecifrável. Porque o narrador, inseguro e confuso, fechado nas suas razões, lhe atribui sentimentos, lhe interpreta os gestos e a rodeia de suspeitas e desconfianças que se aninham na sua alma quando Patrícia Emilia elude um convite para o cinema ou para um enlace amoroso, quando sonha com Octávio, o amigo compartilhado ou lhe prepara doces ou lhe tricota agasalhos ou fica alegre com suas cartas ou triste na sua partida. Ela, pressentindo-lhe as perguntas não formuladas, as friezas inexplicáveis, sofre, ainda, a humilhação de não apenas ser acusada em carta anônima de traição mas, sobretudo, de constatar que o marido lhe dera crédito. Tenta lutar contra o vazio que se instala a seu redor mas é vencida pela tristeza e se deixa morrer. Com ela morrem os amores-perfeitos do jardim e, se houve, algum segredo seu. Pois  a verdade, não é deslindada nesse narrar feito de pequenos nadas: uma flor seca a cair, se desfolhando, os segundos em que dura um olhar, uma entrega inocente, sem culpas, o inesperado aprendizado do amor, a alegria da carta recebida ou o temor de recebê-las e o sempre renovado medo de ser feliz a se alimentar de falsos ou reais indícios que o ciúme inventa.

            É um livro cruel diz Maurílio, o narrador, sobre Dom Casmurro que tentava ler e em cuja leitura, uma tarde, mergulha sem mais razões. O romance que, um dia, fora assunto de conversa entre Patrícia Emília e Octávio que chega,  interrompendo a visita que ele fazia à namorada. E’ sob sua égide que se esboça o triângulo amoroso no embaralhar de indícios de uma infidelidade que o ciúme, ora a constatar ou a inventar, faz emergir. Esse confessado preito à obra prima de Machado de Assis mostra um Laury Maciel muito firme e muito convicto na arte de romancear, sem medo de enveredar por trilhas conhecidas porque sabe inová-las e oferecer um percurso prazeroso e pontilhado de emoção.
 

domingo, 26 de novembro de 2000

O indescifrável

            Na capa, uma boneca. Tem o rosto de porcelana e está vestida com uma saia de cetim branco e uma blusinha de renda. Rendadas, também, são as meias. O cabelo, ondulado e de um loiro baço é enfeitado com uma fita. As faces são rosadas, os olhos azuis e os lábios, entreabertos  fazem de sua fisionomia, algo de levemente risonho, de levemente indagador. Enquadra-se num retângulo negro que se sobrepõe a outro,de um ligeiro tom róseo onde constam o nome do autor, Omar Prego Gadea e em letras menores, Delmira, o título da obra. Na vertical, o nome da Editora, Alfaguara, sobre o seu logotipo de linhas  onduladas.

            Publicado no Uruguai, em 1996, esta obra de um experimentado autor de contos, romances e ensaios, se inscreve no interesse instaurado, já há alguns anos, que, se enlaçando num personagem da vida real, elabora, sem fugir aos inegáveis fatos que o conduziram, uma obra de ficção.

            No caso de Delmira Agustini, os mistérios que a envolveram ou em que se envolveu, são, verdadeiramente, instigantes e passíveis de  muitas indagações. Nos ensaios escritos sobre ela não é raro constar a menção ao seu inexplicável talento poético precoce  assim como a crueldade de sua morte aos vinte e sete anos.

            Os inegáveis fatos: Delmira Agustini nasceu, na cidade de Montevidéu no dia 24 de outubro de 1896,  numa família de classe média acomodada. Depois de cinco anos de noivado, se casa com Enrique Job Reyes, dele se separando antes que tivessem se passado dois meses da cerimônia que os unira. Porém, continuou a vê-lo a sós, na casa de pensão onde ele se abrigara e no dia 6 de julho de 1914, foi por ele assassinada.

             Em Delmira, Omar Prego Gadea  lhe retoma os últimos dias de vida nos seus sinuosos passos agitados e os ancora numa ficção que, a semelhança da realidade, se mostra plena de interrogações.     Sob a tutela de um texto de Jorge Luis Borges ( Mais interessante ainda que o empenho de abreviar e estender o tempo é o de embaralhar o passado e o futuro) o relato vai-se construindo nesses conhecidos enunciados em que um fato já ocorrido é apresentado como algo que irá se realizar como no melhor estilo de Gabriel García Márquez de Crônica de uma morte anunciada ( No dia em que ia ser assassinada, o 6 de julho de 1914, Delmira Agustini saiu de seu quarto em meio da manhã ...) e em múltiplos retornos ao passado. Um relato feito de muitas vozes que se acrescentam à do narrador como as de Zum Felde, Giot de Badet, Aurora Curbelo Larrosa,  Martín Lopez que, tendo privado com Delmira Agustini, oferecem valiosos aportes a essa história que, alimentada pela imaginação do narrador e pelos numerosos documentos consultados, não se deixa deslindar porque nem uns nem outros resultam suficientes para completar essas zonas de sombras que interrompem o fio narrativo. Uma delas é a maneira como justificava Delmira Agustini a seus pais, as repetidas horas de ausência em que saía de casa para se encontrar com o homem com quem se casara e que repudiara, fugindo de casa. O avô do narrador, por ele inquirido a respeito, uma vez que havia sido contemporâneo de Delmira Agustini, responde que era algo impossível de saber e que essa era uma das muitas partes impenetráveis da história.

