domingo, 26 de novembro de 2000

O indescifrável

            Na capa, uma boneca. Tem o rosto de porcelana e está vestida com uma saia de cetim branco e uma blusinha de renda. Rendadas, também, são as meias. O cabelo, ondulado e de um loiro baço é enfeitado com uma fita. As faces são rosadas, os olhos azuis e os lábios, entreabertos  fazem de sua fisionomia, algo de levemente risonho, de levemente indagador. Enquadra-se num retângulo negro que se sobrepõe a outro,de um ligeiro tom róseo onde constam o nome do autor, Omar Prego Gadea e em letras menores, Delmira, o título da obra. Na vertical, o nome da Editora, Alfaguara, sobre o seu logotipo de linhas  onduladas.

            Publicado no Uruguai, em 1996, esta obra de um experimentado autor de contos, romances e ensaios, se inscreve no interesse instaurado, já há alguns anos, que, se enlaçando num personagem da vida real, elabora, sem fugir aos inegáveis fatos que o conduziram, uma obra de ficção.

            No caso de Delmira Agustini, os mistérios que a envolveram ou em que se envolveu, são, verdadeiramente, instigantes e passíveis de  muitas indagações. Nos ensaios escritos sobre ela não é raro constar a menção ao seu inexplicável talento poético precoce  assim como a crueldade de sua morte aos vinte e sete anos.

            Os inegáveis fatos: Delmira Agustini nasceu, na cidade de Montevidéu no dia 24 de outubro de 1896,  numa família de classe média acomodada. Depois de cinco anos de noivado, se casa com Enrique Job Reyes, dele se separando antes que tivessem se passado dois meses da cerimônia que os unira. Porém, continuou a vê-lo a sós, na casa de pensão onde ele se abrigara e no dia 6 de julho de 1914, foi por ele assassinada.

             Em Delmira, Omar Prego Gadea  lhe retoma os últimos dias de vida nos seus sinuosos passos agitados e os ancora numa ficção que, a semelhança da realidade, se mostra plena de interrogações.     Sob a tutela de um texto de Jorge Luis Borges ( Mais interessante ainda que o empenho de abreviar e estender o tempo é o de embaralhar o passado e o futuro) o relato vai-se construindo nesses conhecidos enunciados em que um fato já ocorrido é apresentado como algo que irá se realizar como no melhor estilo de Gabriel García Márquez de Crônica de uma morte anunciada ( No dia em que ia ser assassinada, o 6 de julho de 1914, Delmira Agustini saiu de seu quarto em meio da manhã ...) e em múltiplos retornos ao passado. Um relato feito de muitas vozes que se acrescentam à do narrador como as de Zum Felde, Giot de Badet, Aurora Curbelo Larrosa,  Martín Lopez que, tendo privado com Delmira Agustini, oferecem valiosos aportes a essa história que, alimentada pela imaginação do narrador e pelos numerosos documentos consultados, não se deixa deslindar porque nem uns nem outros resultam suficientes para completar essas zonas de sombras que interrompem o fio narrativo. Uma delas é a maneira como justificava Delmira Agustini a seus pais, as repetidas horas de ausência em que saía de casa para se encontrar com o homem com quem se casara e que repudiara, fugindo de casa. O avô do narrador, por ele inquirido a respeito, uma vez que havia sido contemporâneo de Delmira Agustini, responde que era algo impossível de saber e que essa era uma das muitas partes impenetráveis da história.

            Assim, embora tenha consultado o que sobre Delmira Agustini se escrevera na  época,  e tido entre as mãos o seu espólio, muitos anos esquecido num velho baú de uma antiga casa,  e consultado os autos oficiais referentes a seu divórcio e a sua morte, o narrador parece se inclinar diante do conselho dado por um amigo, em Paris, sobre o que deveria fazer em relação ao material que  reunia, visando a elaboração de uma tese: um romance no qual não se esboçassem os limites entre a ficção e a realidade. Um romance, diz-lhe o avô no qual episódios sejam inventados, outros  se modifiquem, onde as datas se  confundam. E assim – até porque  um tal romance  nem poderia ser  construído de outro modo – foi feito. As interpretações, as reflexões, as suposições elaborando-se  a partir das notícias de jornal, das cartas que Delmira Agustini escreveu ou que lhe foram enviadas, das fotos, das  incerteza de lembranças guardadas pelos que a conheceram e que o passar do tempo diluiu entremeando-se às cenas com que a inventiva ficcional procurou desfazer lacunas na busca de uma verossimilhança que, a priori, reconhece como inatingível nesse encaminhar-se de Delmira Agustini para a morte.

             E um indecifrável destino de  mulher se esboçou, iluminado pelo tecer habilidoso do texto de Omar Prego Gadea, ainda que ele se tenha  rendido às sombras que o rodeiam.

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