domingo, 5 de novembro de 2000

Sombra e luz nos campos

            Antes de que fosse publicado em livro (1896), na Argentina, o Facundo de Domingo Sarmiento onde, magistralmente, é descrita a figura do vaqueano, Apolinário Porto Alegre lhe fixa o perfil no seu romance de 1872, O vaqueano. Se na obra do ensaísta argentino é um capítulo que,  em detalhes, registra esse tipo humano das campanhas, na ficção do escritor gaúcho, poucas linhas são suficientes para apresentá-lo ao leitor: [...] jamais houvera rio-grandense que, como ele, conhecesse a Província. Não lhe escapava uma jeira de terra, ainda mesmo perdida nos ínvios sertões ou em banhados de largo perímetro. Tinha a memória fiel até para as nugas locais. Era uma verdadeira vocação. Seu calendário de nomes abraçava do capão sumido na campina à restinga do mato ou arroio de exíguos cabedais. Constituía, de per si, o mais exato arquivo fotográfico, um mapa vivo e pitoresco. De nome José Avençal é a figura principal, no sentido que dá o título à obra e naquele de fazer um par, nos mais acabados moldes românticos, com Rosita, filha do homem que lhe desgraçou a família e de quem deve se vingar. Encontram-se num baile e, profundamente emocionados, dançam, airosamente. Somente mais tarde – as circunstâncias assim o determinaram – José Avençal saberá do parentesco da mulher que ama com aquele que jurou matar. Um impasse de solução difícil que apenas se resolverá com a  morte. A de Rosita, pelas mãos do irmão ao saber do encontro que ela tivera com o homem que amava e a do vaqueano, provocada por ele mesmo, diante da impossibilidade de continuar a viver sem a mulher amada.

            Na verdade, esse drama amoroso é preterido pela descrição dos tipos (ênfase dada a Moisés, mulato cuja vida, desde a infância passara na caça e que vivia entre a diminuta tribo dos guaicañas), pelo relato das lutas rio-grandenses na época da Guerra dos Farrapos e pelas elucubrações a respeito do valor dos quero-queros nos embates revolucionários, dos meandros da justiça, dos preconceitos raciais, das leis da hospitalidade, do dever da vingança, do resultado dos danos morais na fisionomia. E pelo cuidado na descrição da paisagem.

O romance se inicia com o capítulo “Paisagem morta”, título em acorde com a primeira palavra do romance, o inverno que, num breve texto, o romancista relaciona com o estado de espírito que origina: O inverno desatava as madeixas emperladas de gelo, tão triste que magoava o coração e despertava idéias sombrias, como céus e terras. Alonga-se em reflexões sobre os malefícios dos frios e dos ventos nas árvores e nas campinas. Então, precisa uma data, 14 de julho; precisa o momento, o entardecer. E o local: Eram os campos de Vacaria. Menciona as notações topográficas que lhes determinam os contornos: ao norte o rio Pelotas, ao sul o rio Taquari, de um lado a Serra Geral e do outro o Mato Português e um minucioso zelo descritivo faz emergir os detalhes, os sons dos rios, a silhueta dos troncos desnudos, o mio ora profundo e cavernoso da onça ora estrídulo e agudo da jaguatirica, o solfejo áspero e atroador do itanha, o piar agoureiro das corujas, o bramido do minuano [...]. E o frio, e a expressão das rochas e das plantas, o mistério profundo da natureza adormecida e inerme.

Nessa paisagem, Apolinário Porto Alegre irá introduzir seus personagens, descrevendo-os, fazendo-os falar e agir numa narrativa de ritmo veloz que se abranda ao nela se permearem as digressões do romancista sobre as nuanças do coração e do espírito humano. E a paisagem mais uma vez está presente, nos capítulo XII, “A estância de Gil” quando descreve com as mais benévolas palavras as imensas planícies a perder de vista na beleza de uma alfombra de turmalina, manchada pelas cores dos muitos rebanhos que abriga. Palavras que se acompanham de outras, plenas de um ingênuo entusiasmo pela decantada abundância, apanágio da terra que o romancista chama de abençoada: lugar em que todos têm o seu quinhão na distribuição dos bens, onde ninguém morre de fome, onde os frutos pendem das árvores seculares, onde  os campos pejam-se de armentio sem conta
Embora, como diz Guilhermino César no capítulo que lhe dedica em História da Literatura do Rio Grande do Sul, Apolinário Porto Alegre não se enquadre, perfeitamente, nos cânones da escola romântica, dir-se-ia que, nessas descrições de paisagem, ora dizendo das agruras do inverno, a submeter as almas à tristeza ora idealizando a terra, pródiga, a se oferecer, em frutos, aos homens, o romancista gaúcho deixa perceber algo desse gosto europeu, advindo das leituras de Alexandre Herculano e algo de um exagerado ufanismo que tão bem se quadra com suas  profissões de fé nacionalistas. Essa fé que o levou a abandonar caminhos já trilhados para se lançar à aventura – e sabe-se quão difícil ela pode ser – de querer livrar a expressão brasileira das imitações européias. Porque no seu entender, não encontrar assunto para uma literatura pátria, vigoroso, escultural só o espírito deslumbrado pelas novidades estrangeiras.

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