            Assim, embora tenha consultado o que sobre Delmira Agustini se escrevera na  época,  e tido entre as mãos o seu espólio, muitos anos esquecido num velho baú de uma antiga casa,  e consultado os autos oficiais referentes a seu divórcio e a sua morte, o narrador parece se inclinar diante do conselho dado por um amigo, em Paris, sobre o que deveria fazer em relação ao material que  reunia, visando a elaboração de uma tese: um romance no qual não se esboçassem os limites entre a ficção e a realidade. Um romance, diz-lhe o avô no qual episódios sejam inventados, outros  se modifiquem, onde as datas se  confundam. E assim – até porque  um tal romance  nem poderia ser  construído de outro modo – foi feito. As interpretações, as reflexões, as suposições elaborando-se  a partir das notícias de jornal, das cartas que Delmira Agustini escreveu ou que lhe foram enviadas, das fotos, das  incerteza de lembranças guardadas pelos que a conheceram e que o passar do tempo diluiu entremeando-se às cenas com que a inventiva ficcional procurou desfazer lacunas na busca de uma verossimilhança que, a priori, reconhece como inatingível nesse encaminhar-se de Delmira Agustini para a morte.

             E um indecifrável destino de  mulher se esboçou, iluminado pelo tecer habilidoso do texto de Omar Prego Gadea, ainda que ele se tenha  rendido às sombras que o rodeiam.

domingo, 19 de novembro de 2000

Nas margens. 2


O contorno do cais, a silhueta das pessoas, a leve ondulação de proas vermelhas, as redes coloridas, o banzeiro que despejava na praia dejetos oleosos, os mendigos estonteados pela luz do dia, as nuvens imensas, nômades no espaço, a floresta escura que se oferecia à visão, tudo parecia adquirir espessura, movimento, vida. Miltom Hatoum.
           

            Não são embates com a natureza, mas aqueles travados entre os membros da família que, sinuosamente, conduzem a trama de Dois irmãos, romance de Milton Hatoum, publicado, neste ano pela Companhia das Letras.

            Num belo sobrado de Manaus, pintado de verde escuro, os personagens se ligam pelo amor e pelo ódio. Muito perto, a floresta e o rio, percebidos por Nael, o narrador. Filho de Dominga serva ou escrava  e outras palavras não cabem para designar sua mãe, índia catequizada, oferecida pelas freiras do orfanato para Halim e Zana que se criou, miúda e esmirrada, nos fundos da casa e trabalhou, sem horário e sem dias de descanso a vida inteira, é o espectador do que se passa. Quando tudo já tem  a marca do passado, irá contar o que viu e o que soube e o que escutou. Também o que percebeu além dos momentos de emoção e de rancor dos moradores do sobrado à sua volta: a pujante natureza em que se encrava a cidade nas margens do rio. Uma floresta apenas mencionada mas presente tanto quanto o rio com seu enxame de canoas e grandes cargueiros e canoas cobertas de palha, e barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés. Ela marca o contorno de um cenário tropical no intenso sol do Equador, no ar úmido, no anoitecer morno, nessas nuvens imensas, inertes, como uma pintura em fundo azulado que, sobretudo, irá se mostrar na flora e na fauna, nos tipos humanos e nos seus pobres afazeres. São as mangueiras, os oitizeiros, o apuizeiro, os açaizeiros, a muirairanga, o mururê, as seringueiras, o jatobá, os jambeiros, povoando percursos do olhar ou do olfato ou desse toque milagroso das mãos que esculpem. São os peixes do rio, o tucunaré, o pacu, o matrinxá, o curimatã, o surubim, a piranha, o caju, o pirarucu num som desse tupi esquecido, povoando a mesa, espalhando odores que a brisa do rio traz junto com o cheiro das frutas e da pimenta. São os pássaros – os sais-azuis, os saurás, as batuiras e as jaçanãs, os japiins, as ciganas, os patos selvagens, o mambuaçu, o saracuá, o urumutum – voando, cantando, piando, empoleirados nos galhos, fazendo barulho ou a roçar os frutos maduros e as águas escuras do rio. No ar, o cheiro da folhagem úmida, dos cachos de frutas das palmeiras, das jacas maduras. Na brisa do amanhecer, o cheiro da floresta ainda sombria, o perfume do cupuaçu e o das folhas grandes da fruta-pão e o das açucenas brancas. Todo um universo em uníssono que se completa no traçar efêmero de “figurantes” como o vendedor de pitomba e sapoti, um velho de rosto de bronze que atravessava o século, vendendo frutinhas, surrupiadas de terrenos baldios e quintais de casas arruinadas que possui, no romance, uma dupla função: a de completar o perfil de Domingas e a de apontar um, entre tantos, que piavam de pobreza, pertencentes a esse mundo escondido, ocultado, cheio de seres que improvisavam tudo para sobreviver [...], pululando às margens do rio: carroceiros, carregadores, pescadores, catraieiros, bucheiros num rude comércio de frutas e de peixes e miúdos e vísceras, trabalhando num contínuo recomeçar que mal lhes traz algum proveito.

