- A doutora Maria
Cristina esteve aqui, conversou com a avó, cascavilhou papéis velhos, cismou com um retrato, e foi embora sem me
dar importância! É a queixa de Nozinho para a sua tia Dona a quem vai
visitar para, com ela, entrelaçar lembranças do passado. Dona, já velha, poço
em que estão mergulhadas as histórias da família que ela, diante de quem deseja
fazê-las emergir, se nega a contar. Ao ouvir as palavras do sobrinho sobre esse
retrato de que fala, Coisa muito antiga.
de um casamento que se realizou em 1908,
se obriga a perguntar de quem foi e a resposta a deixa perplexa quando percebe
que a menção ao noivo, que fora seu primeiro namorado, a possa perturbar.
Nozinho não lhe nota o susto e continua a falar do retrato que ela conhecia tão
bem, pois o olhara muitas vezes, motivo para poder reconstrui-lo, porque o
outro, o principal, era a emoção de reviver essa tarde festiva de um sábado já
ido.
Assim,
pela palrice de Nozinho e pelo que aflora à mente de sua tia Dona, a foto
renasce nas palavras ditas e nas que
foram caladas. Em torno dela, serpenteia o relato pela voz de Nozinho, ao
contar à tia o que diz Maria Cristina e pelo que, a partir de suas palavras, a
tia imagina. Ao ver todo o grupo de gente
que foi ao tal casamento, Maria
Cristina notou os cabelos louros e lisos
da avó, presos atrás da orelha por
uma fivela. Elogiou o bem vestir das mulheres (os vestidos parecem brancos,
com blusas de folhos franzidos), todas
bem penteadas (os bandós bem assentados ao lado das cabeças) e, curiosa, perguntou muito, se fixou em detalhes,
deixou de reparar em outros, alegrou-se ao descobrir a figura do avô. De repente, mudou. Ficou séria. Fez silêncio
e encarou a avó. É o que diz
Nozinho a sua tia Dona. Menciona que todos
riram muito diante da figura de um parente ameninado e desengonçado, repetindo o que disseram, o que significa
ter ela visto a foto junto com outras pessoas além da avó: que ela achou tudo muito bonito. No parágrafo seguinte, Dona passa
a lhe imaginar os gestos e as reações, a segurar o retrato e olhar, fascinada, para a figura de um homem
que parece ocupar um espaço maior do que os outros. Embora enxergando bem, pede
a lupa e mais a imagem se agranda, mais impressão lhe causa. Ela repara,
observa, atenta, nota, e a figura vai se completando, no descrever, detalhado
da roupa, no desenho dos gestos, no rápido traçar do rosto e da expressão. E concluiu que ele fora surpreendido em
momento de elegante inquietação – ao
contrário das outras pessoas do grupo, que posam obedientes e abestalhadas,
olhando de frente para a máquina fotográfica. Mas Dona também imagina que
Maria Cristina tampouco deixou de vê-la, no retrato, em que se mostra imóvel e hesitante,
no assombro que os gestos do audacioso
cavalheiro lhe causava. E se descreve no olhar que a observa: a testa, o
nariz, a boca, o queixo, o meio-riso
complacente e o penteado e o vestido branco de cambraia, enfeitado por um lenço escuro e severo. Então,
retorna a essa tarde de sábado em que foi retratada com o grupo, entre o querer fugir e o se deixar fotografar,
parada, com os olhos no homem, extasiada, e como ele , rebelde à ordem de olhar
para a máquina, ao se fixar na sua nuca altiva, coberta de cabelos lisos e escuros, adivinhando a intensidade de seus
olhos cor de um azul próximo ao anil,
que não herdara dos Correa de Araújo (nessa família, eles se faziam sempre
claros, celestes, meio aguados, bem diferentes dos dele, firmes, intensos,
inquietos, desafiadores). Olhos que não furtavam cor como os de Antônio
Cavalcanti: eram definitivos. Ao
constatar a beleza de um rosto perfeito,
curioso, inquisitivo, acrescida de rara
elegância no vestir: o corte perfeito da
roupa e a camisa alvíssima e a
gravata borboleta e o correntão de ouro . O Major Manuel
Henrique, informa a avó Agripina para a
neta, acrescentando ter sido o homem
mais elegante que conheceu. Maria Cristina ainda se maravilhando, exclama: -Vejam como se destaca do grupo! Parece um príncipe! Por que estará segurando
a gola com tanto esmero? Mas, ninguém, entre os que a rodeavam, saberia lhe responder. Como também ficou sem resposta
a identidade da moça magra que aparecia de perfil. Porque Dona, embora
sabendo-se detentora, a única, do significado do gesto que provoca a pergunta
não se presta à confidências. E Nozinho, ainda que pense ser da tia Dona o
perfil enquadrado no umbral da porta, nada diz, reiterando: Ela não me deu a devida atenção à minha pessoa. Silêncios a povoar de ausências, para os que
desejam desvendá-la, essa imagem reencontrada que, no entanto, se revela ao
leitor por um desses recursos formais (tempo, vozes, zonas de sombra que se
misturam) que tão prodigamente constróem a narrativa de Maria Cristina
Cavalcanti de Albuquerque para fazer deste seu segundo romance (Luz do abismo, Recife, Bagaço, 1996) um
rico e sinuoso tecer de histórias..
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