Em
1986, Laury Maciel publicava o seu primeiro romance, Noites no sobrado. Até então, fora autor de contos, reunidos em
1977, no livro Corpo e sombra e,
cinco anos depois, em O homem que amava
cavalos. Seguiram-se, ainda, A noite
do homem-mosca e Rosas de papel crepom, um romance
ambientado em Mundo Novo, pequena cidade interiorana onde, também, se abrigam os personagens de Pedra dos anjos, que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba
de lançar. Um espaço apenas mencionado porque neste último romance de Laury
Maciel o que realmente conta é o personagem narrador e o seu drama de existir.
Um drama que, em efeito, se faz de pequenos nadas que ele alimenta para
transformar em sofrimento.
Ao
iniciar o seu relato, já a vida passou e o que poderia tê-lo feito feliz, ele
mal percebeu, submisso a seus ciúmes e à incapacidade de assumir a própria
vida. Diante do jardim de sua casa, invadido pela erva daninha, pelas aranhas,
formigas e lacraias, destroçando o que foi o seu universo, e dono de seu tempo,
recorda o passado no qual importa, apenas, o que viveu com Patrícia Emília.
Primeiro, a menina adolescente, depois a noiva, logo a mulher. É através de
seus olhos, presos naquela divina criatura, que ela emerge
da narrativa em verdadeira sinfonia de delicadezas: pequeninas mãos, castos
joelhos, pernas imaculadas, pezinhos muito brancos, belo rosto pálido, cabelos
loiros. O mesmo olhar que lhe completa os contornos, vislumbrando-lhe uma
sensibilidade a flor da pele que ordena lágrimas e soluços, explosões de
ternura, a palidez doentia, os vincos
fundos das faces e, sobretudo, a mostram dúbia e indecifrável. Porque o
narrador, inseguro e confuso, fechado nas suas razões, lhe atribui sentimentos,
lhe interpreta os gestos e a rodeia de suspeitas e desconfianças que se aninham
na sua alma quando Patrícia Emilia elude um convite para o cinema ou para um enlace
amoroso, quando sonha com Octávio, o amigo compartilhado ou lhe prepara doces
ou lhe tricota agasalhos ou fica alegre com suas cartas ou triste na sua
partida. Ela, pressentindo-lhe as perguntas não formuladas, as friezas
inexplicáveis, sofre, ainda, a humilhação de não apenas ser acusada em carta
anônima de traição mas, sobretudo, de constatar que o marido lhe dera crédito. Tenta
lutar contra o vazio que se instala a seu redor mas é vencida pela tristeza e
se deixa morrer. Com ela morrem os amores-perfeitos do jardim e, se houve,
algum segredo seu. Pois a verdade, não é
deslindada nesse narrar feito de pequenos nadas: uma flor seca a cair, se
desfolhando, os segundos em que dura um olhar, uma entrega inocente, sem
culpas, o inesperado aprendizado do amor, a alegria da carta recebida ou o temor
de recebê-las e o sempre renovado medo de ser feliz a se alimentar de falsos ou
reais indícios que o ciúme inventa.
É um livro cruel diz Maurílio, o
narrador, sobre Dom Casmurro que
tentava ler e em cuja leitura, uma tarde, mergulha sem mais razões. O romance
que, um dia, fora assunto de conversa entre Patrícia Emília e Octávio que
chega, interrompendo a visita que ele
fazia à namorada. E’ sob sua égide que se esboça o triângulo amoroso no
embaralhar de indícios de uma infidelidade que o ciúme, ora a constatar ou a
inventar, faz emergir. Esse confessado preito à obra prima de Machado de Assis
mostra um Laury Maciel muito firme e muito convicto na arte de romancear, sem
medo de enveredar por trilhas conhecidas porque sabe inová-las e oferecer um
percurso prazeroso e pontilhado de emoção.
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