            Mundo miserável que se oferece aos olhos de Nael. Lúcido, o percebe nesses pedaços da cidade que não vemos ou não queremos ver. Curiosa constatação expressa na primeira pessoa plural a englobar, então, essa outra  classe – a que ignora, que despreza, que marginaliza e se acredita isenta de culpas ou de responsabilidades – à qual  ele pertence à meias na sua condição de filho sem pai, mais ou menos reconhecido pelo avô e existindo para a avó, apenas, como um rastro dos filhos dela.

            E é assim que esse Brasil longínquo e desconhecido – há um tácito não querer vê-lo pois o olhar dos brasileiros se orienta, expectante e feliz para o norte do rio Bravo –  emerge  das páginas de Dois irmãos e chega no sul. Um traçado que, talvez, seja mais forte do que os desejos e as perdas de seus personagens, dos  seus itinerários plenos de percalços desastrosos que Milton Hatoum, no seu domínio das palavras, faz belo e comovente.

 

domingo, 12 de novembro de 2000

Nas margens. 1


       O romance amazônico é, desde o nascedouro, um romance telúrico, paisagístico, ao mesmo tempo que social. Em todo ele, seja qual for o autor, além do quadro físico, que é o fundo de tudo, encontramos a história do homem nas suas desventuras, nos seus anseios, nas experiências ásperas da vida, na aventura genésica do seu conflito com a natureza. Arthur César Ferreira Reis.
 

            No capítulo “Ciclo nortista” de A Literatura no Brasil (direção de Afrânio Coutinho), considera Peregrino Júnior que os surtos de literatura regional na Amazônia foram quatro, sendo  que ao primeiro, marcado pela influência do Naturalismo, pertencem as obras de Inglês de Souza. Quando ele ainda cursava o quarto ano da faculdade de Direito, no Recife, escreveu  O cacaualista,

publicado, em Santos, em 1876: a história da decadência da propriedade rural no Baixo-Amazonas. O foco narrativo é centrado em Miguel, jovem proprietário de um bonito sítio em que se plantava o cacau e se criavam algumas cabeças de gado, limitada indústria de um proprietário pouco laborioso. Órfão de pai, passa os seus dias na caça e na pesca, isento de responsabilidades. Mal tem dezoito anos quando percebe as invasões de suas terras pelo vizinho, o tenente Ribeiro. Move-lhe um pleito judicial que acaba perdendo, como perde, igualmente, para um forasteiro, a mão de Rita, a filha de seu desafeto.
 

            Ainda que a ficção nortista seja sempre profundamente relacionada com a natureza, constituindo-se o centro da narrativa, nesse romance de Inglês de Souza aparece, apenas, em breves notas. No entanto, se constitui uma presença cujas relações com os homens é inegável. Logo, nas primeiras linhas do romance o autor se refere à casa da fazenda situada bastante afastada do porto, por causa das enchentes, tendo de um lado o campo a perder de vista e o cacaual servindo de limite com as outras propriedades. Algumas páginas depois, o cacaual à noite, com o sibilar das cobras e o uivo da onça. Freqüentemente  mencionado, o canto dos pássaros – a saracura, a guariba, os papagaios, as ciganas, os japiins ou o grito agoureiro do acauã  – se insinuando no viver dos homens tanto como os carapanãs, insetos malfazejos e as colmeias de marimbondos nos cantos da casa. E o rio. Via que permite vencer o isolamento em que vivem os habitantes de suas margens. Daí as diferentes canoas de todas as formas e tamanhos que trazem e levam  as visitas e, eventualmente, “os foliões” do Divino, com sua bandeira onde figura uma pomba e um bombo que aportam pelas propriedades ribeirinhas onde cada família é dona de seu porto, para pedir esmolas. Os donos da casa distribuem moedas  e servem cachaça e as crianças se agrupam em torno da bandeira e do instrumento musical. E é do rio que tiram a água para as necessidades da casa, supridas com as cuiambucas que os moleques, se metendo na água até a cintura, carregam para casa. Também é no rio o banho, ritual cotidiano não isento de um sentido prazeroso  nesse deixar-se ficar na água, nessa travessia a nado, nessas brincadeiras da meninada.

