domingo, 15 de outubro de 2000

No novo mundo: a destruição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.

 

            Havia uma ordem a cumprir – fundar a cidade para ocupar o território – e um sonho a conquistar: ver a cidade florescer. Também, e muito, havia o medo de perdê-la. E, na ocupação do território e na edificação da cidade, os percalços, originando o entrelaçar de destruição: ...senhor, senhor governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor do céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei (...) tu caminhas entre os escombros da cidade rota e pulverizada, caminhas entre as raízes deste mundo verde que estamos despedaçando, diz o padre Carvajal (a conquista foi feita também pela sotaina) a Juan Núñez de Prado, explicitando, sem peias, a plena consciência que possui do resultado dos atos da conquista. Dirá, ainda, que é preciso erguer a cidade, mesmo que matando algumas árvores e diante do que chama um grandioso bosque, opinará que dele é possível tirar as madeiras para dez cidades, para um milhão de casas e imóveis. Na verdade, a inesperada riqueza do Continente irá inebriar os recém chegados e fazer com que ignorem limites. Assim, haverá o momento em que Juan Núñez de Prado decide cortar muita madeira, decide por o bosque abaixo.Também haverá aquele em que imagina os troncos caídos para trás através de suas raízes despenteadas e úmidas na interminável ruazinha. Ou, ainda, um outro em que, mentalmente faz a conta de quantas árvores, grandiosas e cheias de força terá que cortar.

            Veracidade e verossimilhança nessa necessidade real da madeira para construir casas e fabricar móveis e na urgência em abrir espaço para a cidade ou para as trilhas que está contida na narrativa, assim como, nela, estará presente a agressão dos conquistadores para com esse mudo que desejam submeter.

            Risos e vozes se mesclam, então, ao barulho dessas marteladas e golpes que fazem ranger as árvores, que rebentam os troncos. Soldados decepam árvores, levantam os machados para afundá-los bem fundo, dão machadadas alvoroçadas. Suados, batem nos troncos e os capitães e os padres se igualam a eles nos golpes de machado que assentam, no esforço para derrubá-los. Surgem o oco deixado pelas raízes arrancadas, quebradas, dolorosas e sangrentas, os ramos pendurados, sofridos, grotescos, as árvores açoitadas, feridas, derrubadas, odiadas.. Adjetivos  que a mostram vítima de algozes cuja silhueta irá se esboçar, sempre, a partir dos mesmos verbos de que são sujeitos: derrubar, descarregar, levantar o machado, dar machadadas, enterrar os punhais e a picareta e cujo objeto será, também, sempre, a árvore. Em toda a sua irresponsável crueldade, esse desenfreado aniquilamento se mostrará, sobretudo, através de exímios recursos narrativos.

            É próprio do relato de Carlos Droguett, fixar, por vezes, o efêmero e o fugidio: um raio de sol ou de luar se detendo sobre um objeto, um animal que passa, que se afasta, um olhar, um gesto, um movimento. Em se tratando do abate das árvores, esse momento, em meio a marteladas e machadadas em que, repentinamente, o traço úmido de uma árvores enorme a cair, deixa um silencioso vazio. Igualmente, lhe é muito usual, fazer referências ao tempo, ou noite ou dia, precisando as nuanças do cenário: “em meio daquele esplendor do entardecer da manhã ensolarada, palpitavam com suave força os golpes de machado derrubando troncos.

            Mas, em El hombre que trasladaba las ciudades, no seu constante repetir-se o que sobressai é a relação que os homens estabelecem com as árvores e cuja síntese parece estar no quadro que se apresenta a Juan Núñes de Prado na azáfama de construir a cidade: olhou para os homens, golpeavam a árvore com tranqüila fúria, não falavam, apertavam os lábios, tinham a respiração contida, tensos os músculos do pescoço e dos braços [...], expelindo todo o seu horror e sua enorme força, gastando seu ódio contra as enormes árvores inermes, açoitando seu desespero contra elas, como se nos ramos altos e duros, nas raízes negras e profundas estivesse agarrotada e presa e atenazada a cidade. Porém, assim como ele vê e, por vezes, entende o que se passa a seu redor, ele  também é visto pelos soldados que olham para seus dedos longos e finos, agarrados no machado como antes haviam estado presos à espada. No seu gesto, como se a árvore fosse um inimigo a ser vencido. E, então, quando,  toma do machado e o assenta na árvore até derrubá-la, ao vê-la cair, lança um grito de repto e de desafio, quase enfurecido. No entanto, essa destruição que ordena, apoiado nos seus motivos e a que executa, com as próprias mãos, no afã de construir a cidade, faz surgir não mais a árvore pujante e grandiosa mas a que, imolada, se queixa ao cair, espalhando folhas perdidas, dispersas e fragrantes, multidão de folhas, exalando o cheiro úmido, acre e doce da madeira partida, o perfume quebrado cheio de vida que emanava de tronco ferido, na emanação das folhas frescas e da seiva desprendidas pelos destroços no chão.

            Porém, nem as árvores sacrificadas nem os seus perfumes tardios, única  resistência possível para  prolongar a vida, ainda que no etéreo de um perfume, tiveram algum significado para o capitão e para os seus soldados.

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