domingo, 3 de dezembro de 2000

Pequenos nadas

            Em 1986, Laury Maciel publicava o seu primeiro romance, Noites no sobrado. Até então, fora autor de contos, reunidos em 1977, no livro Corpo e sombra e, cinco anos depois, em O homem que amava cavalos. Seguiram-se, ainda, A noite do homem-mosca  e Rosas de papel crepom, um romance ambientado em Mundo Novo, pequena cidade interiorana  onde, também, se abrigam os personagens de Pedra dos anjos,  que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba de lançar. Um espaço apenas mencionado porque neste último romance de Laury Maciel o que realmente conta é o personagem narrador e o seu drama de existir. Um drama que, em efeito, se faz de pequenos nadas que ele alimenta para transformar em sofrimento.

            Ao iniciar o seu relato, já a vida passou e o que poderia tê-lo feito feliz, ele mal percebeu, submisso a seus ciúmes e à incapacidade de assumir a própria vida. Diante do jardim de sua casa, invadido pela erva daninha, pelas aranhas, formigas e lacraias, destroçando o que foi o seu universo, e dono de seu tempo, recorda o passado no qual importa, apenas, o que viveu com Patrícia Emília. Primeiro, a menina adolescente, depois a noiva, logo a mulher. É através de seus olhos, presos naquela divina criatura, que ela emerge da narrativa em verdadeira sinfonia de delicadezas: pequeninas mãos, castos joelhos, pernas imaculadas, pezinhos muito brancos, belo rosto pálido, cabelos loiros. O mesmo olhar que lhe completa os contornos, vislumbrando-lhe uma sensibilidade a flor da pele que ordena lágrimas e soluços, explosões de ternura, a palidez doentia, os vincos fundos das faces e, sobretudo,  a mostram dúbia e indecifrável. Porque o narrador, inseguro e confuso, fechado nas suas razões, lhe atribui sentimentos, lhe interpreta os gestos e a rodeia de suspeitas e desconfianças que se aninham na sua alma quando Patrícia Emilia elude um convite para o cinema ou para um enlace amoroso, quando sonha com Octávio, o amigo compartilhado ou lhe prepara doces ou lhe tricota agasalhos ou fica alegre com suas cartas ou triste na sua partida. Ela, pressentindo-lhe as perguntas não formuladas, as friezas inexplicáveis, sofre, ainda, a humilhação de não apenas ser acusada em carta anônima de traição mas, sobretudo, de constatar que o marido lhe dera crédito. Tenta lutar contra o vazio que se instala a seu redor mas é vencida pela tristeza e se deixa morrer. Com ela morrem os amores-perfeitos do jardim e, se houve, algum segredo seu. Pois  a verdade, não é deslindada nesse narrar feito de pequenos nadas: uma flor seca a cair, se desfolhando, os segundos em que dura um olhar, uma entrega inocente, sem culpas, o inesperado aprendizado do amor, a alegria da carta recebida ou o temor de recebê-las e o sempre renovado medo de ser feliz a se alimentar de falsos ou reais indícios que o ciúme inventa.

            É um livro cruel diz Maurílio, o narrador, sobre Dom Casmurro que tentava ler e em cuja leitura, uma tarde, mergulha sem mais razões. O romance que, um dia, fora assunto de conversa entre Patrícia Emília e Octávio que chega,  interrompendo a visita que ele fazia à namorada. E’ sob sua égide que se esboça o triângulo amoroso no embaralhar de indícios de uma infidelidade que o ciúme, ora a constatar ou a inventar, faz emergir. Esse confessado preito à obra prima de Machado de Assis mostra um Laury Maciel muito firme e muito convicto na arte de romancear, sem medo de enveredar por trilhas conhecidas porque sabe inová-las e oferecer um percurso prazeroso e pontilhado de emoção.
 

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