 Nas margens, os pequenos proprietários, isento de um querer, se deixam viver no marasmo e na pobreza. Inglês de Souza fixa seus tipos humanos, o modo como se vestem, do que se alimentam, como se divertem e no que acreditam, desenhando um outro Brasil, plantado entre as árvores e o rio. Quando, porém, os personagens chegam a Óbidos, situada às margens mais estreitas do Amazonas, para resolver o pleito das terras, o que irá decidir a balança da Justiça é o falso testemunho, é a vontade do poderoso. Tombam, então, todas as diferenças e se reafirma, inalterável e perene e tudo leva a crer, indestrutível, o perfil nacional.

domingo, 5 de novembro de 2000

Sombra e luz nos campos

            Antes de que fosse publicado em livro (1896), na Argentina, o Facundo de Domingo Sarmiento onde, magistralmente, é descrita a figura do vaqueano, Apolinário Porto Alegre lhe fixa o perfil no seu romance de 1872, O vaqueano. Se na obra do ensaísta argentino é um capítulo que,  em detalhes, registra esse tipo humano das campanhas, na ficção do escritor gaúcho, poucas linhas são suficientes para apresentá-lo ao leitor: [...] jamais houvera rio-grandense que, como ele, conhecesse a Província. Não lhe escapava uma jeira de terra, ainda mesmo perdida nos ínvios sertões ou em banhados de largo perímetro. Tinha a memória fiel até para as nugas locais. Era uma verdadeira vocação. Seu calendário de nomes abraçava do capão sumido na campina à restinga do mato ou arroio de exíguos cabedais. Constituía, de per si, o mais exato arquivo fotográfico, um mapa vivo e pitoresco. De nome José Avençal é a figura principal, no sentido que dá o título à obra e naquele de fazer um par, nos mais acabados moldes românticos, com Rosita, filha do homem que lhe desgraçou a família e de quem deve se vingar. Encontram-se num baile e, profundamente emocionados, dançam, airosamente. Somente mais tarde – as circunstâncias assim o determinaram – José Avençal saberá do parentesco da mulher que ama com aquele que jurou matar. Um impasse de solução difícil que apenas se resolverá com a  morte. A de Rosita, pelas mãos do irmão ao saber do encontro que ela tivera com o homem que amava e a do vaqueano, provocada por ele mesmo, diante da impossibilidade de continuar a viver sem a mulher amada.

            Na verdade, esse drama amoroso é preterido pela descrição dos tipos (ênfase dada a Moisés, mulato cuja vida, desde a infância passara na caça e que vivia entre a diminuta tribo dos guaicañas), pelo relato das lutas rio-grandenses na época da Guerra dos Farrapos e pelas elucubrações a respeito do valor dos quero-queros nos embates revolucionários, dos meandros da justiça, dos preconceitos raciais, das leis da hospitalidade, do dever da vingança, do resultado dos danos morais na fisionomia. E pelo cuidado na descrição da paisagem.

O romance se inicia com o capítulo “Paisagem morta”, título em acorde com a primeira palavra do romance, o inverno que, num breve texto, o romancista relaciona com o estado de espírito que origina: O inverno desatava as madeixas emperladas de gelo, tão triste que magoava o coração e despertava idéias sombrias, como céus e terras. Alonga-se em reflexões sobre os malefícios dos frios e dos ventos nas árvores e nas campinas. Então, precisa uma data, 14 de julho; precisa o momento, o entardecer. E o local: Eram os campos de Vacaria. Menciona as notações topográficas que lhes determinam os contornos: ao norte o rio Pelotas, ao sul o rio Taquari, de um lado a Serra Geral e do outro o Mato Português e um minucioso zelo descritivo faz emergir os detalhes, os sons dos rios, a silhueta dos troncos desnudos, o mio ora profundo e cavernoso da onça ora estrídulo e agudo da jaguatirica, o solfejo áspero e atroador do itanha, o piar agoureiro das corujas, o bramido do minuano [...]. E o frio, e a expressão das rochas e das plantas, o mistério profundo da natureza adormecida e inerme.

