No intrincado
refazer de uma genealogia em que duas famílias se unem e se desunem em laços e
nós comandados por interesses e por conveniências, eventualmente, por afetos,
como breves ilhas, emergindo num caudal de nomes e sobrenomes e parentescos,
textos exemplares de um lirismo que vai além do traçado de um perfil para
mostrar seres humanos nas suas emoções mais sentidas e verdadeiras.
O
relato de Luz do abismo (Recife,
Bagaço, 1996), desrespeitoso pelas leis do tempo, reconstruindo fatos através
da memória, de vozes que se alternam, se ilumina, então, ao se deixar ir pelos
caminhos das sensações, como preconiza Dona, a principal narradora, em vez de
guiar-se pela inteligência. Assim, as seqüências dedicadas ao xale de casimira
da Índia. Sua dona foi Maurícia, uma das matriarcas da família que, segundo um
dos filhos, foi uma mulher teimosa e
imprevisível. Já velha e com o lado do corpo paralisado por uma congestão, não
se privava das visitas aos parentes. Fazia-se carregar por quatro negros numa
rede e protegida por uma enorme sombrinha, chegava com chá de erva doce, sequilhos, bolos de goma, beijus, beiras-secas,
castanhas e passas que oferecia ao parente visitado. Num dia de inverno,
chega na casa de um dos filhos com o aparato de sempre e envolta no seu xale de casimira da Índia. Sua neta, Dona, muitos
anos depois, o descreve como uma peça
antiga, com seus ricos matizes de cores um pouco gastos. Uma penugem
esbranquiçada largava-se pelo tecido, esmaecendo a estamparia, composta de
rosácea, em vários tons de rosa e roxo, sobre um fundo acinzentado que dava
ao olhar apenas a impressão de ser velha
e aconchegante. Mas, o aproximar-se dele, e então o relato assume uma
primeira pessoa plural, permite aspirar-lhe o cheiro de lã, guardada em cedro e perceber detalhes: medalhões dourados, muito rarefeitos, salpicados com sábia parcimônia por entre as rosáceas
desbotadas. As palavras que seguem, se afastam do traçar cores e formas
para anotar as vibrações que dele
emanam, advindas das emoções que absorve e que ele é incapaz de armazenar: essas lembranças no tênue entrelaçamento de sua lã à espera que a
memória de alguém lhe resgate as cores e
os sentimentos do passado.
Palavras que tornarão a aparecer, mais adiante, quando a avó, em meio a uma
história que estava contando, embrulha as mãos friorentas e reumáticas no velho
xale. E a narradora torna a defini-lo e a estabelecer com ele seus liames de
afeto: Denso de lembranças entranhadas em
seus fios, com um perfume abstrato, suas cores antigas pareciam esperar o
merecido resgate. Voltando a sentir o seu cheiro de lã velha, guardada em
cedro, me comovi.
Mas,
os anos, as mortes, os direitos de posse no parentesco entrelaçado, acabaram
por apagar o itinerário do xale que torna a aparecer, já desbotado, velho, com a penugem prestes a se soltar. Porém, aos olhos que o haviam
visto outrora, ele continua habitado por lembranças, à espera de redenção.
Nesse dia, que a narradora precisa ser lá pelos anos de 1947, envolve a criança
adormecida no colo da mãe, sentindo o gosto do doce de leite que o bisavô lhe
havia posto na boca. Os olhos que lhe
observam o rostinho, se dão conta do bem-estar e da felicidade que está
sentindo e que o xale a reverbera,
resgatado na lembrança que , por
certo, irá perdurar na criança que mal o percebeu, entre o gosto do doce e o
cheiro de coisa limpa. A criança é Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque, autora
do romance e que dá a sua voz para Dona, a narradora, assim como lhe
concede essa bem-aventurada lembrança para que a velha parenta a cristalize
junto com as da sua própria meninice. Um recurso narrativo a envolver vivências
que se entrecruzam, tendo de permeio, gerações e que, a par de outros que a
habilidade da romancista enriquece com o inventivo uso de expressões, constroem
uma obra instigante e bela e pontilhada de matizes líricos. Um excepcional
momento da ficção brasileira. Desde que as leituras, no país, não optassem,
como é de hábito, pelas traduções do que se lê no hemisfério norte como o
demonstram, sempre, as listas dos “mais vendidos”.
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