O contorno do cais, a silhueta das pessoas,
a leve ondulação de proas vermelhas, as redes coloridas, o banzeiro que
despejava na praia dejetos oleosos, os mendigos estonteados pela luz do dia, as
nuvens imensas, nômades no espaço, a floresta escura que se oferecia à visão,
tudo parecia adquirir espessura, movimento, vida. Miltom Hatoum.
Não
são embates com a natureza, mas aqueles travados entre os membros da família
que, sinuosamente, conduzem a trama de Dois
irmãos, romance de Milton Hatoum, publicado, neste ano pela Companhia das
Letras.
Num
belo sobrado de Manaus, pintado de verde escuro, os personagens se ligam pelo
amor e pelo ódio. Muito perto, a floresta e o rio, percebidos por Nael, o
narrador. Filho de Dominga serva ou escrava e outras palavras não cabem para designar sua
mãe, índia catequizada, oferecida pelas freiras do orfanato para Halim e Zana
que se criou, miúda e esmirrada, nos fundos da casa e trabalhou, sem horário e
sem dias de descanso a vida inteira, é o espectador do que se passa. Quando
tudo já tem a marca do passado, irá
contar o que viu e o que soube e o que escutou. Também o que percebeu além dos
momentos de emoção e de rancor dos moradores do sobrado à sua volta: a pujante
natureza em que se encrava a cidade nas margens do rio. Uma floresta apenas
mencionada mas presente tanto quanto o rio com seu enxame de canoas e grandes
cargueiros e canoas cobertas de palha,
e barcos coloridos, atracados às margens
dos igarapés. Ela marca o contorno de um cenário tropical no intenso sol do
Equador, no ar úmido, no anoitecer morno, nessas nuvens imensas, inertes, como uma pintura em fundo azulado que,
sobretudo, irá se mostrar na flora e na fauna, nos tipos humanos e nos seus
pobres afazeres. São as mangueiras, os oitizeiros, o apuizeiro, os açaizeiros,
a muirairanga, o mururê, as seringueiras, o jatobá, os jambeiros, povoando
percursos do olhar ou do olfato ou desse toque milagroso das mãos que esculpem.
São os peixes do rio, o tucunaré, o pacu, o matrinxá, o curimatã, o surubim, a
piranha, o caju, o pirarucu num som desse tupi
esquecido, povoando a mesa, espalhando odores que a brisa do rio traz junto
com o cheiro das frutas e da pimenta. São os pássaros – os sais-azuis, os
saurás, as batuiras e as jaçanãs, os japiins, as ciganas, os patos selvagens, o
mambuaçu, o saracuá, o urumutum – voando, cantando, piando, empoleirados nos
galhos, fazendo barulho ou a roçar os frutos maduros e as águas escuras do rio.
No ar, o cheiro da folhagem úmida, dos
cachos de frutas das palmeiras, das jacas maduras. Na brisa do amanhecer, o cheiro da floresta ainda sombria, o
perfume do cupuaçu e o das folhas grandes
da fruta-pão e o das açucenas brancas. Todo um universo em uníssono que se
completa no traçar efêmero de “figurantes” como o vendedor de pitomba e sapoti,
um velho de rosto de bronze que atravessava o século, vendendo frutinhas,
surrupiadas de terrenos baldios e quintais de casas arruinadas que possui, no romance, uma dupla função: a de completar
o perfil de Domingas e a de apontar um, entre tantos, que piavam de pobreza, pertencentes a esse mundo escondido, ocultado, cheio
de seres que improvisavam tudo para sobreviver [...], pululando às margens
do rio: carroceiros, carregadores, pescadores, catraieiros, bucheiros num rude
comércio de frutas e de peixes e miúdos e vísceras, trabalhando num contínuo
recomeçar que mal lhes traz algum proveito.
Mundo
miserável que se oferece aos olhos de Nael. Lúcido, o percebe nesses pedaços da
cidade que não vemos ou não queremos ver.
Curiosa constatação expressa na primeira pessoa plural a englobar, então, essa
outra classe – a que ignora, que
despreza, que marginaliza e se acredita isenta de culpas ou de
responsabilidades – à qual ele pertence
à meias na sua condição de filho sem pai, mais ou menos reconhecido pelo avô e
existindo para a avó, apenas, como um rastro
dos filhos dela.
E
é assim que esse Brasil longínquo e desconhecido – há um tácito não querer
vê-lo pois o olhar dos brasileiros se orienta, expectante e feliz para o norte
do rio Bravo – emerge das páginas de Dois irmãos e chega no sul. Um traçado que, talvez, seja mais forte
do que os desejos e as perdas de seus personagens, dos seus itinerários plenos de percalços desastrosos
que Milton Hatoum, no seu domínio das palavras, faz belo e comovente.
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