Nessa paisagem, Apolinário Porto Alegre irá introduzir seus personagens, descrevendo-os, fazendo-os falar e agir numa narrativa de ritmo veloz que se abranda ao nela se permearem as digressões do romancista sobre as nuanças do coração e do espírito humano. E a paisagem mais uma vez está presente, nos capítulo XII, “A estância de Gil” quando descreve com as mais benévolas palavras as imensas planícies a perder de vista na beleza de uma alfombra de turmalina, manchada pelas cores dos muitos rebanhos que abriga. Palavras que se acompanham de outras, plenas de um ingênuo entusiasmo pela decantada abundância, apanágio da terra que o romancista chama de abençoada: lugar em que todos têm o seu quinhão na distribuição dos bens, onde ninguém morre de fome, onde os frutos pendem das árvores seculares, onde  os campos pejam-se de armentio sem conta
Embora, como diz Guilhermino César no capítulo que lhe dedica em História da Literatura do Rio Grande do Sul, Apolinário Porto Alegre não se enquadre, perfeitamente, nos cânones da escola romântica, dir-se-ia que, nessas descrições de paisagem, ora dizendo das agruras do inverno, a submeter as almas à tristeza ora idealizando a terra, pródiga, a se oferecer, em frutos, aos homens, o romancista gaúcho deixa perceber algo desse gosto europeu, advindo das leituras de Alexandre Herculano e algo de um exagerado ufanismo que tão bem se quadra com suas  profissões de fé nacionalistas. Essa fé que o levou a abandonar caminhos já trilhados para se lançar à aventura – e sabe-se quão difícil ela pode ser – de querer livrar a expressão brasileira das imitações européias. Porque no seu entender, não encontrar assunto para uma literatura pátria, vigoroso, escultural só o espírito deslumbrado pelas novidades estrangeiras.

segunda-feira, 30 de outubro de 2000

No mundo novo:os sonhos


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.
   

             E diz um dos capitães: Com meus sonhos fiz esta cidade para o rei. Mas, quando a desmancham para levá-la mais além porque é preciso reconstrui-la, sempre há uma voz para dizer: a faremos. E o verbo no futuro é uma expressão que se repetirá e que estará, todas as vezes, acompanhada de entusiastas adjetivos: formosa cidade, cidade e burgo importante e orgulhoso, enorme e luminosa urbe, grande cidade, terrível e grande, uma cidade maior, faustosa cidade. Também se irão repetir as reafirmações desse querer torná-la realidade ainda que, para isso, devam empregar todas as forças ou destruir os bosques. Porque os entraves para tornar real o desejado – e a chuva  gelada e pérfida da cordilheira, e os aguaceiros, e o frio do inverno e os ventos e o ataque dos índios e as traições dos espanhóis, e os lamentos de solidão e as lembranças, e a perda das carretas e dos animais nos precipícios, e o vencer e polir os bosques – parecem não ter  poder, nem  força  para anular vontades. E há quem defina o tempo: em poucos dias teremos toda a cidade de ou dentro de quatro meses, antes do verão ou, dentro de quatro meses exatos e fatais ou  dentro de duas ou três semanas. Um definir, ampliado em visões que fazem ver que em trinta anos (ou trezentos), as carruagens estarão a rodar pelas ruas e os sons urbanos irão se mesclar com o amável ruído das saias e dos risos velados e sensuais. Ou mesmo numa data precisa, o ano de 1570, quando os que por ela tanto labutaram já estejam magros, grisalhos, nobres e ricos. Também há os que, desenhando ruas e praças e jardins e os solares decidam as metas: Poremos as muralhas, uma bela rua em arco, subindo as serras, uma catedral com duas torres, um quartel medieval cheio de baluartes, as casas dos principais senhores. Ou na cidade, busquem tranqüilidade para os corpos e paz para os espíritos, a alegria de fontes e cascatas, de flores e de sons.

            Juan Núñez de Prado antevê a praça e as flores que chegarão da Andaluzia e da Holanda –  violetas, dálias, crisântemos, rosas – e nas bandeiras e guirlandas que enfeitarão, com arrogância, as casas; o padre Carvajal pensa nos gorjeios celestiais que irão encher a torre da igreja; o capitão Santa Cruz, na terra dividida, cada Senhor dono de seu rebanho, seus cavalos e seus índios, nas mulheres trazidas das Ilhas, nas mulatas cozinheiras vindas de Cuzco e de Arequipa, nas mestiças de Nova Granada e Tenochitlan.

            E, no perseguir o sonho da cidade, os espanhóis, lavrando-a com sangue e com barro, se exaurem sem se deixar vencer pelas penúrias, suores e dúvidas e sofrimentos. Acreditando, ainda, numa cidade de casas abertas, agradavelmente iluminadas, esperando uma alegria.

           

 

 

domingo, 22 de outubro de 2000

No mundo novo: a repetição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.
 

            Disse Juan Núñez de Prado: viemos em expedição para fabricar cidades para a Coroa [...]. E Barco só poderá ser, no seu desejo e na sua obediência, a cidade como a concebem os espanhóis. Com  verdadeira paixão, traça-lhe as primeiras ruas, chama o padre para decidir, no desenho da praça, onde ficará a igreja com seus sinos de bronze, dominando os ares. Será com as portas voltadas para o vento, para a vida, determina o capitão para logo conceber a casa do bispo, os edifícios do governo, as moradas dos corregedores, o palacete estival do vice-rei, a prefeitura, o quartel e as prisões e a forca. Barco I, que abandonara a meias e a meias carregara  nas carretas e que fora se perdendo nos caminhos se reconstrui em muralhas e calçadas e portais e  jardins e  pátios e fontes e casas com janelas no alto que se repetem em desenhos repetidos, na paisagem recente. Nasce do nada, feita dos bosques abatidos e se define em sacadas, balaustradas, em gonzos e em dobradiças, em portas de serviço. Juan Núñez de Prado que a imagina crescendo, transformada em burgo, precisando de artífices, carpinteiros,  pedreiros, serralheiros, calafates para se erguer e o padre Carvajal, na donairosa capela e sacrário e catedral, nos sinos que se multiplicam, soando entre os ramos das árvores. Os sinos que farão, como a forca, a submissão do Continente: os sinos da igreja e as cordas da forca, somente isso era a cidade e a Espanha, Deus e o rei, diz Juan Núñez de Prado a um de seus capitães na certeza de que lhe bastavam um e outro para conduzir a cidade, para mudá-la de assento, ainda que sozinho no seu cavalo: a religião, atemorizando, com abstrações, os soldados e os índios; a forca, infundindo-lhes o medo de um julgamento alheio a quaisquer regras que não sejam as que se prestam a preservar os interesses daqueles que as ditam.

            Assim, ao querer Juan Núñez de Prado matar  um de seus capitães, logo se justifica, negando-se a pecha de assassino, atribuindo-se a autoridade de um justiceiro, um alguazil, um oficial do Santo Ofício, um enviado do Vice-rei e de Real Audiência. E quando, dois soldados, a seu mando, são enforcados, embora sem a certeza de que isto seja correto – senhor, daremos prazos, um pouco de inútil espera aos prisioneiros aconselha o escrivão –  procura, com uns papéis na mão enluvada, dar explicações.

             Criando as ruas e praças e casas e jardins à semelhança do traçado ibérico e submissos às seculares instituições que, no Velho Mundo, regeram a conduta dos homens, os conquistadores, atravessando o Atlântico foram se apossando do que encontraram e, o Continente sem defesa, permitiu que nele fossem moldadas as velhas caducas idéias, os velhos conceitos caducos que, inexplicavelmente, resistiram ao tempo.

            Trouxemos conosco a traição, não só o trigo ou algumas plantas exóticas e alguns animaizinhos mas, também a falsidade, a fraqueza de caráter e de alma [...], o índio sabe, agora que pode atraiçoar o amigo e a seu irmão, que pode assassinar quem está dormindo ou doente ou  incapaz de se defender [..], diz Juan Núñez de Prado sem que tal momento de lucidez lhe modifique o comportamento. Porque, acima de tudo, ele se internou no Continente para tornar realidade o que seu rei, do outro lado do mar, imaginou.

domingo, 15 de outubro de 2000

No novo mundo: a destruição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.

 

            Havia uma ordem a cumprir – fundar a cidade para ocupar o território – e um sonho a conquistar: ver a cidade florescer. Também, e muito, havia o medo de perdê-la. E, na ocupação do território e na edificação da cidade, os percalços, originando o entrelaçar de destruição: ...senhor, senhor governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor do céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei (...) tu caminhas entre os escombros da cidade rota e pulverizada, caminhas entre as raízes deste mundo verde que estamos despedaçando, diz o padre Carvajal (a conquista foi feita também pela sotaina) a Juan Núñez de Prado, explicitando, sem peias, a plena consciência que possui do resultado dos atos da conquista. Dirá, ainda, que é preciso erguer a cidade, mesmo que matando algumas árvores e diante do que chama um grandioso bosque, opinará que dele é possível tirar as madeiras para dez cidades, para um milhão de casas e imóveis. Na verdade, a inesperada riqueza do Continente irá inebriar os recém chegados e fazer com que ignorem limites. Assim, haverá o momento em que Juan Núñez de Prado decide cortar muita madeira, decide por o bosque abaixo.Também haverá aquele em que imagina os troncos caídos para trás através de suas raízes despenteadas e úmidas na interminável ruazinha. Ou, ainda, um outro em que, mentalmente faz a conta de quantas árvores, grandiosas e cheias de força terá que cortar.

            Veracidade e verossimilhança nessa necessidade real da madeira para construir casas e fabricar móveis e na urgência em abrir espaço para a cidade ou para as trilhas que está contida na narrativa, assim como, nela, estará presente a agressão dos conquistadores para com esse mudo que desejam submeter.

