domingo, 22 de outubro de 2000

No mundo novo: a repetição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.
 

            Disse Juan Núñez de Prado: viemos em expedição para fabricar cidades para a Coroa [...]. E Barco só poderá ser, no seu desejo e na sua obediência, a cidade como a concebem os espanhóis. Com  verdadeira paixão, traça-lhe as primeiras ruas, chama o padre para decidir, no desenho da praça, onde ficará a igreja com seus sinos de bronze, dominando os ares. Será com as portas voltadas para o vento, para a vida, determina o capitão para logo conceber a casa do bispo, os edifícios do governo, as moradas dos corregedores, o palacete estival do vice-rei, a prefeitura, o quartel e as prisões e a forca. Barco I, que abandonara a meias e a meias carregara  nas carretas e que fora se perdendo nos caminhos se reconstrui em muralhas e calçadas e portais e  jardins e  pátios e fontes e casas com janelas no alto que se repetem em desenhos repetidos, na paisagem recente. Nasce do nada, feita dos bosques abatidos e se define em sacadas, balaustradas, em gonzos e em dobradiças, em portas de serviço. Juan Núñez de Prado que a imagina crescendo, transformada em burgo, precisando de artífices, carpinteiros,  pedreiros, serralheiros, calafates para se erguer e o padre Carvajal, na donairosa capela e sacrário e catedral, nos sinos que se multiplicam, soando entre os ramos das árvores. Os sinos que farão, como a forca, a submissão do Continente: os sinos da igreja e as cordas da forca, somente isso era a cidade e a Espanha, Deus e o rei, diz Juan Núñez de Prado a um de seus capitães na certeza de que lhe bastavam um e outro para conduzir a cidade, para mudá-la de assento, ainda que sozinho no seu cavalo: a religião, atemorizando, com abstrações, os soldados e os índios; a forca, infundindo-lhes o medo de um julgamento alheio a quaisquer regras que não sejam as que se prestam a preservar os interesses daqueles que as ditam.

            Assim, ao querer Juan Núñez de Prado matar  um de seus capitães, logo se justifica, negando-se a pecha de assassino, atribuindo-se a autoridade de um justiceiro, um alguazil, um oficial do Santo Ofício, um enviado do Vice-rei e de Real Audiência. E quando, dois soldados, a seu mando, são enforcados, embora sem a certeza de que isto seja correto – senhor, daremos prazos, um pouco de inútil espera aos prisioneiros aconselha o escrivão –  procura, com uns papéis na mão enluvada, dar explicações.

             Criando as ruas e praças e casas e jardins à semelhança do traçado ibérico e submissos às seculares instituições que, no Velho Mundo, regeram a conduta dos homens, os conquistadores, atravessando o Atlântico foram se apossando do que encontraram e, o Continente sem defesa, permitiu que nele fossem moldadas as velhas caducas idéias, os velhos conceitos caducos que, inexplicavelmente, resistiram ao tempo.

            Trouxemos conosco a traição, não só o trigo ou algumas plantas exóticas e alguns animaizinhos mas, também a falsidade, a fraqueza de caráter e de alma [...], o índio sabe, agora que pode atraiçoar o amigo e a seu irmão, que pode assassinar quem está dormindo ou doente ou  incapaz de se defender [..], diz Juan Núñez de Prado sem que tal momento de lucidez lhe modifique o comportamento. Porque, acima de tudo, ele se internou no Continente para tornar realidade o que seu rei, do outro lado do mar, imaginou.

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