domingo, 19 de novembro de 2000

Nas margens. 2


O contorno do cais, a silhueta das pessoas, a leve ondulação de proas vermelhas, as redes coloridas, o banzeiro que despejava na praia dejetos oleosos, os mendigos estonteados pela luz do dia, as nuvens imensas, nômades no espaço, a floresta escura que se oferecia à visão, tudo parecia adquirir espessura, movimento, vida. Miltom Hatoum.
           

            Não são embates com a natureza, mas aqueles travados entre os membros da família que, sinuosamente, conduzem a trama de Dois irmãos, romance de Milton Hatoum, publicado, neste ano pela Companhia das Letras.

            Num belo sobrado de Manaus, pintado de verde escuro, os personagens se ligam pelo amor e pelo ódio. Muito perto, a floresta e o rio, percebidos por Nael, o narrador. Filho de Dominga serva ou escrava  e outras palavras não cabem para designar sua mãe, índia catequizada, oferecida pelas freiras do orfanato para Halim e Zana que se criou, miúda e esmirrada, nos fundos da casa e trabalhou, sem horário e sem dias de descanso a vida inteira, é o espectador do que se passa. Quando tudo já tem  a marca do passado, irá contar o que viu e o que soube e o que escutou. Também o que percebeu além dos momentos de emoção e de rancor dos moradores do sobrado à sua volta: a pujante natureza em que se encrava a cidade nas margens do rio. Uma floresta apenas mencionada mas presente tanto quanto o rio com seu enxame de canoas e grandes cargueiros e canoas cobertas de palha, e barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés. Ela marca o contorno de um cenário tropical no intenso sol do Equador, no ar úmido, no anoitecer morno, nessas nuvens imensas, inertes, como uma pintura em fundo azulado que, sobretudo, irá se mostrar na flora e na fauna, nos tipos humanos e nos seus pobres afazeres. São as mangueiras, os oitizeiros, o apuizeiro, os açaizeiros, a muirairanga, o mururê, as seringueiras, o jatobá, os jambeiros, povoando percursos do olhar ou do olfato ou desse toque milagroso das mãos que esculpem. São os peixes do rio, o tucunaré, o pacu, o matrinxá, o curimatã, o surubim, a piranha, o caju, o pirarucu num som desse tupi esquecido, povoando a mesa, espalhando odores que a brisa do rio traz junto com o cheiro das frutas e da pimenta. São os pássaros – os sais-azuis, os saurás, as batuiras e as jaçanãs, os japiins, as ciganas, os patos selvagens, o mambuaçu, o saracuá, o urumutum – voando, cantando, piando, empoleirados nos galhos, fazendo barulho ou a roçar os frutos maduros e as águas escuras do rio. No ar, o cheiro da folhagem úmida, dos cachos de frutas das palmeiras, das jacas maduras. Na brisa do amanhecer, o cheiro da floresta ainda sombria, o perfume do cupuaçu e o das folhas grandes da fruta-pão e o das açucenas brancas. Todo um universo em uníssono que se completa no traçar efêmero de “figurantes” como o vendedor de pitomba e sapoti, um velho de rosto de bronze que atravessava o século, vendendo frutinhas, surrupiadas de terrenos baldios e quintais de casas arruinadas que possui, no romance, uma dupla função: a de completar o perfil de Domingas e a de apontar um, entre tantos, que piavam de pobreza, pertencentes a esse mundo escondido, ocultado, cheio de seres que improvisavam tudo para sobreviver [...], pululando às margens do rio: carroceiros, carregadores, pescadores, catraieiros, bucheiros num rude comércio de frutas e de peixes e miúdos e vísceras, trabalhando num contínuo recomeçar que mal lhes traz algum proveito.

            Mundo miserável que se oferece aos olhos de Nael. Lúcido, o percebe nesses pedaços da cidade que não vemos ou não queremos ver. Curiosa constatação expressa na primeira pessoa plural a englobar, então, essa outra  classe – a que ignora, que despreza, que marginaliza e se acredita isenta de culpas ou de responsabilidades – à qual  ele pertence à meias na sua condição de filho sem pai, mais ou menos reconhecido pelo avô e existindo para a avó, apenas, como um rastro dos filhos dela.

            E é assim que esse Brasil longínquo e desconhecido – há um tácito não querer vê-lo pois o olhar dos brasileiros se orienta, expectante e feliz para o norte do rio Bravo –  emerge  das páginas de Dois irmãos e chega no sul. Um traçado que, talvez, seja mais forte do que os desejos e as perdas de seus personagens, dos  seus itinerários plenos de percalços desastrosos que Milton Hatoum, no seu domínio das palavras, faz belo e comovente.

 

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