            Risos e vozes se mesclam, então, ao barulho dessas marteladas e golpes que fazem ranger as árvores, que rebentam os troncos. Soldados decepam árvores, levantam os machados para afundá-los bem fundo, dão machadadas alvoroçadas. Suados, batem nos troncos e os capitães e os padres se igualam a eles nos golpes de machado que assentam, no esforço para derrubá-los. Surgem o oco deixado pelas raízes arrancadas, quebradas, dolorosas e sangrentas, os ramos pendurados, sofridos, grotescos, as árvores açoitadas, feridas, derrubadas, odiadas.. Adjetivos  que a mostram vítima de algozes cuja silhueta irá se esboçar, sempre, a partir dos mesmos verbos de que são sujeitos: derrubar, descarregar, levantar o machado, dar machadadas, enterrar os punhais e a picareta e cujo objeto será, também, sempre, a árvore. Em toda a sua irresponsável crueldade, esse desenfreado aniquilamento se mostrará, sobretudo, através de exímios recursos narrativos.

            É próprio do relato de Carlos Droguett, fixar, por vezes, o efêmero e o fugidio: um raio de sol ou de luar se detendo sobre um objeto, um animal que passa, que se afasta, um olhar, um gesto, um movimento. Em se tratando do abate das árvores, esse momento, em meio a marteladas e machadadas em que, repentinamente, o traço úmido de uma árvores enorme a cair, deixa um silencioso vazio. Igualmente, lhe é muito usual, fazer referências ao tempo, ou noite ou dia, precisando as nuanças do cenário: “em meio daquele esplendor do entardecer da manhã ensolarada, palpitavam com suave força os golpes de machado derrubando troncos.

            Mas, em El hombre que trasladaba las ciudades, no seu constante repetir-se o que sobressai é a relação que os homens estabelecem com as árvores e cuja síntese parece estar no quadro que se apresenta a Juan Núñes de Prado na azáfama de construir a cidade: olhou para os homens, golpeavam a árvore com tranqüila fúria, não falavam, apertavam os lábios, tinham a respiração contida, tensos os músculos do pescoço e dos braços [...], expelindo todo o seu horror e sua enorme força, gastando seu ódio contra as enormes árvores inermes, açoitando seu desespero contra elas, como se nos ramos altos e duros, nas raízes negras e profundas estivesse agarrotada e presa e atenazada a cidade. Porém, assim como ele vê e, por vezes, entende o que se passa a seu redor, ele  também é visto pelos soldados que olham para seus dedos longos e finos, agarrados no machado como antes haviam estado presos à espada. No seu gesto, como se a árvore fosse um inimigo a ser vencido. E, então, quando,  toma do machado e o assenta na árvore até derrubá-la, ao vê-la cair, lança um grito de repto e de desafio, quase enfurecido. No entanto, essa destruição que ordena, apoiado nos seus motivos e a que executa, com as próprias mãos, no afã de construir a cidade, faz surgir não mais a árvore pujante e grandiosa mas a que, imolada, se queixa ao cair, espalhando folhas perdidas, dispersas e fragrantes, multidão de folhas, exalando o cheiro úmido, acre e doce da madeira partida, o perfume quebrado cheio de vida que emanava de tronco ferido, na emanação das folhas frescas e da seiva desprendidas pelos destroços no chão.

            Porém, nem as árvores sacrificadas nem os seus perfumes tardios, única  resistência possível para  prolongar a vida, ainda que no etéreo de um perfume, tiveram algum significado para o capitão e para os seus soldados.

domingo, 8 de outubro de 2000

No mundo novo:os caminhos


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance. 

Entre uma elucubração e outra, diz para seu capitão, o padre Carvajal, um dos religiosos que acompanha a expedição, cujo intuito é a ocupação do território: somos mil e milhões os aventureiros de espada e sotaina que vagamos pelo velho mundo, a  Espanha famélica e iluminada sacudiu-os de sua pelagem como um punhado de piolhos e aqui estamos multiplicando-nos para viver, matando para abrir caminhos na direção de Deus e do rei. Asserção, de certa sorte, semelhante a do capitão Bazán ao se expressar, com os olhos e com as mãos, sobre o que levam as carretas: um bando de traidores, lençóis sujos, espanhóis sujos, forcas de enforcados, sacos de vinhos, cestas vazias. Na verdade, esses espanhóis são os coitados que participam de uma tarefa ingrata e sem glória, a de trabalhar junto com os índios, carregando e descarregando a cidade, construindo e desfazendo paredes, tetos e portas, puxando animais, segurando-os para que não desfaleçam nem se aterrorizem sob os relâmpagos. Porque a busca do novo assento não se intimida com a escuridão e o vento, a chuva e a lama. O afã de chegar ou de seguir, enfrenta os danos e as perdas – animais e carretas, rolando por abismos – e leva a penetrar nos bosques para achar um lugar que ninguém sabe se realmente será o definitivo. E passado e presente e futuro estão enredados no constante movimento dos homens, animais e carretas.

