domingo, 1 de outubro de 2000

No mundo novo: o lugar


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.  

            Do capitão Ardiles é a convicção de que  poucas semanas serão suficientes para construir a cidade. Rodeada de muralhas, diz Juan Núñez de Prado e no lugar que define como formoso vale. Expressão imprecisa para designar o lugar desse terceiro assento da cidade, tanto quanto todas as outras que se referem ao espaço onde se movem os figurantes da louca aventura da conquista. Sem jamais ser descrito – consta que o romancista nunca esteve nos lugares em que Barco foi assentada – é um espaço cuja presença constante, se faz a partir de exemplares recursos narrativos. Eventualmente, a menção de algum acidente geográfico: serras afastadas na direção do rio, do outro lado das serras, para o oeste se divisavam algumas montanhas, entre as colinas, montes e vales, cordilheira, desfiladeiros e montanhas, devida, muitas vezes a um olhar, a um desejo, a uma constatação. Assim, Juan Núñez de Prado imagina a cidade com muitas cadeiras, usadas nas escolas e nas igrejas e para os velhos friorentos ficarem olhando a noite aparecer entre as colinas.Ou, pretende acrescentar um pedaço maior desses montes e vales e dessas soledades ao corpo da cidade Ou, se dá conta desse adentrar-se de seus homens no Continente: espanhóis sujos e desamparados e esparramados nas selvas e nas serras e de  suas ações montanhas que atravessarmos e ensanguentamos.  Mas, é principalmente, através das referências à vegetação – bosques ou árvores – que o cenário do romance se estabelece e adquire contornos. Carlos Droguett,  em algum momento, precisa as espécies: algarrobo, higuera, castaño. Mas, sobretudo,  atribui qualidades: belo bosque silencioso, bosque úmido e negro, grandioso bosque, bosque imenso, bosque copioso, inocente, árvores grandiosas e cheias de força, de certa forma, as esboça para fazê-las vibrar e estremecer e agitar-se com as aragens e com o bater de asas dos pássaros. Por momentos, as entrelaça com o nascer da cidade nesse desejo de Juan Núñez de Prado de fincar as raízes das casas nas raízes de suas árvores, colocando suas paredes na direção de suas folhas e flores, pondo suas sacadas e janelas e balaustradas na umidade amável de seus galhos. Ou com o seu sonho de futuro: as ruas, as casas emergindo milagrosamente das árvores. Sobretudo, o romancista faz da árvore e do bosque, também, vítimas da destruição que irá determinar os atos dos que chegavam ao Continente apenas para exauri-lo. Mas, ou para mostrar a força das terras ou para dizer quão injusta e cruel é a destruição que sobre elas se faz, há uma vida gloriosa que se instaura na água, no céu, no vento que, em movimentos cambiantes,  se mesclam, se fundem para completar a imagem desse novo mundo: é o gelado ruído da água, é o céu alto e estival que emerge no alto e se torna cada vez mais tenso e rumoroso, é o vento que sopra ora vagarosamente, ora forte e morno, anunciando tempestades, ora velado e verdoso , é o cair das folhas e ramos no espelhante barulho da água, são os sons dos pássaros, cantando todos juntos presos e confundidos nas suas próprias plumas.



            Um mundo que os ibéricos mal percebem no anseio da conquista. Juan Núñez de Prado, designado para  criar nessas paragens uma réplica do mundo velho, hesita entre o querer  aquietar-se na paisagem imóvel ou continuar a perseguir quimeras. Em um momento ele diz: este é um belo lugar, o mais bonito de todos, lançaremos frondosas raízes nele, construiremos uma centena de casas do fundo da terra, temos um tempo propício e muitas árvores que darão um aspecto fantástico e endiabradamente desenhado às ruas e praças.

            E esse foi o efêmero sonho de Barco III.

 



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