São
histórias reais, são personagens reais que lhe motivam o narrar. Com maestria,
entrelaça o tempo, as vozes, os episódios num dizer escorreito que se enobrece
com imprevistas e expressivas invenções. Breves histórias se sucedem, se
precisam perfis. Uma galeria de seres submissos às emoções e às próprias
verdades que se mostram pelos seus quereres e pelo seu sentir na longa história
das famílias que Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque - É
outra contadora de histórias. Deseja
ser poeta - redime da aridez de uma
árvore genealógica e do esquecimento em Luz
do abismo, que a Bagaço, de Recife, publicou em 1996. Um romance de
personagens que Dona e seu sobrinho
Nozinho, os dois interlocutores guias da narrativa, fazem renascer das suas
lembranças. Obedecendo a esses modelos, enraizados num ou noutro ramo da
família – os Cavalcanti, de pele muito
branca e de cabelos e olhos escuros ou de pele menos alva e os olhos mais claros, esverdeados ou furta-cor e
os Correa de Araújo, alvos e de olhos de um azul claro, ou miúdos e escuros –
ao destacarem, um deles, de seu grupo, quase sempre, as referências ao tipo
físico são preteridas pelas palavras que pronunciam, pelos gestos, que esboçam,
pelas situações em que se envolvem. Longos são, muitas vezes, os monólogos a
conduzirem a narrativa onde as descrições se fixam em algum detalhe para
definir um tipo: Nezinho Jaca, sempre bonachão; Sinhazinha, engraçada, meiga, quase doce; Antônio,
dono de uma bela barba bem talhada e brilhante, lisa, lustrosa e acastanhada;
Maria Cristina, de mãos desabrochadas, plenas, investidas de gestos majestosos, alvas, longas mãos de uma santa, místicas, altivas, dramáticas. Neles, os
gestos e os atos e as situações – Chiquinha a expulsar o marido de casa; Pedro,
tentando matar os filhos para então, se suicidar; Sinhô e Sinhozinho, se
enfrentando num duelo; as noivas, esperando o amanhecer para dar conta da troca
dos maridos; os desacertos, por doações
de terras – refletem não só temperamentos e visões de mundo mas as
próprias leis que regem esse mundo.
Porém,
o que, deveras, diz melhor dos personagens são seus olhos e o seu modo de olhar.
Mostram-se como são: os olhos azuis de Dona e de Isabel, os olhos irrepreensivelmente azuis do filho de Joaquim, os olhos de Joaquim, cujo
azul muito estranho, lhe rendeu o apelido de Guabiraba porque só na sua flor é
que Bentinha encontrou a nuança
comparável à cor de seus olhos e nos inusuais tons de alourados e dourados.
Ou como se tornam quando à mercê de um sentir: vazios,
baços, profundamente tristes, brilhantes, expandindo e clareando a seu
redor, capiongos, indagadores, embaciados, pedregosos, duros
como caroços secos, engastados em órbitas poderosas. E, belamente
cambiantes, cristalizando sentimentos como ao relembrar um acontecimento do
passado que, de aparente drama, passou à comédia, os olhos de Maurícia, agateados, cintilavam sem furtar a cor.
Assim, agateados furtavam cor, comandados
pela emoção, os de seu filho Antônio que ficam acinzentados
quando embrabece, numa discussão, e faíscam como
se estivessem dourados. E há quem os tenha secos, brilhando excitados; quem
os tenha gozados, tremeluzindo em tons de
prata e mel; quem fale com firmeza enquanto medo e insegurança lhe nadam
nos olhos escuros; quem, morrendo, caído no chão, os tenha citrinos, cintilando de espanto; quem sofrendo, intensamente, os tenha secos e ásperos como nunca. E, expressando toda uma gama de emoções, o olhar. Um olhar que se define por adjetivos (
curiosos, enigmático, sereno e direto,
mortiço, brilhante, inquieto, feito de entusiasmo e ingenuidade) que,
embora prosaicos, se enriquecem num entrelaçar lírico do relato como o adjetivo
cristalino, atribuído ao olhar de
Sinhazinha, morta aos dezessete anos ao lhe nascer o primeiro filho: Feia não era, nem havia em seu olhar cristalino qualquer prenúncio de tragédia;
um olhar cujo matiz é dado por um verbo, como na seqüência em que a narradora
ouve a história das noivas trocadas, contada pela avó e percebe que, finalmente,
irá conhecer o motivo secreto daquele
riso esguio e malicioso que lhe
aloirava o olhar. O mesmo verbo, usado em outro momento do relato em que,
após a discussão com seu filho, na cadeira de balanço, ela se embala ancha, satisfeita da vida, agora descuidada do rubor de satisfação que lhe
coloria as faces, e da luminosidade que vadiava em seus olhos, aloirando o seu
olhar. Um olhar que o adjunto adnominal determina: ao perder a mulher que
lhe dera nove filhos, o sofrimento de Pedro é comparado à mesma agonia prateada de um peixe subitamente arrancado do riacho se
estampa em seu olhar de cascalho e mica.
Olhos
e olhares, descobrindo segredos e caracteres num texto de suma beleza como na
seqüência em que a narradora lembra seu primo Pedro, casado com Táti. Eram muito diferentes os dois, Táti e
Pedrinho. Ela encarava o mundo com os olhos
úmidos de comiseração. Ele deixava-se levar pela amargura, que fustigava
seus olhos pedregosos e secos. Não sei mesmo onde foi que Pedro foi buscar
aqueles olhos pétreos. Em Antônio não foi, pois ele os teve sempre agateados,
brincalhões, quase maliciosos – florentinos. Nem em Dona, que sempre se
enfeitou com seu doce olhar desbotado. Fico pensando que a fonte de sua secura
foi o seu próprio nome, ou – a despeito das terras do brejo – os espinhos
esturricados das caatingas que se alastram pelo lugar onde nasceu. Contudo,
apesar de carentes de frescor, seus olhos secos tinham brilho. Tremeluziam como
as cintilações do cascalho e da mica em que foram esculpidos. Uma luz prateada
– agonia de um peixe sob o sol – escondia-se, contida, entre as duras lâminas
da rocha. Nunca choraram. Espelhos da alma que somente a maestria
estilística e o conhecimento profundo das almas permite revelar. Itinerário que
Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque é exímia em percorrer.
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