            Ao ser Barco III assentada, Juan Núñez de Prado vê, diante dele, carregadas de soldados, as carretas passando lentamente. Lembra-se da imagem que lhe ficou, ao abandonar Barco I, cavalgando na trilha das carretas que se bamboleavam na penumbra envoltas pela fumaça e pelas luzes. Em dado momento, decide que, talvez, dentro de alguns meses, ele detenha as carretas sob as árvores. Mas, logo, ao enfrentar seus capitães, já está diante de uma definitiva escolha que  reconhece, também, como sua nas carretas carregadas, nos índios acorrentados, nos cavalos descansados e ferrados de novo, na necessidade, urgente, de partir.

            É um sonho ou pesadelo que os impulsa com a cidade às costas como se buscassem o paraíso apregoado na Espanha miserável que deixaram no além mar, abandonando pelo caminho pedaços de móveis, cadeiras, borzeguins e espadas que os índios podiam rastrear sob as árvores e do outro lado do rio.

            Mas, na terrível viagem, assim a define o padre Carvajal, foi, mais do que nada, um salpicar de sangue, em nome do Estado e da Fé, nas selvas, nos cerros, nos rios e nas montanhas nevadas.  Nas forcas e nos túmulos foram ficando os espanhóis, parte da terra que desejavam possuir:
ossos de espanhóis, marcando a rota de Deus e do rei.

 

domingo, 1 de outubro de 2000

No mundo novo: o lugar


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.  

            Do capitão Ardiles é a convicção de que  poucas semanas serão suficientes para construir a cidade. Rodeada de muralhas, diz Juan Núñez de Prado e no lugar que define como formoso vale. Expressão imprecisa para designar o lugar desse terceiro assento da cidade, tanto quanto todas as outras que se referem ao espaço onde se movem os figurantes da louca aventura da conquista. Sem jamais ser descrito – consta que o romancista nunca esteve nos lugares em que Barco foi assentada – é um espaço cuja presença constante, se faz a partir de exemplares recursos narrativos. Eventualmente, a menção de algum acidente geográfico: serras afastadas na direção do rio, do outro lado das serras, para o oeste se divisavam algumas montanhas, entre as colinas, montes e vales, cordilheira, desfiladeiros e montanhas, devida, muitas vezes a um olhar, a um desejo, a uma constatação. Assim, Juan Núñez de Prado imagina a cidade com muitas cadeiras, usadas nas escolas e nas igrejas e para os velhos friorentos ficarem olhando a noite aparecer entre as colinas.Ou, pretende acrescentar um pedaço maior desses montes e vales e dessas soledades ao corpo da cidade Ou, se dá conta desse adentrar-se de seus homens no Continente: espanhóis sujos e desamparados e esparramados nas selvas e nas serras e de  suas ações montanhas que atravessarmos e ensanguentamos.  Mas, é principalmente, através das referências à vegetação – bosques ou árvores – que o cenário do romance se estabelece e adquire contornos. Carlos Droguett,  em algum momento, precisa as espécies: algarrobo, higuera, castaño. Mas, sobretudo,  atribui qualidades: belo bosque silencioso, bosque úmido e negro, grandioso bosque, bosque imenso, bosque copioso, inocente, árvores grandiosas e cheias de força, de certa forma, as esboça para fazê-las vibrar e estremecer e agitar-se com as aragens e com o bater de asas dos pássaros. Por momentos, as entrelaça com o nascer da cidade nesse desejo de Juan Núñez de Prado de fincar as raízes das casas nas raízes de suas árvores, colocando suas paredes na direção de suas folhas e flores, pondo suas sacadas e janelas e balaustradas na umidade amável de seus galhos. Ou com o seu sonho de futuro: as ruas, as casas emergindo milagrosamente das árvores. Sobretudo, o romancista faz da árvore e do bosque, também, vítimas da destruição que irá determinar os atos dos que chegavam ao Continente apenas para exauri-lo. Mas, ou para mostrar a força das terras ou para dizer quão injusta e cruel é a destruição que sobre elas se faz, há uma vida gloriosa que se instaura na água, no céu, no vento que, em movimentos cambiantes,  se mesclam, se fundem para completar a imagem desse novo mundo: é o gelado ruído da água, é o céu alto e estival que emerge no alto e se torna cada vez mais tenso e rumoroso, é o vento que sopra ora vagarosamente, ora forte e morno, anunciando tempestades, ora velado e verdoso , é o cair das folhas e ramos no espelhante barulho da água, são os sons dos pássaros, cantando todos juntos presos e confundidos nas suas próprias plumas.



            Um mundo que os ibéricos mal percebem no anseio da conquista. Juan Núñez de Prado, designado para  criar nessas paragens uma réplica do mundo velho, hesita entre o querer  aquietar-se na paisagem imóvel ou continuar a perseguir quimeras. Em um momento ele diz: este é um belo lugar, o mais bonito de todos, lançaremos frondosas raízes nele, construiremos uma centena de casas do fundo da terra, temos um tempo propício e muitas árvores que darão um aspecto fantástico e endiabradamente desenhado às ruas e praças.

            E esse foi o efêmero sonho de Barco III.