domingo, 8 de outubro de 2000

No mundo novo:os caminhos


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance. 

Entre uma elucubração e outra, diz para seu capitão, o padre Carvajal, um dos religiosos que acompanha a expedição, cujo intuito é a ocupação do território: somos mil e milhões os aventureiros de espada e sotaina que vagamos pelo velho mundo, a  Espanha famélica e iluminada sacudiu-os de sua pelagem como um punhado de piolhos e aqui estamos multiplicando-nos para viver, matando para abrir caminhos na direção de Deus e do rei. Asserção, de certa sorte, semelhante a do capitão Bazán ao se expressar, com os olhos e com as mãos, sobre o que levam as carretas: um bando de traidores, lençóis sujos, espanhóis sujos, forcas de enforcados, sacos de vinhos, cestas vazias. Na verdade, esses espanhóis são os coitados que participam de uma tarefa ingrata e sem glória, a de trabalhar junto com os índios, carregando e descarregando a cidade, construindo e desfazendo paredes, tetos e portas, puxando animais, segurando-os para que não desfaleçam nem se aterrorizem sob os relâmpagos. Porque a busca do novo assento não se intimida com a escuridão e o vento, a chuva e a lama. O afã de chegar ou de seguir, enfrenta os danos e as perdas – animais e carretas, rolando por abismos – e leva a penetrar nos bosques para achar um lugar que ninguém sabe se realmente será o definitivo. E passado e presente e futuro estão enredados no constante movimento dos homens, animais e carretas.

            Ao ser Barco III assentada, Juan Núñez de Prado vê, diante dele, carregadas de soldados, as carretas passando lentamente. Lembra-se da imagem que lhe ficou, ao abandonar Barco I, cavalgando na trilha das carretas que se bamboleavam na penumbra envoltas pela fumaça e pelas luzes. Em dado momento, decide que, talvez, dentro de alguns meses, ele detenha as carretas sob as árvores. Mas, logo, ao enfrentar seus capitães, já está diante de uma definitiva escolha que  reconhece, também, como sua nas carretas carregadas, nos índios acorrentados, nos cavalos descansados e ferrados de novo, na necessidade, urgente, de partir.

            É um sonho ou pesadelo que os impulsa com a cidade às costas como se buscassem o paraíso apregoado na Espanha miserável que deixaram no além mar, abandonando pelo caminho pedaços de móveis, cadeiras, borzeguins e espadas que os índios podiam rastrear sob as árvores e do outro lado do rio.

            Mas, na terrível viagem, assim a define o padre Carvajal, foi, mais do que nada, um salpicar de sangue, em nome do Estado e da Fé, nas selvas, nos cerros, nos rios e nas montanhas nevadas.  Nas forcas e nos túmulos foram ficando os espanhóis, parte da terra que desejavam possuir:
ossos de espanhóis, marcando a rota de Deus e do rei.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário